Leve

4 11 2014

Um dos problemas que comentaristas de histórias, livros e/ou congêneres enfrentam é a famosa falta de tempo. Toda leitura deveria ser remunerada. Um trabalho profissional: dela depende a movimentação do mercado editorial, um norte para autores, alento para criadores. São as respostas a partir das leituras que movimentam a literatura. Sem ela, a leitura, quase tudo estaria comprometido por uma espécie de espírito de corpo que, em geral, anda movimentando muito as artes em certos rincões do país com o que eu chamo de evento interno (de artista para artista).

Digo isso pelo hiato existente entre uma postagem e outra nesse combalido blog. Sim, falta-me tempo para leituras, minha atividade profissional é outra, dela dependo para pagar as contas. E bem sei que tal exposição é bastante perigosa: certamente logrará surgimento de alguns engraçadinhos desqualificando qualquer capacidade minha no desmonte analítico da linguagem ou qualquer encanto de análise literária que eventualmente possa apresentar.

Apresentadas as eventuais justificativas para a existência desses hiatos, vamos à maravilhosa história de como a obra em questão nesse post veio parar aqui.

Uma das minhas maiores dificuldades é encontrar simpatia em métodos para o trabalho. Justamente por possuir vários deles, dos quais lanço mão boa parte das vezes. Sabe aquela coisa do Mr. Right, o certinho?!  Chega um momento que viro naturalmente um outsider quando a atividade desenvolvida está, para mim, muito mais conectada à questão do prazer do que a do ofício.

Isso posto, estranhamente intencionei um processo de escolha para as minhas próximas leituras (ou, pelo menos, parte delas) que contemplasse aquele solitário momento comum a qualquer ser humano que possui o aparelho digestivo em pleno funcionamento.

   Id est, leituras de pequenas obras, obras não muito extensas, para aqueles momentos onde as urgências fisiológicas oriundas da necessidade de nutrição, ou prazer de certas degustações, se avizinham.

O critério soou sério e claro. E fui à luta na busca de obras que se encaixassem nesse perfil. Foi então que encontrei, num café do Pátio Iporanga, Caderno Vermelho, de Paul Auster. Quiçá para a alegria do Alcyr Pécora…

    Nas edições em língua inglesa, o subtítulo True Stories (Histórias Verdadeiras). O que fomenta certo tipo de discussão de que quase toda obra literária de ficção é, em certo grau, biográfica. Sei não… Tenho lá minha dúvidas. Mesmo que se prove a presença de informações pessoais certamente extraídas da vida de quem escreveu, de suas experiências, acho uma forçação de barra danada afirmar que o autor vivenciou tudo o que está ali escrito.

   Lança-se por terra, assim, a capacidade criativa do(a) artista, empurrando-o(a) a ter de passar por certas situações na vida com o propósito de escrever sobre. Seria o mesmo que o(a) autor(a) ser epilético(a) para construir uma personagem com essa enfermidade, ou cometer o suicídio se uma personagem for suicida.

   Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Sabe-se que não há uma ficção completamente isenta, mas isso ainda se encontra no campo da suspeita. Sempre haverá a improbabilidade de todas as ocorrências presentes numa narrativa terem terminantemente acontecido com o(a) autor(a). Como forma de certo charme que se lança sobre o leitor (“…será que aconteceu?! Será que não?!“), a coisa do(a) autor(a) vivenciado(a), rodado(a), um gancho formidável para as casas editoriais faturarem, até entenderia. Mas o cheiro de desserviço nesse tipo de discussão costuma ser acentuado.

   Porque mais importante do que saber se as ocorrências contidas numa obra de ficção realmente aconteceram com o(a) autor(a), ou não, está a questão da linguagem, sua construção e articulação. Cair na coisa do True Stories é jogar uma cortina de fumaça muito forte diante dos olhos do(a) leitor(a) e não deixá-lo(a) atento(a) em como essa linguagem definitivamente se constituiu, se há alguma intenção de efeito que o(a) escritor(a) quis causar em quem lê. Os gigantes maiores da Literatura, da análise literária, desaparecem nesse raso monstruoso em querer saber o quanto há de veracidade nas ocorrências, quase sempre guiando a obra literária a cochilos e derrapagens de verossimilhança que matam qualquer boa intenção, tanto em quem escreve quanto em quem lê, de se estabelecer uma peça de arte que sobreviva à prova do tempo.

   Talvez seja esse o caso de Caderno Vermelho, de Auster. Ao final da leitura, uma estranha sensação de acho que perdi duas horas da minha vida. Mas para aquilo que se propunha minha leitura (dentro do critério acima descrito, um acompanhamento para os solitários momentos de desfecho do processo digestivo), penso que acertei na escolha.

   Imaginemos esse significativo, relevante e, porque não dizer, saudável momento de algo dentro de você se evadir sendo arrolhado por textos de certa urdidura como No Coração das Trevas, de um Conrad, ou Uma Laranja Mecânica, de Burgess? A leveza de Caderno Vermelho pode até não ser imperativo no movimento peristáltico que essa parte da digestão demanda, mas certamente não atrapalhará em nada.

   Auster decidiu compartilhar suas histórias de vida, algumas interessantes, outras que ele mesmo coloca na obra como a quem interessaria (?!). No caso do prazer da leitura pela leitura, sem qualquer tipo de intenção intelectualmente nutritiva, uma simples leitura de verão, de praia, aquelas páginas que ajudam a gastar o tempo que se tem, Caderno Vermelho pode virar o livro-de-cabeceira de quem está aberto a esse tipo de possibilidade. É o livro!

   Contudo, se tutano e sustância, aquela coisa de literatura que engorda, fizerem parte de seu cardápio, bom… Veja bem… O livro é curtinho e pode se tornar um grande desapontamento. O tipo de escolha feito pelo autor, de somente citar a letra inicial do nome dos personagens das histórias ali mostradas, narrativas com alguma marcação temporal de quando aconteceu (vejam! Não é só o Facebook que tem timeline!), pessoalidade sem confessionalidade, uma linguagem em articulação simples, sem o pavoneamento filológico, uma exploração vernacular desnecessária salvo os grandes movimentos de alma estejam envolvidos, podem trazer uma sensação de buffet de saladas quando a fome que tomou o(a) leitor(a) era de boi-no-rolete na Estância Alto da Serra.

   Nada que diminua a referida obra. Volto a repetir: tudo depende de como o(a) leitor(a) aborda a obra. Pode ser uma grande companhia, marcar sua vida para sempre, mas tal referência está diretamente ligada ao tipo de abordagem de expectativa que o(a) leitor(a) possa apresentar. Dependendo de como for, pode ser para o bem ou para o mal. Tudo depende de como se vê a coisa.

   Certamente que, em Caderno Vermelho, nem tudo está perdido. Das várias histórias de vida, dele, Paul Auster, e de seus amigos e conhecidos, há belas reviravoltas, como a do amigo que depois de sucessivos fracassos nos relacionamentos reencontra, quase que por acidente, uma antiga namorada que sumiu no mundo e foram viver suas felizes histórias juntos ao melhor estilo Gonzaguinha, no lindo lago do amor.

   A questão de Caderno Vermelho é que essa obra precisaria passar longe de um bom curso de Letras (onde o giro pode ser alto e o tipo de exigência é mais para um Barranco de Cegos, de Alves Redol) ou de qualquer leitor(a) que vive, diariamente, a testemunhar a crise humana da fome, do abandono, do descaso, do trauma. Para esse tipo de leitor(a), ler Caderno Vermelho pode soar de fútil a imoral, dependendo de como a dura realidade pode ser posta de lado para que se aprecie um leve suco de caju ou um refrescante copo d’água.

   Caímos na questão, assim, da oportunidade para determinadas obras. Se é desaconselhável Caderno Vermelho para aqueles que vivenciam a crise em seu estado mais bruto, e precisam, por força de profissão ou ausência de alternativa, lidar com ela, pode parecer uma obra que bem poderíamos viver sem ela.

   Por outro lado, essa mesma crise do humano, dos subterrâneos da mente, das tragédias testemunhadas a cada instante, a cada hora, talvez nos afastasse de obras como 1984, de Orwell, ou mesmo o romantismo próximo do assomadiço e neurastênico encontrado nas obras de Patrick McGrath. Ainda que dois grandes gênios de uma literatura mais próxima dos nossos dias, e donos de um tecido verbal que fazem meus cotovelos doerem, a linguagem e a forma de construção da narrativa e das personagens pode lá não ser a mais digestiva das leituras em parques e praias mundo afora.

