Ana é uma banana legal: além de não ver a hora de comer o macaco, detesta auto-publicação

19 01 2013

O editor André Schiffrin

Vi, revi e ainda estou a rever a entrevista do escritor franco-americano André Schiffrin, antigo editor da Pantheon Books por 30 anos e atualmente na The New Press, casa editorial criada por ele a fim de driblar o estado de coisas que anda por aí. Vai da aula a um certo tipo de estarrecimento. E ao final da entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TV Cultura, São Paulo, uma triste sensação de que, no brejo, só o chifre da vaca (quando muito!) está do lado de fora.

A entrevista dá pauta para posts e mais posts. Para não encher a paciência, às vezes curta, do(a) leitor(a), abordarei a primeira grande questão contida no primeiro bloco do programa: a auto-publicação.

Foi o único ponto que discordei do entrevistado. Até mesmo porque ele, Schiffrin, utilizou o recurso de abrir sua própria editora para que, mais a frente, não presenciasse seus livros barrados por outras casas editoriais. Ainda que isso não seja considerado, fundamentalmente, auto-publicação, a linha entre a abertura da própria editora, independente dos nobres motivos que fizeram Schiffrin sair do lugar, e a auto-publicação começa a ficar bem tênue.

Ninguém é maluco de dispensar, na cara dura, a experiência de um editor como André Schiffrin, nem tampouco considerar o trabalho de um editor dispensável. Tanto que os autores possuem um grupo de primeiras leituras, que de certa forma atuam como orientadores daquele que escreve.

Eis, assim, o primeiro grande questionamento: estariam todos os editores na envergadura de um André Schiffrin? Pior, estariam os editores inclinados a fazer um trabalho de mediação entre o autor e sua obra como fazem os(as) primeiras leituras? Ainda que essa mediação não seja tarefa de absolutamente ninguém dentro de uma casa editorial, qual seria, então, a atuação do editor e assistentes nesse novíssimo mundo que se descortina dentro do mercado editorial?

Porque a impressão que se tem, do lado de fora, de quem está em uma das duas pontas da linha (escritores e leitores), é que nas editoras não se lê sequer bula de remédio para conhecimento da posologia e contra-indicações. Sem o exagero do enunciado anterior, estariam os acionistas de casas editoriais internacionais, nessas mergings malucas que hoje pegam em cheio o Brasil, fazendo um mal danado à paz e ao sossego necessários para a devida produtividade dos editores?

A auto-publicação empesteia o mercado? Sem a menor sombra de dúvida. Só que com esse samba-lê-lê que temos nos dias de hoje, quem deseja encontrar seu público faz o que? Senta e chora? Vai à igreja e ora? Aguarda a intervenção divina? Sai correndo beijando o anel do senhor-contratador e fica em casa esperando que um peso-pesado dos livros estenda o tapete vermelho para que o escritor em questão entre pela porta da frente?

Sem a auto-publicação, não encontraríamos boas obras como a de Ricardo Carlaccio, Um Brinde em Copos de Plástico, Renato Negrão com o seu Vicente Viciado, ou Abismo Poente, de Whisner Fraga, nem seríamos felizmente pegos de surpresa por nomes como a de Antônio Xerxenesky e Javier Arancibia Contreras. Se os citados esperassem a efeméride das cônjuges dos editores não dormirem de calça jeans ou o alinhamento dos astros, como nós, leitores, ficaríamos?

A auto-publicação é essencial para o surgimento do novo. Sem a auto-publicação não há renovação, o escritor não encontra o público que está esperando seu toque. Ainda que o número de novos títulos seja colossal, não acho de bom tom proibir o folião de aproveitar os festejos de mômo. E se não tem bloco para brincar, que faça o seu (como fez André Schiffrin)!

