Ai, aaaaiii, aaaaaaiiiiii… Os referentes…

28 04 2012

Sinceramente, às vezes fico meio atônito diante de certas celeumas, tendências, ou seja lá o nome que se possa dar a certas discussões que aparecem na vida da gente.

No campo da literatura atualmente, há uma discussão meio deslocada, em geral sedimentada em teóricos que no século XXI já soam bem meia-boca, mas que, por causa da parca instrução costumeira de nossa inteligência brasileira, continuam fazendo sucesso. É muita gente distraída.

Em breve, teremos que baixar os glúteos na seringa e ver que os grandes nomes do século XX, na verdade, não eram tão bons quanto a gente imaginava. E ainda tem gente que emplaca doutoramento citando os falecidos. Ruim os doutorandos, ruim a universidade. É, a nova intelectualidade brasileira respira por aparelhos. Muito próximo da morte encefálica. Aliás, encefálica? Não foi à toa que o Supremo votou sobre interrupção da gravidez em casos de feto anencéfalo. Se valesse para os que estão respirando agora, haveria uma penca de gente na fila.

Maldades à parte, e tentando imprimir o mínimo de seriedade em um assunto que já não deveria ser levado tão à sério assim, alguém poderia me explicar o retorno dessa mania que, mesmo depois de tantas voltas que o mundo deu, deveria estar para lá de sepultado (ou, pelo menos, resolvido)? Por que ainda gastamos tempo com o velho assunto realidade e ficção?

Afinal de contas, esse assunto não deveria estar para lá de esgotado? Para que gastar tanto tempo precioso num assunto chato e que já deu o que tinha de dar?

Roland Barthes não decretou a morte do autor? Maurice Blanchot e Michel Foucault não especularam sobre a experiência do fora? Qual é o problema agora? Por que essa empulhação de novo em querer encontrar na vida pessoal do autor, em suas experiências passadas, a explicação de uma obra?

Por que essa eterna mania de servir o leitor com o livro, acompanhado de uma bula, guia, sabe-se lá o que, para explicar o que está escrito, para que o texto faça algum sentido ou tenha algum significado? Achei que tanto os leitores quanto os críticos já tivessem passado da fase oral. Achei que todo mundo já estivesse curtindo o tecido verbal e como o autor trabalhou a trama desse tecido. Qual é o problema agora?

O primeiro problema que vejo é que esse tipo de abordagem, esse tipo de discussão, dá uma chance enorme e danada para um plêiade de orelhudos arrotarem uma erudição que tenho lá minhas dúvidas. Como diz o Ademir Demarchi: de novo, o delírio da crítica. Pior do que o delírio, esse tipo de assunto é papel para cupins. Acaba atraindo gente rasa como um pires ocupando espaços de quem deveria ser do ramo.

Não, não há a menor necessidade de um autor ter vivenciado um universo específico para falar sobre tal assunto. Duvido que 80% dos autores que escreveram um romance de guerra tenham sequer empunhado uma arma de fogo. E nem por isso. Suas obras são de grande quilate, bem escritas, verossímeis e dignas de premiação em certos casos. Também não há o menor cabimento de um escritor se tornar um serial-killer por uns 4, 5, 6 meses a fim de caracterizar com rigor de veracidade um determinado personagem.

É óbvio que o olho que processa aquilo que se testemunha é único. Entendo que não se pode retirar do autor seu traço de personalização daquilo que vê. E não é esse o caso. Não se trata de colocar o autor para escanteio, nem de renegar a um segundo plano o autor ser humano. E é aí que reside a graça do negócio. A minha história de guerra será diferente de qualquer outro escritor. Será diferente da escrita pelo Ademir Demarchi, pelo Marcelo Ariel, pelo Manoel Herzog…

O meu olho é brasileiro. Por mais que vivencie uma realidade estranha ao meu habitat, ao meio meio de vida, captarei o diferente por esse olho que é meu: brasileiro, santista, meia-idade, masculino, oceânico, bilingue. Diferente de qualquer outro autor e esse é o tempero especial que cada um possui.