     De uma coisa acho que escapei: com Caderno Vermelho, de Paul Auster, certamente escapei da constipação. Uma obra leve. Talvez demais. E há certas levezas que, de tão leve que são, costumam pesar toneladas.





Ana é uma banana legal: além de não ver a hora de comer o macaco, detesta auto-publicação

19 01 2013

O editor André Schiffrin

Vi, revi e ainda estou a rever a entrevista do escritor franco-americano André Schiffrin, antigo editor da Pantheon Books por 30 anos e atualmente na The New Press, casa editorial criada por ele a fim de driblar o estado de coisas que anda por aí. Vai da aula a um certo tipo de estarrecimento. E ao final da entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TV Cultura, São Paulo, uma triste sensação de que, no brejo, só o chifre da vaca (quando muito!) está do lado de fora.

A entrevista dá pauta para posts e mais posts. Para não encher a paciência, às vezes curta, do(a) leitor(a), abordarei a primeira grande questão contida no primeiro bloco do programa: a auto-publicação.

Foi o único ponto que discordei do entrevistado. Até mesmo porque ele, Schiffrin, utilizou o recurso de abrir sua própria editora para que, mais a frente, não presenciasse seus livros barrados por outras casas editoriais. Ainda que isso não seja considerado, fundamentalmente, auto-publicação, a linha entre a abertura da própria editora, independente dos nobres motivos que fizeram Schiffrin sair do lugar, e a auto-publicação começa a ficar bem tênue.

Ninguém é maluco de dispensar, na cara dura, a experiência de um editor como André Schiffrin, nem tampouco considerar o trabalho de um editor dispensável. Tanto que os autores possuem um grupo de primeiras leituras, que de certa forma atuam como orientadores daquele que escreve.

Eis, assim, o primeiro grande questionamento: estariam todos os editores na envergadura de um André Schiffrin? Pior, estariam os editores inclinados a fazer um trabalho de mediação entre o autor e sua obra como fazem os(as) primeiras leituras? Ainda que essa mediação não seja tarefa de absolutamente ninguém dentro de uma casa editorial, qual seria, então, a atuação do editor e assistentes nesse novíssimo mundo que se descortina dentro do mercado editorial?

Porque a impressão que se tem, do lado de fora, de quem está em uma das duas pontas da linha (escritores e leitores), é que nas editoras não se lê sequer bula de remédio para conhecimento da posologia e contra-indicações. Sem o exagero do enunciado anterior, estariam os acionistas de casas editoriais internacionais, nessas mergings malucas que hoje pegam em cheio o Brasil, fazendo um mal danado à paz e ao sossego necessários para a devida produtividade dos editores?

A auto-publicação empesteia o mercado? Sem a menor sombra de dúvida. Só que com esse samba-lê-lê que temos nos dias de hoje, quem deseja encontrar seu público faz o que? Senta e chora? Vai à igreja e ora? Aguarda a intervenção divina? Sai correndo beijando o anel do senhor-contratador e fica em casa esperando que um peso-pesado dos livros estenda o tapete vermelho para que o escritor em questão entre pela porta da frente?

Sem a auto-publicação, não encontraríamos boas obras como a de Ricardo Carlaccio, Um Brinde em Copos de Plástico, Renato Negrão com o seu Vicente Viciado, ou Abismo Poente, de Whisner Fraga, nem seríamos felizmente pegos de surpresa por nomes como a de Antônio Xerxenesky e Javier Arancibia Contreras. Se os citados esperassem a efeméride das cônjuges dos editores não dormirem de calça jeans ou o alinhamento dos astros, como nós, leitores, ficaríamos?

A auto-publicação é essencial para o surgimento do novo. Sem a auto-publicação não há renovação, o escritor não encontra o público que está esperando seu toque. Ainda que o número de novos títulos seja colossal, não acho de bom tom proibir o folião de aproveitar os festejos de mômo. E se não tem bloco para brincar, que faça o seu (como fez André Schiffrin)!

Se há escritores iniciantes, aqueles que ainda tem muito o que aprender, não haveria igualmente os editores iniciantes, que quando o assunto é poética e/ou prosa de ficção se atrapalham demais? O errado nessa jogada só são o escritor, sempre ruim de serviço, e o leitor, com os dedos engordurados de sacanagem requentada de cinquenta tons de alguma cor? Somente eles são os responsáveis pelo descalabro que estamos presenciando por aí? Mais ninguém?! Os meeiros do mercado editorial vão para o céu, então?!

Seria o caso da falta de coragem dos meeiros, só indo de boa quando sai o dinheiro dos Facults, ProAcs e similares, o famoso risco-zero?! Casa editorial e livraria tem realmente de crescer 15% ao ano? Há tanta necessidade disso? No meu corpo-a-corpo com escritores e leitores, uma coisa posso garantir: ambos estão dando a cara a tapa! As duas pontas da linha não andam com muito medo de cara-feia.

A Ana é uma dessas bananas que também acham que tem muito ibope para pouca programação. Mas como não vê a hora de comer o macaco, pouco se lhe dá esse lance de renovaçãopoesiaprosa de ficção. Tudo isso, para ela, é um saco! Não é à toa que ela deteste auto-publicação. É de se saber o que ela fará quando tanta repaginação bater a sua porta.

Leia também: Ana é uma banana legal! Um dia, ela comerá o macaco!

Veja a íntegra da entrevista:





Da exuberância e ousadia

14 01 2013

Vicente Viciado, de Renato Negrão

Há muito, tanto nesse blog quanto no Pela Proa, venho afirmando que a literatura produzida no estado de Minas Gerais é uma literatura da exuberância. A literatura mineira é naturalmente exuberante. É difícil tecnicamente explicar esse traço encontrado nos escritos de boa parte dos autores mineiros. E diríamos que não é só na literatura apenas. Quem já ouviu o Toninho Horta, por exemplo, ou se amarrou no Clube da Esquina, sabe muito bem do que estou falando.

Murilo Rubião, João Guimarães Rosa, Roberto Drummond, Autran Dourado, Adélia Prado, Fernando Sabino… É bom eu parar por aqui porque certamente cometerei injustiças, esquecerei nomes que não poderia esquecer.

Em geral os autores mineiros trabalham bem mais no eixo paradigmático, o que, quase sempre, permite uma excelente impressão diante do leitor mais traquejado. E são exímios introdutores ao amor pela leitura porque não abusam do eixo sintagmático. Os autores mineiros vão de boa: reproduzem inicialmente a sintaxe sofisticada do homem comum mineiro para, mais a frente, criar uma sintaxe artisticamente insólita. Não tem como não se apaixonar.

Primeiramente, peço perdão pelo preâmbulo literatura mineira é exuberante. É um pleonasmo dolorido e horroso. Se é literatura mineira, associá-la à palavra exuberante é chover no molhado. É o mesmo que dizer que o fogo é quente. Os mineiros sabem ser irreverentes (irreverente no sentido de não reverenciar o common knowledge), revolucionários na trama de seus tecidos verbais e absurdamente ousados ao peitar bom-mocismos academicistas com uma sintaxe de tirar o cidadão do eixo.

No Brasil atualmente tem uns cabras que não estão para brincadeira. De Milton Hatoum a Antônio Xerxenesky, passando por Paulo Lins, Humberto Werneck (Deus seja louvado!), Lourenço Mutarelli, Ana Paula Maia, Maria Alzira Brum Lemos, Manoel Herzog, Marcelo Ariel, Modesto Carone, Ademir Demarchi, Alice Ruiz, Líria Porto, Flávio Viegas Amoreira e por aí vai…

Na seção Minas Gerais, além dos nomes citados de Humerto Werneck (Deus seja louvado!) e Líria Porto (descobri a Líria numa conversa que tive com a Alice Ruiz), cito dois que se transformaram no meu xodóId est, se falarem mal deles, vão comprar briga comigo (parcial pacas!): o quebra-muros de Ituiutaba, Whisner Fraga, e o homem urbano Renato Negrão.

Parcial, sim… Parcial. Ah, Marcelo, cê diz isso porque cê morou em beagá. Justamente! Entendo isso como conhecimento de causa. E mesmo quem nunca nem pôs os pés em Minas Gerais assina embaixo quando digo que a literatura mineira é exuberante. Passam-se os mundos e os calendários maias e a força da escrita vinda desse estado brasileiro continua a mesma. Só os néscios, incautos e apedeutas não se apaixonariam.