Se há escritores iniciantes, aqueles que ainda tem muito o que aprender, não haveria igualmente os editores iniciantes, que quando o assunto é poética e/ou prosa de ficção se atrapalham demais? O errado nessa jogada só são o escritor, sempre ruim de serviço, e o leitor, com os dedos engordurados de sacanagem requentada de cinquenta tons de alguma cor? Somente eles são os responsáveis pelo descalabro que estamos presenciando por aí? Mais ninguém?! Os meeiros do mercado editorial vão para o céu, então?!

Seria o caso da falta de coragem dos meeiros, só indo de boa quando sai o dinheiro dos Facults, ProAcs e similares, o famoso risco-zero?! Casa editorial e livraria tem realmente de crescer 15% ao ano? Há tanta necessidade disso? No meu corpo-a-corpo com escritores e leitores, uma coisa posso garantir: ambos estão dando a cara a tapa! As duas pontas da linha não andam com muito medo de cara-feia.

A Ana é uma dessas bananas que também acham que tem muito ibope para pouca programação. Mas como não vê a hora de comer o macaco, pouco se lhe dá esse lance de renovaçãopoesiaprosa de ficção. Tudo isso, para ela, é um saco! Não é à toa que ela deteste auto-publicação. É de se saber o que ela fará quando tanta repaginação bater a sua porta.

Leia também: Ana é uma banana legal! Um dia, ela comerá o macaco!

Veja a íntegra da entrevista:





Da exuberância e ousadia

14 01 2013

Vicente Viciado, de Renato Negrão

Há muito, tanto nesse blog quanto no Pela Proa, venho afirmando que a literatura produzida no estado de Minas Gerais é uma literatura da exuberância. A literatura mineira é naturalmente exuberante. É difícil tecnicamente explicar esse traço encontrado nos escritos de boa parte dos autores mineiros. E diríamos que não é só na literatura apenas. Quem já ouviu o Toninho Horta, por exemplo, ou se amarrou no Clube da Esquina, sabe muito bem do que estou falando.

Murilo Rubião, João Guimarães Rosa, Roberto Drummond, Autran Dourado, Adélia Prado, Fernando Sabino… É bom eu parar por aqui porque certamente cometerei injustiças, esquecerei nomes que não poderia esquecer.

Em geral os autores mineiros trabalham bem mais no eixo paradigmático, o que, quase sempre, permite uma excelente impressão diante do leitor mais traquejado. E são exímios introdutores ao amor pela leitura porque não abusam do eixo sintagmático. Os autores mineiros vão de boa: reproduzem inicialmente a sintaxe sofisticada do homem comum mineiro para, mais a frente, criar uma sintaxe artisticamente insólita. Não tem como não se apaixonar.

Primeiramente, peço perdão pelo preâmbulo literatura mineira é exuberante. É um pleonasmo dolorido e horroso. Se é literatura mineira, associá-la à palavra exuberante é chover no molhado. É o mesmo que dizer que o fogo é quente. Os mineiros sabem ser irreverentes (irreverente no sentido de não reverenciar o common knowledge), revolucionários na trama de seus tecidos verbais e absurdamente ousados ao peitar bom-mocismos academicistas com uma sintaxe de tirar o cidadão do eixo.

No Brasil atualmente tem uns cabras que não estão para brincadeira. De Milton Hatoum a Antônio Xerxenesky, passando por Paulo Lins, Humberto Werneck (Deus seja louvado!), Lourenço Mutarelli, Ana Paula Maia, Maria Alzira Brum Lemos, Manoel Herzog, Marcelo Ariel, Modesto Carone, Ademir Demarchi, Alice Ruiz, Líria Porto, Flávio Viegas Amoreira e por aí vai…

Na seção Minas Gerais, além dos nomes citados de Humerto Werneck (Deus seja louvado!) e Líria Porto (descobri a Líria numa conversa que tive com a Alice Ruiz), cito dois que se transformaram no meu xodóId est, se falarem mal deles, vão comprar briga comigo (parcial pacas!): o quebra-muros de Ituiutaba, Whisner Fraga, e o homem urbano Renato Negrão.

