Rhinocéros

31 10 2010
O dramaturgo Eugènè Ionescu

O dramaturgo Eugènè Ionescu

Ainda não finalizei a leitura dessa peça. Estou no meio do texto. Na verdade, uma releitura. A edição francesa da Folio, sem ano definido, que tenho em mãos, foi adquirido numa Feira do Livro de Belo Horizonte, na época em que morava lá. Lembro que foi numa quinta-feira, depois de uma palestra com o jornalista Gilberto Dimenstein, continuei circulando pelos corredores até encontrar o stand da Livraria Francesa. Na época, sem muito dinheiro, estava entre Barranco de Cegos, ou qualquer obra do Alves Redol, e a obra-prima de Eugènè Ionescu.

Como sempre, tratar de uma obra na sua língua original (ainda que meu francês não dê sequer muito para o bonjour) não tem comparação. Como tradutor que sou, o rigor (ou sua ausência) de uma tradução pode tirar do leitor um pedaço importante do registro, do contexto e da linguagem, entregando ao leitor final uma idéia não muito clara da essência dos personagens, do que são feitos, como pensam, visões de vida e de mundo. Afeta, no caso de tradução de textos para teatro, até mesmo o phisique-du-rôle.

Mesmo em meu parco francês (e apesar de não ter lido ainda a Cantora Careca, segundo a classe artítica, críticos e população em geral, a preferida das peças de Ionescu), sentir os movimentos de alma no idioma original da peça é algo que não tem preço. Uma peça que demanda de seu tradutor uma sintonia fina com o sub-texto presente na obra, longe das epifanias clássicas encontradas nas teorias de literatura, em especial nos estudos das obras do escritor irlandês James Joyce.

Essa epifania clássica que, às vezes, tanto atormenta quanto assusta, em Rhinocéros se transforma no jogo das sutilezas. As mesmas sutilezas vivas nos personagens de Honoré de Balzac. Rhinocéros guarda a tradição da literatura francesa, onde o paradoxismo é encarnado longe da fina ironia britânica, apenas com a participação do leitor quando os dualismos são  paulatinamente introduzidos. Sem o aside nas obras de Shakespeare ou o comentário mordaz de um narrador onisciente. A sinapse é executada por aquele que lê.

O que torna tanto a literatura francesa quanto Rhinocéros uma tarefa seletiva tanto para quem lê quanto para quem assiste. Há demanda de um repertório mais generoso por parte do leitor. Rhinocéros é uma obra de registro simples, mas longe de ser rasteira, quando obras populares descambam para o populacho. Há demanda por um leitor com certa bagagem de vida, de leitura, de entendimento da natureza humana, da sua fisiologia a sua psiqué.

Isso, talvez, explique porque tanto a peça quanto sua tradução para o português do Brasil não são tão populares nessa parte do hemisfério. Como diz o grande Gilberto Mendes, se eu esperasse um estádio inteiro me aplaudindo por alguma de minhas obras, não teria feito nem metade do que eu já fiz, numa alusão de que arte nem sempre é popular e que esperar grande público para arte de ponta, de fôlego, requer uma cadeira bem confortável. A espera pode ser interminável.

Rhinocéros não é uma obra popular porque demanda uma contrapartida elaborada. É improvável que uma massa populacional produza chaves de descriptografia, ainda que o escondido faça parte das situações que enfretamos no nosso dia-a-dia. O contraponto entre o veloz e venal Jean e o plácido e lento Bérenger marcam a cadência presente no primeiro ato, o jogo de acelera e desacelera no início da peça, e a amarração com as aparições de rinocerontes na vila e os demais personagens. Um público desatento de si próprio achará o primeiro ato bacana se comparado ao segundo. O que é pior: um encenador desatento sofre seríssimo risco de jogar fora o encaixe e o timing dos personagens no povoamento do espaço cênico.

O riso em Rhinocéros não acontece na piada fechada, até mesmo porque a piada não acontece de forma fechada na obra. Ela é participava. Sem a colaboração de quem lê/assiste, uma forte tendência ao tédio pode se apoderar do público, ainda que diante de uma peça que tudo tem a ver com os nossos dias, com os nossos tempos. O humor em Rhinocéros é um evento construído, distenção temporal pura: tijolo por tijolo num desenho subjetivamente claro.

O cinismo classe-média tão presente em nossos tempos, o desejo de eliminação dos pensares diferentes e opostos, o racismo e a intolerância no discurso sutil formam a tônica do segundo ato. E, novamente, o risco de leituras descalibradas do tradutor, do encenador e do público colocam uma obra-prima como Rhinocéros, de Eugènè Ionescu. Há muito de riqueza nas pugnas dos funcionários públicos quanto as aparições do rinoceronte. E as mesmas infindáveis discussões se o exemplar era africano ou asiático. Numa semelhança muito próxima dos nossos dias, onde ainda se discute quem tem razão (ou não) em intrigas vazias dos reality-shows.

Com o término da leitura, voltarei ao tema e maiores descrições dessa obra de Ionescu, que cosidero única e atual. Afinal, vale aqui o compromisso de não abandonar esse blog da forma como aconteceu nesse último ano. E cabe, aqui, uma breve análise de uma verdadeira obra-de-arte.