Como estou ainda no processo de leitura de Abismo PoenteSol Entre Noites do Whisner Fraga, o comentário de hoje é sobre o mais recente livro do poeta belorizontino Renato Negrão, com quem tive a honra de celebrar seu aniversário (sim, ele também é um capricorniano caprichoso!) na casa do Téo Ruiz e da Estrela Leminski, onde esteve hospedado recentemente.

Vicente Viciado é o mais recente trabalho de Renato Negrão. Se nos poemas publicados nesse livro encontramos a mesma exuberância comum na literatura mineira em geral, dessa vez encontramos a veia urbana de uma cidade pouco conhecida ainda dos brasileiros. Uma grande capital com sua mazelas e seus encantos (como qualquer lugar do mundo), mas que pratica o encanto em cada esquina dessa metrópole.

E devo jogar esse cadáver no colo da grande mídia, que só conhece Rio de Janeiro e São Paulo. O desconhecimento de cidades como Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba, Recife, Salvador, Florianópolis, Fortaleza, São Luiz e mais uma penca de capitais de estado é uma cegueira que envergonha a cultura nacional. Se pegarmos cidades não capital de estado como Londrina, Campinas, São José dos Campos, Juiz de Fora, Santos, Maringá, Ribeirão Preto, Petrolina, São José do Rio Preto, entre milhares que poderíamos citar aqui, é para posicionar a corda no lustre.

O poeta Renato Negrão apresenta a Belo Horizonte urbana, a metrópole que cada um de nós deveria conhecer (e bem!). Negão é o bicho-urbano-belorizontino que consegue, como ninguém, captar, interiorizar, potencializar, subverter e apresentar a Belo Horizonte urbis, a fauna da capital mineira, suas espécies, sua cadeia-alimentar, seu bioma.

Renato Negrão é o filho mais nobre, o filho-de-algo, o fidalgo que a veia urbana belorizontina pôs no mundo. O filho que completou a contemplação urbana paulistana da física dos interesses com tudo aquilo que justifica o movimento de alma (como diria Renata Pallotini). Aliás, nisso os mineiros são impagáveis e imbatíveis. A mesma parcimônia e sabedoria do homem comum mineiro em lidar com o retrato cru da vida pode ser, ouso dizer, amplamente encontrada na poética de Negrão.

O que diferencia sua poética dos demais nomes consagrados da literatura mineira e nacional é a sacação urbana de característica unicamente belorizontina. Não, é impossível encontrar esse olhar estando em São Paulo, no Rio ou em qualquer outro lugar do país. É uma alma cujo c0rpo, um dia, precisa estar em Belo Horizonte. Algo que o leitor não tem como escapar.

Ciborgue me deu

ciborgue me deu
um beijo na boca e me disse

não me peça
para gostar de seus poemas ou que
você goste dos meus

ou não me impeça
de não gostar dos meus ou de
gostar dos seus

porque tudo quanto é aço
silício alicate
interno e déu aqui

tudo quanto é melopéia
logopéia ali
e de lá a fanopéia nada traz

para a elípse entre nós
proezas no breu

O ciborgue de Cidade de Minas não se atém ao objeto beijado, não usa o ósculo como veículo de acepção. O beijo do ciborgue vai ao encontro descompromissado da leitura e da poesia sem as enfadonhas obrigações de julgamento (gostar ou não).  A poesia que toca o ciborgue é a feliz comunhão produzida pelo acaso da atração, esse sabor de aventura que tanto fascina o ser humano. O urbano moderno belorizontino (sem se perder no materialismo instrumental) acalenta a natureza meio carnal, meio etérea, que, às vezes, nos empurra, em outras, atravanca. E sempre o final feliz das luzes apagadas, o fim das distâncias corpóreas, o fechar os olhos e transitar numa dimensão alegremente sinestésica. Ô, coisa boa!

Um traço na poética de Renato Negrão, presente em Vicente Viciado, é o da revelação dos prazeres ocultos. Aquele prazer culpado, comprometedor, vivenciado nas sombras das alcovas BR-040, na esperança de que o crime, um dia, prescreva.

E assim

ofegante
o delegado pediu
a garota de programa
que lhe introduzisse
um pinto de borracha
vinte e três centímetros

a princípio sem ky
& depois com

alertado porém
se fofoca virasse
ele fudido fadado
ela fada fudida
a boca com formiga
no desossário
do minério

Negrão percebe os prazeres particulares subjacentes no bioma urbano belorizontino. Ele não olha a cidade somente com o prazer da contemplação, o olhar repleto do lirismo saudoso dos tempos de outrora, ou o coração carregado da pureza e ingenuidade artística do poeta que se pôs a parte no mundo pelo seu estado especial de criação. Renato Negrão joga nas onze. É autor do pecado e concede o perdão, percebe a lascívia e compartilha o clímax, não deleta o ponto g do limite entre o prazer e a tara perturbadora que ocorre sob a luz do abat-jour ou nas sombras das alcovas. no desossário/do minério é o arremate para lá de perfeito desse mundo Forest Hill que todo leitor que se pretende entender a poesia atual belorizontina deveria enfiar na carne. É possível, inclusive, sentir o cheiro do minério depois de uma noite perdida no fausto do gozo.

Essa contemporaneidade feita de urbano na poética de Negrão, contudo, não impede o leitor de encontrar a indução da beleza da arte no coração de carne. Sabedor de que nem só de carne vive o homem, o autor de Vicente Viciado nos coloca diante da cidade como possibilidade de nutrir a alma com o encanto do espaço-movimento da palavra e do gesto.

Coreografia

o espaço coreográfico da palavra
e sua aplicabilidade semântica
são pensados como estímulo
a outras configurações corporais

nossos corpos merecem e podem
dar respostas mais criativas
ao textos urbanos para além
de suas palavras de ordem
e de consumo

gestos como construção
transitoriedade como eixo
dispersão como método (…)

O poeta aqui nos apresenta a segunda pele do espaço virtual, condição sine qua non da criação (o nada, a ausência da coisa em si, objeto de estudo de uma boa disciplina de literatura comparada ou teoria da literatura num bom curso de Letras!). Renato Negrão nos impede a visão naïve de poéticas que colocam ao rés-do-chão o concreto armado do urbano. Ele nos indica que é possível, sim, criar o gesto incomum, o movimento novo, a sensibilidade como valor estético a partir do cenário diante dos nossos olhos. O que já está estabelecido não é fator de cerceamento ou impeditivo da expressão do corpo. A criação do corpo (o gesto) surge entre os rigores desse cenário e, sim, é capaz de ser surpreendente pelo inusitado desse ineditismo.

Renato Negrão percebe a cidade não como um desafio a se transpor, mas a mais preciosa companhia na arte de criar. E que, talvez, essa arte, além de demandar engenho, exija um pequeno toque apenas: a doçura de se estar sensível a perceber.

Vicente Viciado resgata, na segunda metade da obra, um hábito comum nas obras literárias brasileiras dos anos 1970 conhecido como carona. Nada mais é do que a participação de outro artista com textos que dialogam por afinidade estética com o universo do livro e do autor.

E na obra em questão, Marcelo Negrão trouxe quatro letras de músicas do CD Verdadeiro, do rapper belorizontino Das Quebradas. “(…) Suas letras tem a mobilidade de registro, funcionando bem tanto no formato canção, quanto pode funcionar no universo do papel, (…) com um texto impulsionado pelo humor e uma escrita ágil que se nutre de palavras de idiomas diversos, siglas, apelidos, fala popular urbana, provocando a linguagem, desestabilizando discursos para além das polarizações maniqueístas de “bem e mal” tão presentes no rap. (…)”

Renato Negrão, em seu Vicente Viciadoapresenta a Belo Horizonte que passei a conhecer, admirar e gostar desde 1994. A de verdade, sem a tradicional família mineira (às vezes, motivo de anedotas entre os próprios belorizontinos), desancando o machão mineiro e trazendo para perto uma sutil sensualidade em quase tudo que habita na capital mineira. Renato Negrão é o principal expoente do urbano na poesia belorizontina, reverenciando a exuberância e ousando na liberdade de intuir novos pensamentos sobre o porquê da arte dentro da civilidade áspera do concreto armado, do asfalto e dos viadutos. E, por favor, ouçam: não conhecer um pouco de Belo Horizonte pode ser algo muito perigoso. Não conhecer por completo pode ser fatal!