Parcial, sim… Parcial. Ah, Marcelo, cê diz isso porque cê morou em beagá. Justamente! Entendo isso como conhecimento de causa. E mesmo quem nunca nem pôs os pés em Minas Gerais assina embaixo quando digo que a literatura mineira é exuberante. Passam-se os mundos e os calendários maias e a força da escrita vinda desse estado brasileiro continua a mesma. Só os néscios, incautos e apedeutas não se apaixonariam.

Como estou ainda no processo de leitura de Abismo PoenteSol Entre Noites do Whisner Fraga, o comentário de hoje é sobre o mais recente livro do poeta belorizontino Renato Negrão, com quem tive a honra de celebrar seu aniversário (sim, ele também é um capricorniano caprichoso!) na casa do Téo Ruiz e da Estrela Leminski, onde esteve hospedado recentemente.

Vicente Viciado é o mais recente trabalho de Renato Negrão. Se nos poemas publicados nesse livro encontramos a mesma exuberância comum na literatura mineira em geral, dessa vez encontramos a veia urbana de uma cidade pouco conhecida ainda dos brasileiros. Uma grande capital com sua mazelas e seus encantos (como qualquer lugar do mundo), mas que pratica o encanto em cada esquina dessa metrópole.

E devo jogar esse cadáver no colo da grande mídia, que só conhece Rio de Janeiro e São Paulo. O desconhecimento de cidades como Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba, Recife, Salvador, Florianópolis, Fortaleza, São Luiz e mais uma penca de capitais de estado é uma cegueira que envergonha a cultura nacional. Se pegarmos cidades não capital de estado como Londrina, Campinas, São José dos Campos, Juiz de Fora, Santos, Maringá, Ribeirão Preto, Petrolina, São José do Rio Preto, entre milhares que poderíamos citar aqui, é para posicionar a corda no lustre.

O poeta Renato Negrão apresenta a Belo Horizonte urbana, a metrópole que cada um de nós deveria conhecer (e bem!). Negão é o bicho-urbano-belorizontino que consegue, como ninguém, captar, interiorizar, potencializar, subverter e apresentar a Belo Horizonte urbis, a fauna da capital mineira, suas espécies, sua cadeia-alimentar, seu bioma.

Renato Negrão é o filho mais nobre, o filho-de-algo, o fidalgo que a veia urbana belorizontina pôs no mundo. O filho que completou a contemplação urbana paulistana da física dos interesses com tudo aquilo que justifica o movimento de alma (como diria Renata Pallotini). Aliás, nisso os mineiros são impagáveis e imbatíveis. A mesma parcimônia e sabedoria do homem comum mineiro em lidar com o retrato cru da vida pode ser, ouso dizer, amplamente encontrada na poética de Negrão.

O que diferencia sua poética dos demais nomes consagrados da literatura mineira e nacional é a sacação urbana de característica unicamente belorizontina. Não, é impossível encontrar esse olhar estando em São Paulo, no Rio ou em qualquer outro lugar do país. É uma alma cujo c0rpo, um dia, precisa estar em Belo Horizonte. Algo que o leitor não tem como escapar.

Ciborgue me deu

ciborgue me deu
um beijo na boca e me disse

não me peça
para gostar de seus poemas ou que
você goste dos meus

ou não me impeça
de não gostar dos meus ou de
gostar dos seus

porque tudo quanto é aço
silício alicate
interno e déu aqui

tudo quanto é melopéia
logopéia ali
e de lá a fanopéia nada traz

para a elípse entre nós
proezas no breu

O ciborgue de Cidade de Minas não se atém ao objeto beijado, não usa o ósculo como veículo de acepção. O beijo do ciborgue vai ao encontro descompromissado da leitura e da poesia sem as enfadonhas obrigações de julgamento (gostar ou não).  A poesia que toca o ciborgue é a feliz comunhão produzida pelo acaso da atração, esse sabor de aventura que tanto fascina o ser humano. O urbano moderno belorizontino (sem se perder no materialismo instrumental) acalenta a natureza meio carnal, meio etérea, que, às vezes, nos empurra, em outras, atravanca. E sempre o final feliz das luzes apagadas, o fim das distâncias corpóreas, o fechar os olhos e transitar numa dimensão alegremente sinestésica. Ô, coisa boa!

