O Marapé que não existe mais

17 12 2010
Cuíca no Velório, de Renê Ruas

Não, não é minha intenção maldizer o futuro que chegou. Também não vou colocar-me como intenso opositor das novidades, das tecnologias, das mudanças do mundo, dos costumes. Quem escreve um blog não pode cometer a desfaçatez de falar mal do novo. O novo sempre vem. Ainda que não saibamos se para melhor ou pior. Entretanto, é desumano o roubo de nosso direito à saudade, dos tempos idos, aqueles que temos a absoluta certeza de que éramos muito, mas muito mais felizes.

José Luiz Tahan foi de uma feliz sacação ao chegar primeiro nas escritas de Renê Ruas, lançando Cuíca no Velório – Samba de Arrelia e Arrabaldes, pelo selo da Realejo Livros, lançamento esse, inclusive, que aconteceu no dia 03 de dezembro último, na sede do Ouro Verde FC, na Rua 9 de Julho (hoje Rua do Samba), no Marapé, Santos-SP.
 
Renê Ruas, para os que ainda não o conhecem e não estão familiarizados, é um dos cavacos da mais tradicional roda-de-samba de Santos, a Roda de Samba do Ouro Verde. Morador do Marapé desde o nascimento, depois do casamento, inaugurou seu solar no José Menino, mas jamais deixou de transitar no bairro de sua criação e paixão. Renê viu , pelo Marapé, a metamorfose que ocorreu em toda a cidade. O fim das casas, da arquitetura típica do bairro, dando lugar aos prédios e a um progresso incontrolável. O pior disso tudo: os anos apagaram os personagens que o Marapé zelou com tanto carinho, objeto de suas memórias e escritas.
 
Já dizia Leon Tolstói, canta a tua aldeia e cantarás o mundo. E Renê, como forma de conter na escrita o desaparecimento daquele Marapé de antigamente e suas respectivas personalidades, conta em suas histórias parte relevante da cultura santista. De sua gente, de hábitos e manias da cidade, de como a cidade pulsava muito, mas muito mais do que pulsa hoje em dia.
 
Um elemento importante e vivo no livro de Renê é o registro. Renê Ruas resgata o jeito de falar malandro e faceiro que só em Santos se encontra. Ainda que um registro de tempos idos, de expressões que já não se usam mais, mas que marcam um tempo da cidade. E é justamente por esse registro que Renê prende o leitor. Ora para os santistas modernos, que desconhecem completamente aquele jeito de falar, ora para quem não é da cidade, que tem a oportunidade de saber como o santista se expressa.
 
E o santista se expressa no seco, sem plumas, com sua enorme capacidade de bordões e expressões de uma linguagem espertamente figurada. E que, obviamente, demanda do receptor um raciocínio ligeiro de associações. O que para os santistas é mamão-com-mel, para quem é de outra localidade o texto pode até soar como sofisticado. O registro encontrado no livro de Renê Ruas exige de seu leitor certa ligeireza de pensamento, antes que a onda o(a) carregue.
 
Renê Ruas deu ênfase aos personagens, objetos e ocorrências do Marapé de sua infância e juventude. Resolveu não correr sérios riscos. Ainda que muito hábil na construção de seu tecido verbal, evitou pavonear seu texto, até mesmo por compromisso à coerência.  Não cabe narrar a história de tantos malandros feito um Alves Redol ou Eça de Queiróz. Por isso, não arriscou: capricou no período simples e períodos compostos só em caso de extrema necessidade. Foi simples e feliz no eixo paradigmático, batendo firme e certeiro numa morfologia que passasse bem longe de uma erudição fora do contexto, sob sério risco de entediar seu leitor(a) e pô-lo(a) para dormir.
 
O humor está presente em quase todas as histórias narradas no livro. Há trechos, sim, não tão contentes assim, mas que com o talento de Renê se tornam retratos peculiares desses personagens. Um outro aspecto positivo no livro Cuíca no Velório é que Renê Ruas reverencia essas figuras comuns, quase anônimas, sem cair na armadilha do pitoresco (no sentido pictorial de descrições pesadas e infinitas que, se mal administradas, jogam o ritmo da narrativa para escanteio).
 
Essa é a cabeça do marapense: rápido no gatilho, sem o canto bonito de uma retórica elaborada. Mas que dentro dessa filosofia, nos surpreende com a sofisticação do trato com o dia-a-dia. Lantejoulas e luréx, só no carnaval. Pelo livro de Renê Ruas, se entende a simplicidade do bairro e sua gente. Pelas narrativas de Ruas, entendemos porque a Rua 9 de Julho de transformou na Rua do Samba.
 
Cuíca no Velório em mãos e podem se aprontar para rir (às vezes muito) das boas histórias de um Marapé que não existe mais. Confesso que, no próximo sábado, na Roda de Samba do Ouro Verde, indagarei o autor sobre a veracidade dos fatos e dos personagens contidos no livro. Porque as histórias chegam às raias do insólito. Quem ler
Cuíca no Velório vai me dar razão.
 
E toca o bonde, motorneiro…