A difícil arte de ser dois

31 10 2012


Devo confessar que essa é uma arte difícil: ser escritor, autor de sua própria obra, e crítico literário ao mesmo tempo. Às vezes, certos autores sentam o relho no pobre do crítico. Ontem mesmo assisti um especial na TV Câmara sobre a obra de Carlos Nejar, onde, lá pelas tantas, e fazendo as devidas ressalvas obviamente, o poeta gaúcho não poupou a crítica. É claro que explicou sua razões, totalmente pertinentes. Tem meu apoio. Mas quando me vejo do outro lado, sinto que a prática do comentário crítico-técnico sobre literatura se torna cada vez mais áspera.

Principalmente porque os autores não entendem que, nesse outro lado da mesa, há um ser humano feito do mesmo material, passível dos mesmos problemas, agruras, vicissitudes, temores, crises. E que isso, de tempos em tempos, mexe com a psiqué (alma) do crítico literário. Neste espaço, o Literaturial, sou o primeiro a criticar o crítico, quase sempre centrado na idéia e afirmação de que muitos críticos literários são mais comentaristas do que críticos propriamente e de que é fácil encontrar gente despreparada para a arte da crítica (por isso o meu apoio ao Carlos Nejar).

Porém, toda vez que passo para esse lado de cá da mesa, confesso que a barra pesa tremendamente. O trabalho é até agradável, mas uma fonte interminável na produção de desafetos.

O pior disso tudo: expõe o fôro íntimo do crítico. Caso esteja passando por um momento complexo ou singular da vida, todo mundo, de certa maneira, fica sabendo. O que é ruim, chato à beça (para o crítico). Porque a crise pessoal do crítico mexe nas cores de sua leitura quando se depara com uma obra, objeto de sua crítica, que mereceria louvores. O que escrever num momento desses?

É mais ou menos isso que acontece comigo nesse momento. Gasto o triplo da energia para olhar com bons olhos obras que elegeram em sua estrutura narrativa o famigerado fluxo de consciência. Infelizmente, estou numa fase da vida sem a menor paciência para esse tipo de registro. Haja! Em mãos habilidosas como as de Joyce e Saramago, beleza… Show de bola! Só que o bonito no quintal do vizinho nem sempre tem a ver com nosso próprio estilo e nem sempre temos o talento para utilizar o que, nas mãos de outros autores, faz o difícil parecer fácil.

E eu, avesso às modinhas, infelizmente, ando pegando corda com esse tipo de forma de expressão. Modinha. Todo mundo acha bonito soltar a mente, se libertar, se permitir, sem prestar atenção que há uma tremenda técnica por detrás. Técnica, já ouviram falar? Fluxo de consciência não é orelhada, não é também sei fazer isso, meter o dedo na viola e seja o que Deus quiser. Tem domínio de técnica naquilo. Não é fruto de vontade apenas, é preciso certo talento e bom domínio do tópico frasal para que o leitor não tenha diante de si um troço ininteligível.

Permitam-me (e perdoem-me!)  o desabafo inconsistente e fora de hora, mas dá a impressão de que a literatura brasileira acordou no dia 01 de janeiro de 2000 achando a maior lindeza ser Kafka, Joyce, Saramago, sem olhar para seu próprio passado de Novelas de Aprendizado, de Autran Dourado, ou Os Ratos, de Dyonélio Machado. Se fosse a Inglaterra, com quase cinco séculos de tradição literária, até entenderia. Mas não é o caso brasileiro. Há uma tradição literária brasileira? Há. Tal tradição nos dá lastro para tentativas de padrões ainda não interiorizados devidamente pelos autores brasileiros? Tenho lá minhas dúvidas. O fato é que tanto Dyonélio quanto Dourado esfregam na cara de qualquer um que o romance psicológico não precisa de rocambolescas rupturasquebras de paradigma, para ser sofisticado.

Aí, eis que cai em mãos o próximo livro da fila: João Gilberto Noll. O grande e maravilhoso João Gilberto Noll. João Gilberto Noll, celebrado, querido. Claro que a minha crítica será parcial: um colega de profissão, também um homem de formação em Letras assim como eu. Cúmplice da mesma paixão silenciosa e secreta por esse mundo das palavras, do suco de cérebro. Estou do outro lado da mesa. Lá se vai a credibilidade do Literaturial.

Canoas e Marolas compõe uma série da editora Objetiva chamada Plenos Pecados, sobre os 7 pecados capitais. Noll parece-me que foi sorteado para o pecado preguiça, não sei aqui dizer ao certo se a obra foi encomendada. Segundo o site da revista Época, João Gilberto Noll refugiou-se durante nove meses na Costa da Lagoa, em Santa Catarina, para a confecção da obra, o que leva a crer que realmente tenha sido on demand.

No romance (que mais tem cara de conto), um homem, que ao longo da narrativa revela a alcunha de João das Águas, chega a uma ilha com a finalidade de, finalmente, conhecer sua filha, chamada Marta,  fruto de um romance com uma enfermeira num período da vida onde esteve hospitalizado. Na sua chegada à ilha, conhece um menino-índio que se torna seu companheiro de preguiça, com quem passa boa parte do tempo em ócio, entre as sobras das árvores e as permanências na praia.

Marta é médica, cuja especialidade é preparar pacientes terminais para a morte. Ao longo da história, o homem (ou João das Águas) descobre que sua filha espera um filho e desconfia que o menino-índio responde pela paternidade de seu neto. Assim, a primeira idéia que o leitor tem em relação aos personagens é que cada um representa uma fase da vida, a natureza sempre pródiga em sua força e renovação, numa história que simboliza fechamentos de ciclos e aberturas de outros.

Quando uma prosa quase poética é confeccionada por mãos hábeis e talentosas como as de João Gilberto Noll, a força corrente da narração perpassa o leitor de maneira sutil e suave. E esse é o grande mérito da beleza dessa obra de Noll. O espinhoso tema da vida quando acaba se torna poesia, é leve e tocante nas mãos de um profissional de Letras. O risco de não se gostar da história é zero. Mas, então, por que cargas d’água eu fiquei meio assim diante de uma das grandes obras da literatura contemporânea brasileira?

A escolha de Noll foi pela sua poética. Até aí, problema é meu. O chato de galochas aqui sou eu, não o autor. Noll optou pela superfície de convergência entre a prosa e a poesia no equilíbrio da mistura de frases curtas (característica de uma poesia mais contemporânea) e períodos compostos (quase sempre por subordinação e que denota a inclinação natural da prosa). Essa fronteira movediça entre prosa e poesia (chamada por alguns de prosa poética) se tornou, a bem dizer, um ente constante na literatura produzida no século XXI (e isso não quer dizer que não exista prosa poética produzida anteriormente).

Resumindo, minha fase pessoal me tornou um ser ignóbil e deplorável, que anda achando muito mais legal O Paraíso é Bem Bacana, de André Sant’Anna, do que Canoas e Marolas, do João Gilberto Noll. O que me coloca numa situação ruim, injusta com Noll (pois o livro é uma grande obra, é um grande texto). Eu queria muito ter gostado. E olha que o livro de Noll, do meio para o final, fica simplesmente excelente!

Tudo por conta da minha pentelhice atual em relação a parte de autores contemporâneos que andam confundindo fluxo de consciência com corrimento verborrágico. Dá nos nervos! A obra de João Gilberto Noll passa longe de um corrimento… Mas a simples perspectiva de estar diante de uma alegoria sobre a morte, a conclusão de ciclos, o fim de uma passagem pela Terra, motivo de tantos pensamentos que todos nós temos sobre a vida, colocou-me na defensiva. Uma poética de cunho delirante (o próprio narrados utiliza a palavra delírio algumas vezes), que deveria me trazer o deleite do belo (ou da graça), por conta dessa minha fase, ergueu minha guarda mais ainda.

Nem sempre a prosa poética traz densidade a uma narrativa, nem tampouco a torna sofisticada. É tão difícil entender isso? Brincar com ou subverter as fronteiras entre prosa e poesia não pode ser um molde-panacéia, a solução para tudo, a garantia de que sua obra será bem fófis naquele medo tremendo de que as pedras não alcancem a vidraça.