Um traço na poética de Renato Negrão, presente em Vicente Viciado, é o da revelação dos prazeres ocultos. Aquele prazer culpado, comprometedor, vivenciado nas sombras das alcovas BR-040, na esperança de que o crime, um dia, prescreva.

E assim

ofegante
o delegado pediu
a garota de programa
que lhe introduzisse
um pinto de borracha
vinte e três centímetros

a princípio sem ky
& depois com

alertado porém
se fofoca virasse
ele fudido fadado
ela fada fudida
a boca com formiga
no desossário
do minério

Negrão percebe os prazeres particulares subjacentes no bioma urbano belorizontino. Ele não olha a cidade somente com o prazer da contemplação, o olhar repleto do lirismo saudoso dos tempos de outrora, ou o coração carregado da pureza e ingenuidade artística do poeta que se pôs a parte no mundo pelo seu estado especial de criação. Renato Negrão joga nas onze. É autor do pecado e concede o perdão, percebe a lascívia e compartilha o clímax, não deleta o ponto g do limite entre o prazer e a tara perturbadora que ocorre sob a luz do abat-jour ou nas sombras das alcovas. no desossário/do minério é o arremate para lá de perfeito desse mundo Forest Hill que todo leitor que se pretende entender a poesia atual belorizontina deveria enfiar na carne. É possível, inclusive, sentir o cheiro do minério depois de uma noite perdida no fausto do gozo.

Essa contemporaneidade feita de urbano na poética de Negrão, contudo, não impede o leitor de encontrar a indução da beleza da arte no coração de carne. Sabedor de que nem só de carne vive o homem, o autor de Vicente Viciado nos coloca diante da cidade como possibilidade de nutrir a alma com o encanto do espaço-movimento da palavra e do gesto.

Coreografia

o espaço coreográfico da palavra
e sua aplicabilidade semântica
são pensados como estímulo
a outras configurações corporais

nossos corpos merecem e podem
dar respostas mais criativas
ao textos urbanos para além
de suas palavras de ordem
e de consumo

gestos como construção
transitoriedade como eixo
dispersão como método (…)

O poeta aqui nos apresenta a segunda pele do espaço virtual, condição sine qua non da criação (o nada, a ausência da coisa em si, objeto de estudo de uma boa disciplina de literatura comparada ou teoria da literatura num bom curso de Letras!). Renato Negrão nos impede a visão naïve de poéticas que colocam ao rés-do-chão o concreto armado do urbano. Ele nos indica que é possível, sim, criar o gesto incomum, o movimento novo, a sensibilidade como valor estético a partir do cenário diante dos nossos olhos. O que já está estabelecido não é fator de cerceamento ou impeditivo da expressão do corpo. A criação do corpo (o gesto) surge entre os rigores desse cenário e, sim, é capaz de ser surpreendente pelo inusitado desse ineditismo.

Renato Negrão percebe a cidade não como um desafio a se transpor, mas a mais preciosa companhia na arte de criar. E que, talvez, essa arte, além de demandar engenho, exija um pequeno toque apenas: a doçura de se estar sensível a perceber.

Vicente Viciado resgata, na segunda metade da obra, um hábito comum nas obras literárias brasileiras dos anos 1970 conhecido como carona. Nada mais é do que a participação de outro artista com textos que dialogam por afinidade estética com o universo do livro e do autor.