Posto isso e também a questão de que não há a menor necessidade de se vivenciar certas coisas (algumas delas bem escabrosas e abjetas), resta ao escritor algo de suma importância e que todo mundo já conhece (daí a perda da importância dessa discussão realidade e ficção): remeter-se ao referente.

É a habilidade de um autor remeter-se a um determinado referente que faz de uma obra especial. Ainda que o escritor tenha um ponto de partida dentro da realidade onde está inserido, jamais conseguirá um amplo domínio, um domínio total do assunto em questão. Logo, ele se remeterá a partes desse todo para garantir a verossimilhança de determinados trechos da obra e a agradabilidade diante de seu leitor. E estamos conversados.

Vasculhar na vida do autor algo que dê sentido à obra ou justifique certas passagens de um romance, de um conto, é uma tremenda empulhação. É afastar o leitor do livro, justificando a debilidade de uma obra ou de um escritor pela presunção de que a ficção é um ente menor do que a realidade quando os dois estão em pé de igualdade. É fustigar a chaga determinando que quanto maior for a correspondência daquela ficção com a realidade, melhor será a ficção.

Em suma: um tremendo desserviço. É insistir na decretação da inferioridade ficcional, de que ficção ou é obra menor ou simplesmente não existe. Mas é claro que ela não existe. Caso contrário, não seria chamada como tal. Entretanto, isso não significa que a prosa ficcional fique terminantemente reduzida a quanto ela pode ter de realidade.

A força da prosa ficcional está, inclusive, na habilidade de um autor se remeter a um referente que também é criação do próprio escritor, fruto da força e possibilidade criativa de quem tece o texto. Até mesmo o referente não precisa ser necessariamente um produto do meio, um ente real, concreto, corpóreo, com quem convivemos, almoçamos juntos ou tomamos café num fim-de-tarde. Não há teoria literária, sequer lei, que obrigue um escritor a somente se remeter a um referente que seja de carne e osso, que podemos encontrar a qualquer momento andando na rua.

A graça da prosa de ficção está aí: na oportunidade de se remeter a um referente pertencente a um mundo real ou não. Há amplas e quase infinitas possibilidades do autor se remeter a referentes que nada mais são do que criações suas também. Se há a graça na confusão entre realidade e ficção, a ausência dessa confusão é tão possível, saborosa e agradável quanto.  Portanto, façam-me o favor de deixar autores e leitores em paz que todo o resto se acerta, se ajusta.

Porque futucar vida de escritor na esperança de produzir uma bula para a leitura de uma obra torna a literatura um dolorido pé-no-saco. Não é à toa que leitor no Brasil anda fugindo de livro, de escritores e de todo universo literário. Lá vem aqueles caras arrogantes e chatos para cacete. É por essas e outras que entendo o desejo do Ariel em gravar um disco de sambas.





Sabe quanto custa?

13 03 2012

Concordo plenamente que atrelar a criação artística tendo em vista viabilidades comerciais das peças em questão é um péssimo conselheiro. O ato da criação é livre. É tudo que se pede. Criar sob ou pensando em amarras tão venais acaba que todo potencial de uma obra se perde por tentar agradar dois amos.

Toda obra, de um jeito ou de outro, quando atinge seu objetivo de “forma da Conformidade a Fins de Objeto, na medida em que é percebida nele sem representação de um fim” (Kant), torna-se perene, transcende. A intenção de uma estética através do uso de uma forma e de uma linguagem (no caso da literatura), sem ter um fim por finalidade e completamente desinteressada (o que, num primeiro momento, geraria uma contradição inicial) é a graça do artista. Ou seja, se numa hora dessas, com todos esses pratos para equilibrar (inclusive o da contradição), o artista fica com a cabeça no quanto vale o show, já sabe que vai ter muita louça se espatifando no chão.

Só que uma vez a obra de arte materializada, dois destinos a escolher: gaveta ou público. No caso da gaveta, o custo é zero. Agora, se há intenção de mostrar tal materialização da criatividade para, ao menos, um pequeno grupo de pessoas, já se sabe que esse impacto da operação trará certas despesas, certos custos.