E ainda para piorar, a saber quem foi o gênio da Objetiva que associou Canoas e Marolas com preguiça. Provavelmente não consta no vocabulário desse profissional a palavra estupor, que melhor cabe para descrever a leseira encontrada tanto em João das Águas quanto no menino-índio. Os dois são muito mais regidos  pelo estupor do que pela preguiça propriamente dita. É quase propaganda enganosa: você ganha um carro num concurso de supermercado e quando vai tirar o prêmio descobre que o veículo é uma Brasília 77 azul-marinho. Ou seja, se eu já estava irritadiço, comecei a mostrar os dentes. É nisso que dá editora não contratar profissionais de Letras. Ah, Marcelo… Esquenta, não! Relaxa…

Enfim, rogo que leiam Canoas e Marolas, de João Gilberto Noll, imediatamente. Trata-se de um grande trabalho do romancista gaúcho. Definitivamente, coisa fina. Esqueçam minha irritabilidade momentânea e passageira. E deixem o trabalho de pegar de jeito  essa turminha do corrimento verborrágico comigo. Ao querido leitor do Literaturial, somente o prazer da leitura.





Boi, boi, boi… Boi da cara preta…

23 07 2012

Devo dizer que não sou profundo conhecedor da obra de Chico Buarque como escritor. Li Estorvo e olhe lá. Não que Chico desmereça a nossa mais especial atenção, não é isso. Esse grande mestre das artes brasileiras, esse cronista do nosso tempo, tanto na sua obra musical quanto literária, sempre terá o carinho do nosso olhar. Ainda que não seja uma unanimidade (o que é até saudável), sempre será o destino de nosso respeito por sua criatividade.

Lembro da minha época de infância, 1978, nada desse negócio e-book, downloads e outras bossas tão presentes no nosso dia-a-dia. Era a época dos bolachões de vinil, das enciclopédias Baden e Britânica cujos vendedores batiam de porta em porta oferecendo uma inestimável fonte de saber, principalmente para quem tinha filhos em idade escolar. Surgiu, nessa época, uma espécie de serviço que nada mais era do que venda de livros em domicílio. Respondia pelo nome de Círculo do Livro. Todo mês, um(a) vendedor(a) batia a sua porta para entregar a revista e marcar a data da coleta dos pedidos que eram entregues dias depois na casa do sócio do clube. Uma espécie de avon dos livros.

Foi na transição do governo Geisel para o governo Figueiredo que pintou em casa uma obra discutível para o momento de exceção que o país vivia. Escrito em 1974, Fazenda Modelo, de Chico Buarque, trazia a metáfora comum nas fábulas ao narrar as idas e vindas de seus bois-personagens dentro de uma grande fazenda.

Aqui se faz necessária, para os mais jovens, a seguinte digressão ou aparte:  com a repressão do regime militar, principalmente após o AI-5 de 1968, muitos artistas foram considerados subversivos e perigosos ao establishment de então, fazendo com que muitos saíssem do país em forçoso exílio. Era questão de salvar o próprio couro: ou se mandava ou corria o risco de parar no pau-de-arara. Chico Buarque foi parar na Itália. Em seu retorno ao Brasil, driblava os agentes da censura da Polícia Federal escrevendo letras de músicas ou livros carregados de metáforas. Vai que o censor não entendesse direito o que ele queria dizer e liberasse  a canção/livro?

Foi o caso de Fazenda Modelo. Guiados pelo boi Juvenal, líder daquele amplo curral, os bois descritos por Chico Buarque divertem o leitor em uma das mais contundentes críticas aos governos militares anteriores à data da obra, em especial ao governo extremamente opressivo de Emílio Garrastazu Médici, que governara o país entre 1969 e 1974. Foi o período mais sangrento contra os direitos civis que se tem notícia, perdendo, talvez, segundo alguns historiadores, para a ditadura Vargas.

Logo no início da obra, um mapa da fazenda e seus arredores. Mais adiante, o mesmo mapa, já com legendas mostrando a infra-estrutura da fazenda, que conta com aeroporto, motel e uma porrada de estádios de futebol. Na edição do Círculo do Livro, na página 71, a reprodução do pasquim local, enaltecendo o apoio popular ao boi Juvenal, com anúncios do tipo “(…) Sua fazenda precisa de uma KKKK, moto-serra elétrica, (…)” ou a inconfundível “(…)  Kulmaco, Tudo em materiais para construção, (…)”, numa possível alusão às empresas que estiveram por trás da construção da rodovia Transamazônica, um toque faraônico dos projetos nacionais perpetrados pelos governos militares, empurrados, acalentados e noticiados histericamente por Amaral Neto, O Repórter.

Sendo filho de Sérgio Buarque de Hollanda e com uma tremenda competência linguística, Chico reproduz na fábula Fazenda Modelo, Novela Pecuária o cenário social e político da época, com os seus barões famintos e mais uma série de figuras folclóricas que nada mais eram do que escroques oportunistas que se locupletavam de alguma maneira das situações que se descortinavam naquele momento. Uma série de situações que vão do cômico ao opressivo, mas sem um tom carregado de pesada crítica ao estado de coisas que imperavam naquele momento. Pelo contrário. Chico Buarque desfila um humor de cunho britanicamente irônico, tendo nessa subjacente ironia o substrato para pitadas equilibradas de deboche. Dificilmente um agente da censura chegaria a tamanha clarividência, o que, para nossa sorte, permitiu que o livro fosse reimpresso no final dos anos 1970.

Apesar do bom humor e de algumas passagens hilárias do livro, Chico mostra os dentes à caterva que naquele instante bem que tirava algum tipo de proveito da tragédia social e política que se abateu sobre o país naquelas décadas. Chico foi brilhante mais uma vez (permitam-me o pleonasmo): costurou a carapuça. Certamente teve muita gente na época que a vestiu confortavelmente, pessoas que deram graças a Deus quanto o autor iniciou nova fase literária a partir de Estorvo. Já outros sequer a usaram por conta exclusivamente da parca capacidade escolástica e intelectual.

O que podemos afirmar inicialmente é que Fazenda Modelo, Novela Pecuária mostra um Chico Buarque razoavelmente puto com certas figuras que pouco fizeram para que o merdelê não se instalasse do jeito que se instalou. Atrás do verniz bem humorado da obra, há um Chico que mete, outra vez, o dedo na ferida (olha o pleonasmo aí de novo!). Uma crítica contundente, mas não severa, de que, de certa maneira, também fomos responsáveis pela permanência de governos sanguinariamente opressores por conta de estarmos sempre às voltas com nosso próprio umbigo, afogados em nosso ridículo café pequeno.

Pode até ser que esteja redondamente enganado, uma vez que não li BudapesteLeite Derramado, obras mais recentes do Chico, mas acredito que Fazenda Modelo, Novela Pecuária foi o melhor livro que ele escreveu. Talvez pelo fato do autor ser mais jovem quando da materialização da obra, sem os vícios de intertextualidades ou subtextos presentes em seus últimos livros, já em idade avançada. Enfim, está lançado o desafio e a discussão. Uma coisa é certa: depois de ler Fazenda Modelo, há um sério risco do riso solto diante do bife de seu próximo almoço.





Ai, aaaaiii, aaaaaaiiiiii… Os referentes…

28 04 2012

Sinceramente, às vezes fico meio atônito diante de certas celeumas, tendências, ou seja lá o nome que se possa dar a certas discussões que aparecem na vida da gente.

No campo da literatura atualmente, há uma discussão meio deslocada, em geral sedimentada em teóricos que no século XXI já soam bem meia-boca, mas que, por causa da parca instrução costumeira de nossa inteligência brasileira, continuam fazendo sucesso. É muita gente distraída.

Em breve, teremos que baixar os glúteos na seringa e ver que os grandes nomes do século XX, na verdade, não eram tão bons quanto a gente imaginava. E ainda tem gente que emplaca doutoramento citando os falecidos. Ruim os doutorandos, ruim a universidade. É, a nova intelectualidade brasileira respira por aparelhos. Muito próximo da morte encefálica. Aliás, encefálica? Não foi à toa que o Supremo votou sobre interrupção da gravidez em casos de feto anencéfalo. Se valesse para os que estão respirando agora, haveria uma penca de gente na fila.

Maldades à parte, e tentando imprimir o mínimo de seriedade em um assunto que já não deveria ser levado tão à sério assim, alguém poderia me explicar o retorno dessa mania que, mesmo depois de tantas voltas que o mundo deu, deveria estar para lá de sepultado (ou, pelo menos, resolvido)? Por que ainda gastamos tempo com o velho assunto realidade e ficção?

Afinal de contas, esse assunto não deveria estar para lá de esgotado? Para que gastar tanto tempo precioso num assunto chato e que já deu o que tinha de dar?

