Sabe quanto custa?

13 03 2012

Concordo plenamente que atrelar a criação artística tendo em vista viabilidades comerciais das peças em questão é um péssimo conselheiro. O ato da criação é livre. É tudo que se pede. Criar sob ou pensando em amarras tão venais acaba que todo potencial de uma obra se perde por tentar agradar dois amos.

Toda obra, de um jeito ou de outro, quando atinge seu objetivo de “forma da Conformidade a Fins de Objeto, na medida em que é percebida nele sem representação de um fim” (Kant), torna-se perene, transcende. A intenção de uma estética através do uso de uma forma e de uma linguagem (no caso da literatura), sem ter um fim por finalidade e completamente desinteressada (o que, num primeiro momento, geraria uma contradição inicial) é a graça do artista. Ou seja, se numa hora dessas, com todos esses pratos para equilibrar (inclusive o da contradição), o artista fica com a cabeça no quanto vale o show, já sabe que vai ter muita louça se espatifando no chão.

Só que uma vez a obra de arte materializada, dois destinos a escolher: gaveta ou público. No caso da gaveta, o custo é zero. Agora, se há intenção de mostrar tal materialização da criatividade para, ao menos, um pequeno grupo de pessoas, já se sabe que esse impacto da operação trará certas despesas, certos custos.

Se há custos para colocar a obra de arte à disposição do maior número de pessoas, termina-se aqui, e assim, o discurso da criação livre. O ato criativo, volto a repetir, nada deve ter de pecuniário, nem por detrás, nem em seu alicerce, nem como motivo. Só que a materialização da criatividade (a peça em si) só terá serventia se alcançar o maior número de gente.

Eis o cadafalso da arte: a corda vai ao pescoço e o chão se abre. A difusão do que foi criado tem custos financeiros, sim. Nem relógio trabalha de graça. Há uma logística e disposição humana em torno da peça que não escapa da cobiça e que não encontra outro motivador que não seja o vil metal.

Acompanhar de perto o processo de um manuscrito virar um livro não necessariamente abriu meus horizontes, mas me tornou uma espécie de abutre, o comedor de carniça aguardando a falência de algum ser vivo. E geralmente a falência desse ser vivo reside num discurso até oportuno, mas sem o menor dedo de maior reflexão quanto ao pós ato criativo. Chega a ser engraçado, como se o ser humano (incluindo os artistas) vivesse de brisa.

Se creio que o ato criativo não deve ser pautado absolutamente por qualquer traço de pecúnia, também não acho justo que a peça artística resultante desse ato não atenda as exigências de custo que todo objeto nesse mundo possui. Como também não acho justo limar o artista que, lá pelas tantas, decidiu viver de sua atividade artística.

Não acho justo severas críticas aos artistas que optaram em fazer de seus nomes uma marca. Porque até mesmo os puristas, quer gostem do fato ou não, acabam se tornando, mesmo que de forma muito inconsciente, uma marca. Isso mesmo: uma marca! Feito um objeto de consumo, aquele mesmo produto enfiado num mercado consumidor. Não acho justo, lá pelas tantas, virarem os obuzes da pureza criativa e do bom-gostismo para cima de artistas como Adriana Varejão e Beatriz Milhazes que decidiram passar as últimas duas décadas batalhando em várias frentes a fim de gerar uma reputação pública. Reputação que, aliás, nada interfere ou interferiu no ato criativo e na qualidade da obra dessas duas artistas.

É cansativo ver discursos sobre a transcendência da obra artística, que jamais deve ceder às promessas fúteis do dinheiro (no que eu concordo plenamente), e se esquecer que, depois de pronto, esse ato criativo materializado nada mais é do que um manuscrito a espera de se transformar em cópias. É justamente essa transformação que tem um custo prático que muitos artistas, sabe-se lá porque, gostariam que não existisse.

Pois bem, aos fatos, então: se a logística da transformação de uma manuscrito em cópia não pode contemplar regras de mercado, acredito, assim, que os artistas não devem, em hipótese alguma, ser remunerados por aquilo que criaram. Acho muito válido o discurso criaçãoXconsumo, mas levar tal discurso a cabo implica em renúncia de se viver (ou ser pago) por aquilo que se criou. Nessa, até o Ecad perderia efeito, provavelmente.

A prática desse discurso criaçãoXconsumo implica na pureza em excesso: só seria realmente artista aquele que tivesse qualquer outra profissão que não fosse a de artistaescritor, e que dela tirasse seu sustento e financiasse as edições e reimpressões de sua própria obra. Uma espécie de Moacir Scliar em início de carreira. O discurso estaria validado, nesse caso, finalmente.