Se há custos para colocar a obra de arte à disposição do maior número de pessoas, termina-se aqui, e assim, o discurso da criação livre. O ato criativo, volto a repetir, nada deve ter de pecuniário, nem por detrás, nem em seu alicerce, nem como motivo. Só que a materialização da criatividade (a peça em si) só terá serventia se alcançar o maior número de gente.

Eis o cadafalso da arte: a corda vai ao pescoço e o chão se abre. A difusão do que foi criado tem custos financeiros, sim. Nem relógio trabalha de graça. Há uma logística e disposição humana em torno da peça que não escapa da cobiça e que não encontra outro motivador que não seja o vil metal.

Acompanhar de perto o processo de um manuscrito virar um livro não necessariamente abriu meus horizontes, mas me tornou uma espécie de abutre, o comedor de carniça aguardando a falência de algum ser vivo. E geralmente a falência desse ser vivo reside num discurso até oportuno, mas sem o menor dedo de maior reflexão quanto ao pós ato criativo. Chega a ser engraçado, como se o ser humano (incluindo os artistas) vivesse de brisa.

Se creio que o ato criativo não deve ser pautado absolutamente por qualquer traço de pecúnia, também não acho justo que a peça artística resultante desse ato não atenda as exigências de custo que todo objeto nesse mundo possui. Como também não acho justo limar o artista que, lá pelas tantas, decidiu viver de sua atividade artística.

Não acho justo severas críticas aos artistas que optaram em fazer de seus nomes uma marca. Porque até mesmo os puristas, quer gostem do fato ou não, acabam se tornando, mesmo que de forma muito inconsciente, uma marca. Isso mesmo: uma marca! Feito um objeto de consumo, aquele mesmo produto enfiado num mercado consumidor. Não acho justo, lá pelas tantas, virarem os obuzes da pureza criativa e do bom-gostismo para cima de artistas como Adriana Varejão e Beatriz Milhazes que decidiram passar as últimas duas décadas batalhando em várias frentes a fim de gerar uma reputação pública. Reputação que, aliás, nada interfere ou interferiu no ato criativo e na qualidade da obra dessas duas artistas.

É cansativo ver discursos sobre a transcendência da obra artística, que jamais deve ceder às promessas fúteis do dinheiro (no que eu concordo plenamente), e se esquecer que, depois de pronto, esse ato criativo materializado nada mais é do que um manuscrito a espera de se transformar em cópias. É justamente essa transformação que tem um custo prático que muitos artistas, sabe-se lá porque, gostariam que não existisse.

Pois bem, aos fatos, então: se a logística da transformação de uma manuscrito em cópia não pode contemplar regras de mercado, acredito, assim, que os artistas não devem, em hipótese alguma, ser remunerados por aquilo que criaram. Acho muito válido o discurso criaçãoXconsumo, mas levar tal discurso a cabo implica em renúncia de se viver (ou ser pago) por aquilo que se criou. Nessa, até o Ecad perderia efeito, provavelmente.

A prática desse discurso criaçãoXconsumo implica na pureza em excesso: só seria realmente artista aquele que tivesse qualquer outra profissão que não fosse a de artistaescritor, e que dela tirasse seu sustento e financiasse as edições e reimpressões de sua própria obra. Uma espécie de Moacir Scliar em início de carreira. O discurso estaria validado, nesse caso, finalmente.

Agora, demandar de uma casa editorial linha de investimento numa obra literária e tirar da editora o direito de tratá-la como produto a ser inserido no mercado por causa desse discurso de não contaminação do ato criativo pela pecúnia, não sei o que é pior. Soa como deboche, provocação vazia, ladinagem, malandragem. Seria o caso, então, de se eliminar de vez as leis de renúncia tributária e os concursos públicos de fomento às artes, bem como ações pontuais das respectivas secretarias de cultura?

O que mais dói nisso tudo é que esse discurso, graças ao advento da grande rede e das redes sociais, virou bandeira de alguns, uma espécie de esperto marketing pessoal, um tipo de cabotinagem da essência artística. Vira discurso de efeito, provavelmente para impressionar pessoas e aplacar as demandas de uma alma egocêntrica. Às vezes, gostaria de estar vivo para testemunhar até onde essa falta de fôlego dissertativo vai parar.