Roland Barthes não decretou a morte do autor? Maurice Blanchot e Michel Foucault não especularam sobre a experiência do fora? Qual é o problema agora? Por que essa empulhação de novo em querer encontrar na vida pessoal do autor, em suas experiências passadas, a explicação de uma obra?

Por que essa eterna mania de servir o leitor com o livro, acompanhado de uma bula, guia, sabe-se lá o que, para explicar o que está escrito, para que o texto faça algum sentido ou tenha algum significado? Achei que tanto os leitores quanto os críticos já tivessem passado da fase oral. Achei que todo mundo já estivesse curtindo o tecido verbal e como o autor trabalhou a trama desse tecido. Qual é o problema agora?

O primeiro problema que vejo é que esse tipo de abordagem, esse tipo de discussão, dá uma chance enorme e danada para um plêiade de orelhudos arrotarem uma erudição que tenho lá minhas dúvidas. Como diz o Ademir Demarchi: de novo, o delírio da crítica. Pior do que o delírio, esse tipo de assunto é papel para cupins. Acaba atraindo gente rasa como um pires ocupando espaços de quem deveria ser do ramo.

Não, não há a menor necessidade de um autor ter vivenciado um universo específico para falar sobre tal assunto. Duvido que 80% dos autores que escreveram um romance de guerra tenham sequer empunhado uma arma de fogo. E nem por isso. Suas obras são de grande quilate, bem escritas, verossímeis e dignas de premiação em certos casos. Também não há o menor cabimento de um escritor se tornar um serial-killer por uns 4, 5, 6 meses a fim de caracterizar com rigor de veracidade um determinado personagem.

É óbvio que o olho que processa aquilo que se testemunha é único. Entendo que não se pode retirar do autor seu traço de personalização daquilo que vê. E não é esse o caso. Não se trata de colocar o autor para escanteio, nem de renegar a um segundo plano o autor ser humano. E é aí que reside a graça do negócio. A minha história de guerra será diferente de qualquer outro escritor. Será diferente da escrita pelo Ademir Demarchi, pelo Marcelo Ariel, pelo Manoel Herzog…

O meu olho é brasileiro. Por mais que vivencie uma realidade estranha ao meu habitat, ao meio meio de vida, captarei o diferente por esse olho que é meu: brasileiro, santista, meia-idade, masculino, oceânico, bilingue. Diferente de qualquer outro autor e esse é o tempero especial que cada um possui.

Posto isso e também a questão de que não há a menor necessidade de se vivenciar certas coisas (algumas delas bem escabrosas e abjetas), resta ao escritor algo de suma importância e que todo mundo já conhece (daí a perda da importância dessa discussão realidade e ficção): remeter-se ao referente.

É a habilidade de um autor remeter-se a um determinado referente que faz de uma obra especial. Ainda que o escritor tenha um ponto de partida dentro da realidade onde está inserido, jamais conseguirá um amplo domínio, um domínio total do assunto em questão. Logo, ele se remeterá a partes desse todo para garantir a verossimilhança de determinados trechos da obra e a agradabilidade diante de seu leitor. E estamos conversados.

Vasculhar na vida do autor algo que dê sentido à obra ou justifique certas passagens de um romance, de um conto, é uma tremenda empulhação. É afastar o leitor do livro, justificando a debilidade de uma obra ou de um escritor pela presunção de que a ficção é um ente menor do que a realidade quando os dois estão em pé de igualdade. É fustigar a chaga determinando que quanto maior for a correspondência daquela ficção com a realidade, melhor será a ficção.

Em suma: um tremendo desserviço. É insistir na decretação da inferioridade ficcional, de que ficção ou é obra menor ou simplesmente não existe. Mas é claro que ela não existe. Caso contrário, não seria chamada como tal. Entretanto, isso não significa que a prosa ficcional fique terminantemente reduzida a quanto ela pode ter de realidade.

A força da prosa ficcional está, inclusive, na habilidade de um autor se remeter a um referente que também é criação do próprio escritor, fruto da força e possibilidade criativa de quem tece o texto. Até mesmo o referente não precisa ser necessariamente um produto do meio, um ente real, concreto, corpóreo, com quem convivemos, almoçamos juntos ou tomamos café num fim-de-tarde. Não há teoria literária, sequer lei, que obrigue um escritor a somente se remeter a um referente que seja de carne e osso, que podemos encontrar a qualquer momento andando na rua.

A graça da prosa de ficção está aí: na oportunidade de se remeter a um referente pertencente a um mundo real ou não. Há amplas e quase infinitas possibilidades do autor se remeter a referentes que nada mais são do que criações suas também. Se há a graça na confusão entre realidade e ficção, a ausência dessa confusão é tão possível, saborosa e agradável quanto.  Portanto, façam-me o favor de deixar autores e leitores em paz que todo o resto se acerta, se ajusta.

Porque futucar vida de escritor na esperança de produzir uma bula para a leitura de uma obra torna a literatura um dolorido pé-no-saco. Não é à toa que leitor no Brasil anda fugindo de livro, de escritores e de todo universo literário. Lá vem aqueles caras arrogantes e chatos para cacete. É por essas e outras que entendo o desejo do Ariel em gravar um disco de sambas.





As vísceras animais

10 04 2012

Os Bichos, de Manoel Herzog
Qualquer semelhança entre os bichos que nos cercam e eventualmente tudo o que nos compõe deveria ser, apenas, mera coincidência. Principalmente porque não nos caberia vestir a carapuça, assim, de forma tão fragorosa. Sabemos de antemão que todos nós temos o nosso lado animalesco, mas, cá entre nós, não conheço nenhum cachorro, porco, galo autor de Novelas Exemplares ou que tenha chegado a uma assombrosa A Metafísica dos Costumes. Se há, por favor, avisem porque até hoje não o encontrei.

Comparar o homem aos bichos sempre é tentador, independente da época. O que diríamos das fábulas, animais que falam, com malícia, com bondade, com maldade, com inteligência e sabedoria ilustrativas, com o coração terno e a ira de aço. Se a intenção da fábula é contar estórias para as crianças dormirem, essa vocação humana de encontrar vida fora do humano (e talvez isso explique porque tanto o assunto vida extraterrestre faça a cabeça de tanta gente) persegue o inconsciente de civilizações inteiras há muito tempo. Isso sem contar justificativas pela Teoria Darwinista para um mau-caratismo latente, escorando-se e esgueirando-se na máxima de que somos todos animais, afinal, para trair, subverter, subtrair, atacar, desrespeitar e matar. Uma tentativa confusa e rasa de formular uma ética animalesca que nos auxilie na tarefa de justificar a ignomínia.

Não, não somos bichos. Somos seres humanos e, enquanto não provem o contrário, capazes de formular os mais abstratos pensamentos. Não se trata aqui de sermos superiores na natureza, melhores ou piores do que quaisquer seres que nos cercam. Somos diferentes, com capacidades que talvez outros seres na natureza não possuem. Teorias naturalistas são interessantes, mas, como qualquer teoria, com suas falhas.  E uma delas é querer justificar nossa atitude abjeta colocando o homem no mesmo balaio-de-gato das posturas diletantes de um cachorro. Eu não sou cachorro, não…

É essa tensão entre o humano e o animalesco que é a marca do romance de Manoel Herzog, Os Bichos. Qualquer leitura do tipo a comparação do homem, da política, da natureza humana, das relações sociais com a sordidez do mundo animal é maltratar a referida obra logo de saída. É leitura rasa de releases nitidamente feitos por jornalistas que ainda acreditam que a fortuna crítica é algo facilmente adquirido em cursos de comunicação social. Diante de releases tão sem profundidade, se eu fosse cachorro (ou qualquer outro tipo de bicho), reclamaria no Ministério Público.

O homem é unido ao bicho pelo basal. Essa é a teoria quase rocambolesca de Lira, pai de Agda, a princípio adversário político de Luís Theófilo, o personagem principal da história de Os Bichos. A hierarquia dos urubus, tese inicial de Lira nas primeiras páginas do romance, é uma belíssima teoria (ou justificativa) para se apossar do que não lhe pertence, respaldar a política do farinha pouca, meu pirão primeiro e açoitar um estado de coisas pela miséria humana cabalmente determinada pelo biológico, não pelo social. A ponte entre o biológico e o social que, de uma certa forma, acaba fazendo a cabeça de Luís Theófilo ao longo da narrativa, acaba trazendo a questão da imobilidade social para todos, como se uma sociedade de castas fosse determinado pelo que o ser biologicamente é.