Agora, demandar de uma casa editorial linha de investimento numa obra literária e tirar da editora o direito de tratá-la como produto a ser inserido no mercado por causa desse discurso de não contaminação do ato criativo pela pecúnia, não sei o que é pior. Soa como deboche, provocação vazia, ladinagem, malandragem. Seria o caso, então, de se eliminar de vez as leis de renúncia tributária e os concursos públicos de fomento às artes, bem como ações pontuais das respectivas secretarias de cultura?

O que mais dói nisso tudo é que esse discurso, graças ao advento da grande rede e das redes sociais, virou bandeira de alguns, uma espécie de esperto marketing pessoal, um tipo de cabotinagem da essência artística. Vira discurso de efeito, provavelmente para impressionar pessoas e aplacar as demandas de uma alma egocêntrica. Às vezes, gostaria de estar vivo para testemunhar até onde essa falta de fôlego dissertativo vai parar.


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2 responses

15 03 2012
Andrea Chioccarello

bem, sou sua fã… gosto da maneira que voce escreve e da sua forma irônica e quase casual de ver a vida…mas tenho que confessar… o texto primeiramente parece uma vírgula, uma dúvida, um desabafo particular – de fatos/ acontecimentos/ vivências pessoais/pontuais…dá até a impressão que poderíamos discordar, concordar ou mesmo alancar argumentos de contestação…diante do seu depoimento
” Acompanhar de perto o processo de um manuscrito virar um livro não necessariamente abriu meus horizontes, mas me tornou uma espécie de abutre, o comedor de carniça aguardando a falência de algum ser vivo “… aaaaaaaaaaaaaa …. balançou minhas pernas… é difícil definir a fronteira da criação particular ( gavetas/diários/amigos íntimos) e da necessidade de ceder (algo) ao mercado??? Qual é a ilusão??? não consegui entender totalmente…
“Pois bem, aos fatos, então: se a logística da transformação de uma manuscrito em cópia não pode contemplar regras de mercado, acredito, assim, que os artistas não devem, em hipótese alguma, ser remunerados por aquilo que criaram. Acho muito válido o discurso criaçãoXconsumo, mas levar tal discurso a cabo implica em renúncia de se viver (ou ser pago) por aquilo que se criou. …”
Não existe nada mais justo do que ser pago ( e até viver) daquilo que se criou… Salve, salve!!!!

“Às vezes, gostaria de estar vivo para testemunhar até onde essa falta de fôlego dissertativo vai parar.”
…rsrsrs!!!! espero que os seus “escritos” encontrem o caminho….

15 03 2012
Marcelo Rayel

Cara Andréa,

Fico tremendamente lisonjeado com o lance da “fã”. Devo dizer que ao mesmo tempo é alegria e responsabilidade. Sempre é uma alegria encontrar a(o) leitora(o), de uma certa forma, é bacana levar as pessoas a algum tipo de reflexão ou debate.

Sim, tem um pouco de pessoal nisso. E vou dizer para você que o saco só não estourou para valer porque encontro na leitura de tudo uma maneira de secar um pouco a cabeça de chorume que devia ser produzido por quem quer seja, menos pelos artistas.

Concordo com o Nívio Mota, presidente do Concult, quando ele disse, numa entrevista ao CineZen, para o André Azenha, que não é porque a pessoa é artista que ela é bom-caráter ou dotado de ampla capacidade de reflexão. Bingo! Vejo isso de perto em algumas vezes. Não cabe aqui citar nome, nem tampouco generalização (há artistas brilhantes em vários sentidos, sim!). O problema é que uma parte até bem sucedida, inclusiva junto à mídia, queridos até dos corredores de alguns cursos de Letras espalhados por aí, parece que não pára muito para refletir sobre como a vida, real, funciona de fato.

Esse discurso em defesa do artista puro, que não deveria fazer projetos culturais, não se submeter a concursos e leis de renúncia tributária, e que fazem um banzé entre a criação do que se fez e a circulação da peça em questão é que anda me aborrecendo muito. De verdade. Entre um quadro pronto, a criação materializada, e sua circulação, sua disponibilidade para os olhos do público, vai uma distância considerável.

Nunca escondi de ninguém que ultimamente venho sendo procurado pela Realejo para realização de trabalhos profissionais. Em geral revisão, mas também aparecem traduções igualmente. Não cabe aqui discutir favorecimentos ou amizades porque RECEBO pelo trabalho prestado. É uma contratação profissional, assim como boa parte dos artistas da cidade são contratados por inúmeras pessoas para a execução de seus trabalhos respectivamente.