E na obra em questão, Marcelo Negrão trouxe quatro letras de músicas do CD Verdadeiro, do rapper belorizontino Das Quebradas. “(…) Suas letras tem a mobilidade de registro, funcionando bem tanto no formato canção, quanto pode funcionar no universo do papel, (…) com um texto impulsionado pelo humor e uma escrita ágil que se nutre de palavras de idiomas diversos, siglas, apelidos, fala popular urbana, provocando a linguagem, desestabilizando discursos para além das polarizações maniqueístas de “bem e mal” tão presentes no rap. (…)”

Renato Negrão, em seu Vicente Viciadoapresenta a Belo Horizonte que passei a conhecer, admirar e gostar desde 1994. A de verdade, sem a tradicional família mineira (às vezes, motivo de anedotas entre os próprios belorizontinos), desancando o machão mineiro e trazendo para perto uma sutil sensualidade em quase tudo que habita na capital mineira. Renato Negrão é o principal expoente do urbano na poesia belorizontina, reverenciando a exuberância e ousando na liberdade de intuir novos pensamentos sobre o porquê da arte dentro da civilidade áspera do concreto armado, do asfalto e dos viadutos. E, por favor, ouçam: não conhecer um pouco de Belo Horizonte pode ser algo muito perigoso. Não conhecer por completo pode ser fatal!





Eu podia estar roubando, eu podia estar matando.

11 08 2011

"51 Mendicantos", de Paulo de Toledo

          Um dos grandes atrativos da áspera vida nas cidades é a fauna, o conjunto de júbilos, gozos e misérias humanas. A vida no campo é muito melhor, mais tranquila, o ar mais puro, temos mais verde. O que sobra nas cidades são as histórias que não deram certo. Vale, então, aquela velha máxima de que a história é sempre contada por aqueles que venceram. Nem sempre. O poeta santista Paulo de Toledo, um poeta observador, aquele observador com o olho curioso, recria a figura urbana do mendigo em sua obra 51 Mendicantos. Não. Não há aqui um corte profundo que nos identifique com os mendigos, nem tampouco um ordenamento meio na base da autópsia do que deu errado na vida dessas pessoas. Também não há uma tentativa de entender o que é um mendigo, como pensa, porque chegou naquele estado. Se a busca for por mandamentos da mendicância, é bom tirar o cavalinho da chuva igualmente. Aqui se trata de como a imagem de um ser em sofrimento pode recriar um espaço imaginário a partir do olho de quem vê.
          E Paulo de Toledo não economizou observação e imaginação para reconstruir um universo que, quase sempre, nos passa completamente desapercebido. De fato, num primeiro momento o trem acaba soando estranho pacas. Mas é surpreendente ver um poeta deitar os olhos nessa figura humana sempre associada a um sabor de derrota, de fracasso. Essa imagem de um homem vencido pela estranheza dos códigos urbanos, dos códigos sociais, ligado a inaptidão de se adequar a costumes que até mesmo nós (não mendigos) questionamos sua validade, seu sentido.
           A primeira leitura da obra de Paulo de Toledo deixou em minha boca um leve e imperceptível sabor de traquinagem. Sabe aquele garoto traquinas que escarnece do mendigo, que lhe atira coisas, só por passatempo, molecagem? Sabia que minha primeira leitura era um equívoco grande demais para continuar nela. Releitura, releitura, releitura… E depois achei a imaginação a serviço do registro de um personagem das cidades tão de carne-e-osso quanto todos nós. People we despise.
          Se Paulo de Toledo corrige esse equívoco, tinha de corrigir meu equívoco de uma primeira impressão tão rasteira, parca, fraca, débil. E descobri a figura do mendigo como um ser sentimental, racional, emocional, embutido na invisibilidade por nós produzida, essa invisibilidade deplorável de não enxergar os seres que nos cercam exceto pelo que mostram, ostentam, induzem, pelo que vestem, dirigem, pelo lugar onde moram, pela poupuda conta bancária.
          51 Mendicantos definitivamente é um livro onde o preconceito foi jogado fora, passa longe. Lá temos o mendigo, o herói desses poemas, como a mais fina, pura e cognoscível persona poética. Paulo de Toledo teve a felicidade de confir-lhe a autoridade artística, um posto que não fica nas mãos do autor, mas que transitoriamente termina na personalidade frágil, exposta e dependente de tudo que um mendigo possa ter.
          Sim, o mendigo de Paulo de Toledo possui ideal estético capaz de sensibilizá-lo ao que Immanuel Kant chamou de a forma da conformidade a fins de objeto. O mendigo a vê, e a ela é atraído, sem rodeios, sem protocolos de uma vida urbana débil, cheia de pífias idéias de ordem, que nada mais faz do que tolher brutalmente a sensibilidade de qualquer persona poética (ou artística).
nem tudo são flores
 
com o cacete o guarda dá no pé do ouvido
do mendigo que brincava comovido
de bem-me-quer com uma flor do município
 