A porta de entrada para essa sedução de Lira por um sebastianismo ufanista e triunfal, seu projeto pessoal de megalomania por se tratar de ser ele, Lira, sucessor natural dos luíses que governaram a França, numa mistura de misticismo cabalista com maçonaria, só acontece pela paixão carnal entre Luís Theófilo e Agda, filha de Lira. Aliás, Agda é um capítulo à parte. Manoel Herzog foi de uma felicidade, mas de uma felicidade na construção de Agda ao longo do romance, que merece um espaço a parte, aplausos e fascinação.

Herzog foi de uma felicidade em reconstituir o elemento fêmea dentro de uma concepção carnal-espiritual onde seria natural dentre as mulheres a lascívia como meio de vida. Se nenhum homem resiste a sedução-cio de uma mulher, Agda, mesmo tendo casado com o filho do prefeito na obediência primitiva de uma costura política simplesmente, é escrava da costela de Adão. Mal esfriado o defunto do filho do chefe do Executivo local, retorna aos braços de seu grande amor, botando na boca o motivo escuso e primevo de ainda manter e guardar o seu sopro sob o sol.

Agda, que ao mesmo tempo impera soberana pela lascívia, combustível essencial para a preservação da espécie, é frágil por ser um símbolo de uma sociedade que ainda não saiu da fase oral. É a mulher cabocla, mestiça, cujas intimidades e permissividades tanto encantam, que alinhava politicamente e rende o masculino pelo corpóreo. Colocam à mesma mesa o marido e o amante, o oficial e o oficioso, como se tal harmonização, às raias do impossível, fosse a coisa mais natural do mundo.

A sagacidade de Herzog em justapor o coito humano ao animal é um dos segredos, aqueles ingredientes um tanto especiais que chefe de cozinha nenhum revela, que procura trazer a Os Bichos sua singularidade. Ainda que nos nossos tempos é quase impossível algo verdadeiramente novo no que tange a escrita criativa, o intercalar da narrativa em torno de Luís Theófilo e vozes dos animais presentes na obra (o cachorro, o urubu, o porco, o galo e o homem) confere a velocidade e o passo da obra na sedução da leitura. A graça do livro é que em momento algum, por mais que Manoel Herzog tenha como idéia a superfície de convergência do basal entre o humano e o animalesco, há uma tentativa de colocar ombro-a-ombro o homem e o bicho.

A tensão em Os Bichos, de Manoel Herzog, vem justamente da tentativa de reforçar esse ponto de intersecção primitivo entre homem e animal em situações onde homem e animal estão desalinhados. Se lascívia de Agda é elementar num jogo de fecundação, a megalomania de Lira é um produto meramente humano. Bicho nenhum chegaria a tanto, por mais que as sociedades protetoras dos animais achem os bichos legais demais (no que eu concordo, aliás).

No rescaldo de Os Bichos, bicho é bicho, homem é homem. Não se trata de uma obra de elevado propósito estético, mas de questionamentos quanto a condição humana de se suportar em sua miséria. Não há confusão de papéis. Luís Theófilo vive suas angústias e contratempos ao longo da narrativa procurando nos bichos alguma possibilidade de aliança. Cai em si, em sua própria consciência, de que o bicho-homem é muito mais ardiloso do que o bicho-animal. São hábitos distintos em éticas distintas, que, em certos instantes, estão lado a lado. Tudo tão diferente e igual ao mesmo tempo.





Só existe um

16 03 2012


Há certos livros que são um perigo para quem lê. Para quem os comenta, perigo em dobro. Para quem lê, o perigo de se vestir a carapuça. Para quem se propõe a analisar a obra, o sério de risco de comparar o autor com esse ou aquele escritor. Há certos escritores que mostram, aqui e ali, certa intertextualidade com obras já lidas, certos traços que remetem a leituras anteriores. Perigo danado: vá que não conheço um determinado autor afundo e dou partida na minha metralhadora de besteiras?!

Isso sem contar que fazer comparações é cair naquele lance o mais da mesma coisa danado. Ora falta de recurso, ora desconhecimento do mundo vasto da literatura. Eterno e infinito.

O perigo de minha leitura de Notas de Arrebentação do escritor paulistano Marcelo Mirisola é a contaminação de minhas visitas a sua coluna no Congresso em Foco. Precisaria de um certo tempo para fazer a descompressão. Uma desassociação necessária para não confundir alhos com bugalhos. Entender momentos distintos de Mirisola, não atropelar a obra, sempre única e singular.

Notas de Arrebentação é uma reunião de textos que tem em comum a abordagem em cores nem tanto brilhantes e sem qualquer abrandamentos de esfuminho de seres e cenários tão comuns e tão peculiares. É o movimento do pincel sobre a tela com a energia de reproduzir, de certa maneira, o borrão que todos nós somos e escondemos por detrás de um certo verniz civilizatório. Caberia na página de abertura do livro: pare de viadagem!

Apesar da predileção do autor por Carta para Gombro e Rio Pantográfico (os dois textos de abertura de Notas), e apesar de alguns creditarem a O Azul do Filho Morto a melhor obra de Mirisola, Notas de Arrebentação é passagem obrigatória. Porque não cai no perigo da nefasta tendência de uma literatura paisagística nacional, acusada por Lêdo Ivo, e que tem em José de Alencar seu grande executor. Porque coloca qualquer um no lugar onde se deveria estar. Senta lá

Não ver o subjacente nesse livro de Marcelo Mirisola é questão fechada: alternativa a. burrice, alternativa b. má-vontade, alternativa c. deixe de sacanagem, por favor. Não ver, em Notas de Arrebentação, que a sociedade contemporânea, assim como os bebês, não passaram da fase oral, com a quantidade de falos boca adentro ao longo das situações descritas em Notas, ou é alternativa a ou alternativa b. Encher o saco por conta de uma linguagem direta e constante lascívia nos personagens é ficar no superficial, é não enxergar um enfastio produzido por uma sociedade de controle. Pior ainda, uma sociedade que, deliberadamente, escolheu ser babaca (leiam Tigelão de Açaí, presente em Notas).

Mirisola não se escora na manjadíssima manipulação (às vezes barata) da mancha de texto, tentando traduzir algum tipo de avant-guarde para iniciados. Não se escora na questão do registro, sacadíssimo isso, de encher o texto com dois pontos. Nem os reis do registro (Saramago, Joyce) abusavam desse tipo de recurso para estender as lindas penas de pavão a quem os lia. Pode até ser bacana isso, uma hora aqui, outra ali, mas com o patrimônio literário do século XX, é o mesmo que querer ensinar a geração Y como mexer num smartphone. O trouxa certamente será você. Live and let die.

Ficar preso no sequencial felatio in ore, ou cigarros às nadegas, ou no hilário personagem que para mostrar austeridade confessa sublimar a cópula, entregando-se ao império de Onan em infinitas homenagens a uma cadela, é ficar no superficial. É querer chegar ao final da leitura de Notas de Arrebentação morrendo de vontade de dizer que a obra é razoável. É desconhecer o quanto pode ser indutivo, perturbador e até mesmo depressivo uma Telefunken 79. Um referente ao império das sombras.

Alguns autores não entregam de bandeja pelo hermetismo do texto. Mirisola não entrega de bandeja pelo que Freud chamou de aparelho neural. Ele demanda de seu leitor, pelo menos, esse tipo de sintonia. Demanda tempo, vivência, certo tipo de conhecimento ou até mesmo de algum tipo de ilustração. É através de Mirisola que se entendem porque existem sagas crepúsculos: não é todo mundo que está tão preparado assim para o esconderijo não hermético. Talvez leitores mais novos, cabaços de vida, encontrem algum tipo de dificuldade, ainda que Marcelo Mirisola tenha escolhido o discurso direto e equilíbrio entre os períodos simples e compostos. A esses, um vampiro, um lobisomem e uma menina de sangue frio.

A teoria de Mirisola não fica escondida num tecido verbal vertiginoso de tão rococó. Está numa paisagem humana quase balzaquiana, só que mais rasgada. Eis a graça do negócio. Sem a percepção de que o texto é meio e não fim da crítica à sociedade fase oral, e que a sandice é coisa da lascívia e de uma falta de caráter tão comum entre nós em nosso tempo, o leitor ficará apenas no lugar comum.