Só que participar do processo de um manuscrito que chega em minhas mãos e o livro que a pessoa compra na livraria ou numa noite de lançamento mudou e muito minha maneira de ver certas coisas. O manuscrito é a criação materializada, mas o livro, aquele que vai cair na mão do leitor, o que tecnicamente chamamos de cópia, é um outro processo, entram outros profissionais na confecção de tudo aquilo, é um trabalho cachorro com uma pressão, às vezes, de lascar.

Quando você fica do outro lado do prisma, ou do ponto de vista, como queira, é que se percebe que tem muito, mas muito artista que delira. Fazem uma confusão danada entre a criação e a chegada de sua materialização aos olhos do leitor/público. Um manuscrito é uma coisa, sua transformação em livro é outra muito, mas muito diferente.

O que a maioria dos artistas procuram nos concursos de fomento e nas leis de renúncia tributária é encontrar uma linha de crédito para a CIRCULAÇÃO, e não para a criação. Essa mania de encontrar discursinhos aqui e ali santanizando o artista que decide procurar ajuda para CIRCULAÇÃO de sua obra, ou é ingenuidade, ou é imbecilidade pura e simples, ou sei lá o que seja uma retórica tão mequetrefe como essa.

Esse discurso sem reflexão é que cansa! Nenhum artista cria pensando no quanto vai ganhar com aquela peça, ainda que eu seja um contumaz defensor de que o artista deve ser sempre bem pago por aquilo que criou. Agora, se é para fazer essa misturada entre criação e circulação, vamos combinar o seguinte: banque o próprio trabalho e pague pela própria circulação dela.

Uma casa editorial tem CNPJ, impostos a pagar. Tirar de uma empresa a possibilidade de contemplar lucro, seja qual for o negócio, é de uma ingenuidade a toda prova. Há várias casas editoriais que só procuram, na literatura, obras de arte. Não venha com o “o mais da mesma coisa”. Ainda assim, a empresa tem profissionais por detrás das cópias, contas a pagar, um montão de impostos. Às vezes, as próprias editoras injetam um baita dinheiro para ver o livro pronto, e o próprio autor vem com “purismo” de que a arte é promíscua, anda se vendendo, só serve de tiver valor financeiro, retorno.

Artistas até de renome que confundem criação com circulação. Perdoe-me Andrea, mas a circulação quem controla não são as artes, mas o mercado. Depois que passei a ler um economista que acabou sendo utilizado como livro de cabeceira de boa parte dos planos econômicos ao longo do século XX, John Maynard Keynes, logo percebi que NÓS SOMOS O MERCADO. Cada um de nós. Somos nós que pautamos esse espaço de troca que recebeu o nome de mercado. Quando não somos nós mesmos que ocupamos esse espaço.

Eu também acho muito saudável artista nenhum pagar pau para o vil metal. Só que lá pelas tantas, precisa circular o que criou. Sataniza o mercado ou qualquer um que precise de uma linha de crédito para CIRCULAÇÃO. Não é criação. Acabam quase todos tendo telhado de vidro: o discurso libertário é lindo, mas na hora do “vamos ver”, baixa o cu na seringa por causa da CIRCULAÇÃO.

CIRCULAÇÃO É LOGÍSTICA! Não se trata de arte. Não se pode apedrejar quem quer que seja porque optou em conseguir uma linha de financiamento para essa logística. Da Vinci não pensou em dinheiro quando pintou a Monalisa. Mas experimenta tirar o quadro do Louvre para uma exposição em São Paulo? A logística que é transportar o quadro para o outro lado do Atlântico e para um outro hemisfério? Bota isso na ponta do lápis?

Essa distinção o artista não faz, ou não quer fazer, sei lá. Ele acha que algum gaiato botou a Monalisa num fusca e baixou na Luz para mostrar o quadro na Pinacoteca. Por favor! Dá para colocar o cérebro para funcionar.

Quando me coloquei na descrição de uma abutre, é que, de uma maneira ou de outra, acabo chutando esse tipo de macumba. É cada discurso mal elaborado por aí que vira carniça, bastam dois minutos de exposição em qualquer rede social por aí.

Os artistas andam muito preocupados na expressão, mas não andam gastando quase nada em reflexão, a reflexão que nos faz prestar atenção no processo, da criação, principalmente. Sem reflexão não se elabora o processo da criação, sem reflexão e nos afastamos da técnica. É uma horda de pessoas que se auto-intitulam artistas, mas que tem como livro de cabeceira algo escrito pelo David Hume. É empirismo em cima de empirismo, em cima de empirismo, em cima de empirismo…

Espero que essas humildes linhas tenham, por agora, jogado alguma luz nas suas indagações. Serei sempre grato por sua atenção e carinho, e nem preciso dizer que estamos às ordens.

Um abraço!

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