(TOLEDO, Paulo de. 51 Mendicamentos, ilustrações de Sandro Saraiva. Porto Alegre, Editora Éblis, 2007.)

O poeta e escritor Paulo de Toledo

          Três versos em cada Mendicanto e a figura do mendigo completa seu desfile pelas questões humanas de uma subserviência pecuniária e tecnológica que expõe o ser humano a sua própria rugosidade feito um ralador de carne. O mendigo luta. Universaliza-se pelo ponto de intersecção com o leitor: a alma, o sopro, a elevação da arte, do artístico. Desde que o leitor não esteja impregnado pela aparência e não fique a abraçar o que lhe exposto. Um leitor que vai muito mais além do que os olhos apreendem. 
           Diferente de Poesia é Não, de Estrela Leminski (onde o poema é perpassado mais pela emoção do que pela imagem), 51 Mendicantos uniria David Hume e Maurice Blanchot no que tange a imagem & imaginário se ambos não fossem um tanto descontinuados em relação à imagem. Se para Hume tanto a impressão quanto a idéia se diferenciariam em relação a sua intensidade (a impressão é mais forte, portanto, inegociável), é na imagem em que elas se baseiam num primeiro contato com o objeto de nossa contemplação. Mas sem nada por trás desse objeto. É na inegociabilidade da impressão que arrefecemos sua intensidade e a tornamos idéia. Mas sem a loucura de acreditar que haja algo por trás do signo que invada nossa visão.
          Prudente Blanchot ter mantido a distância necessária entre o signo e a coisa real. Ainda que afirme na simultaneidade entre objeto e imagem, não correu o risco de alegar pesos iguais para ambos. Apenas afirmou que um não vem desassociado do outro. Meu único descontentamento com Blanchot vem com a não abordagem empírica da imagem (impressão & idéia) e com a não contemplação do caráter arbitrário e convencional do signo linguístico indicado por Ferdinand de Saussure, o que acaba tirando da jogada o(a) amado(a) leitor(a) num processo palimpsesto, de conclusão de um ciclo cognitivo. Mas isso é uma história para um outro por do sol…
          Se para Blanchot a imagem é uma outra possibilidade do ser, é na idéia (Hume, o arrefecimento da impressão) que o poeta Paulo de Toledo recria um espaço literário onde as palavras e expressões em língua inglesa presentes em 51 Mendicantos conota a sofisticação de uma tralha técnica, científica e tecnológica capaz de excluir esse ou aquele por situação finaceira e inadequação adaptiva em mundo sem explicação e sem sentido.
          A idéia de quem é o mendigo presente em seus poemas faz com que Paulo de Toledo corrobore a autoridade de persona poética, sem cair no perigoso apelo de transformá-lo num herói virtuoso. A idéia dessa imagem recria o espaço literário e a palavra literária (Blanchot) para intensificar a força dessa idéia, tornando-a impressão dentro desse espaço e, consequentemente, inegociável outra vez.
          Paulo de Toledo, assim, reforça sua opção mais empirista em 51 Mendicantos, mas com a singela cumplicidade de seu(ua) leitor(a). Transforma-o(a) não num(a) interlocutor(a), mas numa testemunha dos passos errantes do mendigo, em sua jornada, em sua epopéia de respirar simplesmente. Dá um passo além de Blanchot por não ignorar o(a) leitor(a) como integrante de relevância dentro de um ciclo comunicativo, de reconhecimento, de entendimento. A notícia de que o ser ao seu lado existe. Com todas as suas complexidades imateriais.