Na teoria de Mirisola, pelo passeio em Notas de Arrebentação, teríamos o herói trágico? O bode finalmente dissecado? Seus personagens enfrentam aquilo que os abreviam? Aquilo que os colocariam na condição de uma perenidade pelo enfrentamento daquilo que lhes encurtam a vida?

Bom, cheguei aqui sem cair na cilada de fazer correspondências excessivas de intertextualidade. Compreendo aqueles que, por causa do superficial, não admiram as narrativas de Marcelo Mirisola. A disposição do autor como figura pública interferiria a agradabilidade de quem eventualmente fosse lê-lo. Pura perda de tempo essa do estético pelo ético. Mas isso não importa. O que importa mesmo é que, nos dias de hoje, um autor como Marcelo Mirisola talvez não se encontre. Ficou ímpar. Autor como Marcelo Mirisola, só outro Marcelo Mirisola. Marcelo Mirisola, só existe um.





Sabe quanto custa?

13 03 2012

Concordo plenamente que atrelar a criação artística tendo em vista viabilidades comerciais das peças em questão é um péssimo conselheiro. O ato da criação é livre. É tudo que se pede. Criar sob ou pensando em amarras tão venais acaba que todo potencial de uma obra se perde por tentar agradar dois amos.

Toda obra, de um jeito ou de outro, quando atinge seu objetivo de “forma da Conformidade a Fins de Objeto, na medida em que é percebida nele sem representação de um fim” (Kant), torna-se perene, transcende. A intenção de uma estética através do uso de uma forma e de uma linguagem (no caso da literatura), sem ter um fim por finalidade e completamente desinteressada (o que, num primeiro momento, geraria uma contradição inicial) é a graça do artista. Ou seja, se numa hora dessas, com todos esses pratos para equilibrar (inclusive o da contradição), o artista fica com a cabeça no quanto vale o show, já sabe que vai ter muita louça se espatifando no chão.

Só que uma vez a obra de arte materializada, dois destinos a escolher: gaveta ou público. No caso da gaveta, o custo é zero. Agora, se há intenção de mostrar tal materialização da criatividade para, ao menos, um pequeno grupo de pessoas, já se sabe que esse impacto da operação trará certas despesas, certos custos.

Se há custos para colocar a obra de arte à disposição do maior número de pessoas, termina-se aqui, e assim, o discurso da criação livre. O ato criativo, volto a repetir, nada deve ter de pecuniário, nem por detrás, nem em seu alicerce, nem como motivo. Só que a materialização da criatividade (a peça em si) só terá serventia se alcançar o maior número de gente.

Eis o cadafalso da arte: a corda vai ao pescoço e o chão se abre. A difusão do que foi criado tem custos financeiros, sim. Nem relógio trabalha de graça. Há uma logística e disposição humana em torno da peça que não escapa da cobiça e que não encontra outro motivador que não seja o vil metal.

Acompanhar de perto o processo de um manuscrito virar um livro não necessariamente abriu meus horizontes, mas me tornou uma espécie de abutre, o comedor de carniça aguardando a falência de algum ser vivo. E geralmente a falência desse ser vivo reside num discurso até oportuno, mas sem o menor dedo de maior reflexão quanto ao pós ato criativo. Chega a ser engraçado, como se o ser humano (incluindo os artistas) vivesse de brisa.

Se creio que o ato criativo não deve ser pautado absolutamente por qualquer traço de pecúnia, também não acho justo que a peça artística resultante desse ato não atenda as exigências de custo que todo objeto nesse mundo possui. Como também não acho justo limar o artista que, lá pelas tantas, decidiu viver de sua atividade artística.

Não acho justo severas críticas aos artistas que optaram em fazer de seus nomes uma marca. Porque até mesmo os puristas, quer gostem do fato ou não, acabam se tornando, mesmo que de forma muito inconsciente, uma marca. Isso mesmo: uma marca! Feito um objeto de consumo, aquele mesmo produto enfiado num mercado consumidor. Não acho justo, lá pelas tantas, virarem os obuzes da pureza criativa e do bom-gostismo para cima de artistas como Adriana Varejão e Beatriz Milhazes que decidiram passar as últimas duas décadas batalhando em várias frentes a fim de gerar uma reputação pública. Reputação que, aliás, nada interfere ou interferiu no ato criativo e na qualidade da obra dessas duas artistas.

É cansativo ver discursos sobre a transcendência da obra artística, que jamais deve ceder às promessas fúteis do dinheiro (no que eu concordo plenamente), e se esquecer que, depois de pronto, esse ato criativo materializado nada mais é do que um manuscrito a espera de se transformar em cópias. É justamente essa transformação que tem um custo prático que muitos artistas, sabe-se lá porque, gostariam que não existisse.

Pois bem, aos fatos, então: se a logística da transformação de uma manuscrito em cópia não pode contemplar regras de mercado, acredito, assim, que os artistas não devem, em hipótese alguma, ser remunerados por aquilo que criaram. Acho muito válido o discurso criaçãoXconsumo, mas levar tal discurso a cabo implica em renúncia de se viver (ou ser pago) por aquilo que se criou. Nessa, até o Ecad perderia efeito, provavelmente.

A prática desse discurso criaçãoXconsumo implica na pureza em excesso: só seria realmente artista aquele que tivesse qualquer outra profissão que não fosse a de artistaescritor, e que dela tirasse seu sustento e financiasse as edições e reimpressões de sua própria obra. Uma espécie de Moacir Scliar em início de carreira. O discurso estaria validado, nesse caso, finalmente.

Agora, demandar de uma casa editorial linha de investimento numa obra literária e tirar da editora o direito de tratá-la como produto a ser inserido no mercado por causa desse discurso de não contaminação do ato criativo pela pecúnia, não sei o que é pior. Soa como deboche, provocação vazia, ladinagem, malandragem. Seria o caso, então, de se eliminar de vez as leis de renúncia tributária e os concursos públicos de fomento às artes, bem como ações pontuais das respectivas secretarias de cultura?

O que mais dói nisso tudo é que esse discurso, graças ao advento da grande rede e das redes sociais, virou bandeira de alguns, uma espécie de esperto marketing pessoal, um tipo de cabotinagem da essência artística. Vira discurso de efeito, provavelmente para impressionar pessoas e aplacar as demandas de uma alma egocêntrica. Às vezes, gostaria de estar vivo para testemunhar até onde essa falta de fôlego dissertativo vai parar.





Fagocitose

16 02 2012

Beatriz Rezende alerta: a formação de guetos pode ser tremendamente prejudicial à literatura.

Funciona mais ou menos como na música do Saia Rodada, eu te puxo e tu me lambeEu te elogio e você me dá uma força. É uma coisa meio estranha, ou esquisita, mas a realidade entre os artistas do texto está cada vez mais assim: ação entre amigos.

Diz o ditado popular que quem tem padrinho não morre pagão. A pergunta é até onde isso vale, até onde vai isso.

Pode parecer estranho pacas, mas a formação de guetos tem muito por trás a velha máxima de efetivar a arte de produzir efeito sem causa. São várias as indagações, como, por exemplo, até que ponto autores estão, por detrás da confecção de seus textos, querendo colo e afago?

Até que ponto a preocupação é com o elogio e tapete vermelho? Estranho? Pode até ser um exagero de minha parte, mas a quantidade grande de autores muitas vezes esconde ou camufla certas questões que deveriam ser mais artísticas, ou pelo menos mais técnicas.

Id est, se a banda continuar nessa toada, começaremos a reparar que tem muito espertalhão que por conta de um excelente marketing pessoal, aparece nos cenários dito artísticos e culturais como escritor, mas uma abordagem mais precisa, aquela boa e velha hora de espremer o texto do sujeito, e não vai sobrar muito para contar a história.

Ou seja, é compreensível a preocupação de Beatriz Rezende: os guetos são forma de proteção, ora do ego, ora da pessoa pública do escritor, de uma observação mais técnica, precisa e detalhada do que foi escrito, de fato. Caberia, assim, a boa e velha máxima de que o nome valeria mais do que a obra.

Independente do que seja, muito do que se fala da falência do discurso literário meio que se deve ao excesso: de textos, de autores, edições e por aí vai…

Mas o excesso não deveria ser considerado algo ruim. Sempre é bom textos à vontade. Só que no meio dessa imensidão talvez haja uma preocupação grande com o tapete vermelho e o tecido verbal fica para segundo plano.

Fica, assim, a dúvida sobre essa tal falência. De repente, ela não existe. O que existe, talvez, seja uma quantidade de gente preparada para tal, de ambos os lado da mesa.