Só existe um

16 03 2012


Há certos livros que são um perigo para quem lê. Para quem os comenta, perigo em dobro. Para quem lê, o perigo de se vestir a carapuça. Para quem se propõe a analisar a obra, o sério de risco de comparar o autor com esse ou aquele escritor. Há certos escritores que mostram, aqui e ali, certa intertextualidade com obras já lidas, certos traços que remetem a leituras anteriores. Perigo danado: vá que não conheço um determinado autor afundo e dou partida na minha metralhadora de besteiras?!

Isso sem contar que fazer comparações é cair naquele lance o mais da mesma coisa danado. Ora falta de recurso, ora desconhecimento do mundo vasto da literatura. Eterno e infinito.

O perigo de minha leitura de Notas de Arrebentação do escritor paulistano Marcelo Mirisola é a contaminação de minhas visitas a sua coluna no Congresso em Foco. Precisaria de um certo tempo para fazer a descompressão. Uma desassociação necessária para não confundir alhos com bugalhos. Entender momentos distintos de Mirisola, não atropelar a obra, sempre única e singular.

Notas de Arrebentação é uma reunião de textos que tem em comum a abordagem em cores nem tanto brilhantes e sem qualquer abrandamentos de esfuminho de seres e cenários tão comuns e tão peculiares. É o movimento do pincel sobre a tela com a energia de reproduzir, de certa maneira, o borrão que todos nós somos e escondemos por detrás de um certo verniz civilizatório. Caberia na página de abertura do livro: pare de viadagem!

Apesar da predileção do autor por Carta para Gombro e Rio Pantográfico (os dois textos de abertura de Notas), e apesar de alguns creditarem a O Azul do Filho Morto a melhor obra de Mirisola, Notas de Arrebentação é passagem obrigatória. Porque não cai no perigo da nefasta tendência de uma literatura paisagística nacional, acusada por Lêdo Ivo, e que tem em José de Alencar seu grande executor. Porque coloca qualquer um no lugar onde se deveria estar. Senta lá

Não ver o subjacente nesse livro de Marcelo Mirisola é questão fechada: alternativa a. burrice, alternativa b. má-vontade, alternativa c. deixe de sacanagem, por favor. Não ver, em Notas de Arrebentação, que a sociedade contemporânea, assim como os bebês, não passaram da fase oral, com a quantidade de falos boca adentro ao longo das situações descritas em Notas, ou é alternativa a ou alternativa b. Encher o saco por conta de uma linguagem direta e constante lascívia nos personagens é ficar no superficial, é não enxergar um enfastio produzido por uma sociedade de controle. Pior ainda, uma sociedade que, deliberadamente, escolheu ser babaca (leiam Tigelão de Açaí, presente em Notas).

Mirisola não se escora na manjadíssima manipulação (às vezes barata) da mancha de texto, tentando traduzir algum tipo de avant-guarde para iniciados. Não se escora na questão do registro, sacadíssimo isso, de encher o texto com dois pontos. Nem os reis do registro (Saramago, Joyce) abusavam desse tipo de recurso para estender as lindas penas de pavão a quem os lia. Pode até ser bacana isso, uma hora aqui, outra ali, mas com o patrimônio literário do século XX, é o mesmo que querer ensinar a geração Y como mexer num smartphone. O trouxa certamente será você. Live and let die.

Ficar preso no sequencial felatio in ore, ou cigarros às nadegas, ou no hilário personagem que para mostrar austeridade confessa sublimar a cópula, entregando-se ao império de Onan em infinitas homenagens a uma cadela, é ficar no superficial. É querer chegar ao final da leitura de Notas de Arrebentação morrendo de vontade de dizer que a obra é razoável. É desconhecer o quanto pode ser indutivo, perturbador e até mesmo depressivo uma Telefunken 79. Um referente ao império das sombras.

Alguns autores não entregam de bandeja pelo hermetismo do texto. Mirisola não entrega de bandeja pelo que Freud chamou de aparelho neural. Ele demanda de seu leitor, pelo menos, esse tipo de sintonia. Demanda tempo, vivência, certo tipo de conhecimento ou até mesmo de algum tipo de ilustração. É através de Mirisola que se entendem porque existem sagas crepúsculos: não é todo mundo que está tão preparado assim para o esconderijo não hermético. Talvez leitores mais novos, cabaços de vida, encontrem algum tipo de dificuldade, ainda que Marcelo Mirisola tenha escolhido o discurso direto e equilíbrio entre os períodos simples e compostos. A esses, um vampiro, um lobisomem e uma menina de sangue frio.

A teoria de Mirisola não fica escondida num tecido verbal vertiginoso de tão rococó. Está numa paisagem humana quase balzaquiana, só que mais rasgada. Eis a graça do negócio. Sem a percepção de que o texto é meio e não fim da crítica à sociedade fase oral, e que a sandice é coisa da lascívia e de uma falta de caráter tão comum entre nós em nosso tempo, o leitor ficará apenas no lugar comum.

Na teoria de Mirisola, pelo passeio em Notas de Arrebentação, teríamos o herói trágico? O bode finalmente dissecado? Seus personagens enfrentam aquilo que os abreviam? Aquilo que os colocariam na condição de uma perenidade pelo enfrentamento daquilo que lhes encurtam a vida?

Bom, cheguei aqui sem cair na cilada de fazer correspondências excessivas de intertextualidade. Compreendo aqueles que, por causa do superficial, não admiram as narrativas de Marcelo Mirisola. A disposição do autor como figura pública interferiria a agradabilidade de quem eventualmente fosse lê-lo. Pura perda de tempo essa do estético pelo ético. Mas isso não importa. O que importa mesmo é que, nos dias de hoje, um autor como Marcelo Mirisola talvez não se encontre. Ficou ímpar. Autor como Marcelo Mirisola, só outro Marcelo Mirisola. Marcelo Mirisola, só existe um.


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Uma resposta

31 03 2012
Marcio Callegaro

Aprecio muito a obra do Mirisola, gosto deste livro, e gostaria apenas de comentar que “Carta para Gombro” é uma carta-conto para o também excelente escritor (e pouco conhecido) Juliano Garcia Pessanha, de quem recomendo leitura. Outra avaliação fantástica do homem contemporâneo, porém, mais interna, subjetiva. De certo modo, os dois autores se complementam. Abraço.

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