Da exuberância e ousadia

14 01 2013

Vicente Viciado, de Renato Negrão

Há muito, tanto nesse blog quanto no Pela Proa, venho afirmando que a literatura produzida no estado de Minas Gerais é uma literatura da exuberância. A literatura mineira é naturalmente exuberante. É difícil tecnicamente explicar esse traço encontrado nos escritos de boa parte dos autores mineiros. E diríamos que não é só na literatura apenas. Quem já ouviu o Toninho Horta, por exemplo, ou se amarrou no Clube da Esquina, sabe muito bem do que estou falando.

Murilo Rubião, João Guimarães Rosa, Roberto Drummond, Autran Dourado, Adélia Prado, Fernando Sabino… É bom eu parar por aqui porque certamente cometerei injustiças, esquecerei nomes que não poderia esquecer.

Em geral os autores mineiros trabalham bem mais no eixo paradigmático, o que, quase sempre, permite uma excelente impressão diante do leitor mais traquejado. E são exímios introdutores ao amor pela leitura porque não abusam do eixo sintagmático. Os autores mineiros vão de boa: reproduzem inicialmente a sintaxe sofisticada do homem comum mineiro para, mais a frente, criar uma sintaxe artisticamente insólita. Não tem como não se apaixonar.

Primeiramente, peço perdão pelo preâmbulo literatura mineira é exuberante. É um pleonasmo dolorido e horroso. Se é literatura mineira, associá-la à palavra exuberante é chover no molhado. É o mesmo que dizer que o fogo é quente. Os mineiros sabem ser irreverentes (irreverente no sentido de não reverenciar o common knowledge), revolucionários na trama de seus tecidos verbais e absurdamente ousados ao peitar bom-mocismos academicistas com uma sintaxe de tirar o cidadão do eixo.

No Brasil atualmente tem uns cabras que não estão para brincadeira. De Milton Hatoum a Antônio Xerxenesky, passando por Paulo Lins, Humberto Werneck (Deus seja louvado!), Lourenço Mutarelli, Ana Paula Maia, Maria Alzira Brum Lemos, Manoel Herzog, Marcelo Ariel, Modesto Carone, Ademir Demarchi, Alice Ruiz, Líria Porto, Flávio Viegas Amoreira e por aí vai…

Na seção Minas Gerais, além dos nomes citados de Humerto Werneck (Deus seja louvado!) e Líria Porto (descobri a Líria numa conversa que tive com a Alice Ruiz), cito dois que se transformaram no meu xodóId est, se falarem mal deles, vão comprar briga comigo (parcial pacas!): o quebra-muros de Ituiutaba, Whisner Fraga, e o homem urbano Renato Negrão.

Parcial, sim… Parcial. Ah, Marcelo, cê diz isso porque cê morou em beagá. Justamente! Entendo isso como conhecimento de causa. E mesmo quem nunca nem pôs os pés em Minas Gerais assina embaixo quando digo que a literatura mineira é exuberante. Passam-se os mundos e os calendários maias e a força da escrita vinda desse estado brasileiro continua a mesma. Só os néscios, incautos e apedeutas não se apaixonariam.

Como estou ainda no processo de leitura de Abismo PoenteSol Entre Noites do Whisner Fraga, o comentário de hoje é sobre o mais recente livro do poeta belorizontino Renato Negrão, com quem tive a honra de celebrar seu aniversário (sim, ele também é um capricorniano caprichoso!) na casa do Téo Ruiz e da Estrela Leminski, onde esteve hospedado recentemente.

Vicente Viciado é o mais recente trabalho de Renato Negrão. Se nos poemas publicados nesse livro encontramos a mesma exuberância comum na literatura mineira em geral, dessa vez encontramos a veia urbana de uma cidade pouco conhecida ainda dos brasileiros. Uma grande capital com sua mazelas e seus encantos (como qualquer lugar do mundo), mas que pratica o encanto em cada esquina dessa metrópole.

E devo jogar esse cadáver no colo da grande mídia, que só conhece Rio de Janeiro e São Paulo. O desconhecimento de cidades como Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba, Recife, Salvador, Florianópolis, Fortaleza, São Luiz e mais uma penca de capitais de estado é uma cegueira que envergonha a cultura nacional. Se pegarmos cidades não capital de estado como Londrina, Campinas, São José dos Campos, Juiz de Fora, Santos, Maringá, Ribeirão Preto, Petrolina, São José do Rio Preto, entre milhares que poderíamos citar aqui, é para posicionar a corda no lustre.

O poeta Renato Negrão apresenta a Belo Horizonte urbana, a metrópole que cada um de nós deveria conhecer (e bem!). Negão é o bicho-urbano-belorizontino que consegue, como ninguém, captar, interiorizar, potencializar, subverter e apresentar a Belo Horizonte urbis, a fauna da capital mineira, suas espécies, sua cadeia-alimentar, seu bioma.

Renato Negrão é o filho mais nobre, o filho-de-algo, o fidalgo que a veia urbana belorizontina pôs no mundo. O filho que completou a contemplação urbana paulistana da física dos interesses com tudo aquilo que justifica o movimento de alma (como diria Renata Pallotini). Aliás, nisso os mineiros são impagáveis e imbatíveis. A mesma parcimônia e sabedoria do homem comum mineiro em lidar com o retrato cru da vida pode ser, ouso dizer, amplamente encontrada na poética de Negrão.

O que diferencia sua poética dos demais nomes consagrados da literatura mineira e nacional é a sacação urbana de característica unicamente belorizontina. Não, é impossível encontrar esse olhar estando em São Paulo, no Rio ou em qualquer outro lugar do país. É uma alma cujo c0rpo, um dia, precisa estar em Belo Horizonte. Algo que o leitor não tem como escapar.

Ciborgue me deu

ciborgue me deu
um beijo na boca e me disse

não me peça
para gostar de seus poemas ou que
você goste dos meus

ou não me impeça
de não gostar dos meus ou de
gostar dos seus

porque tudo quanto é aço
silício alicate
interno e déu aqui

tudo quanto é melopéia
logopéia ali
e de lá a fanopéia nada traz

para a elípse entre nós
proezas no breu

O ciborgue de Cidade de Minas não se atém ao objeto beijado, não usa o ósculo como veículo de acepção. O beijo do ciborgue vai ao encontro descompromissado da leitura e da poesia sem as enfadonhas obrigações de julgamento (gostar ou não).  A poesia que toca o ciborgue é a feliz comunhão produzida pelo acaso da atração, esse sabor de aventura que tanto fascina o ser humano. O urbano moderno belorizontino (sem se perder no materialismo instrumental) acalenta a natureza meio carnal, meio etérea, que, às vezes, nos empurra, em outras, atravanca. E sempre o final feliz das luzes apagadas, o fim das distâncias corpóreas, o fechar os olhos e transitar numa dimensão alegremente sinestésica. Ô, coisa boa!

Um traço na poética de Renato Negrão, presente em Vicente Viciado, é o da revelação dos prazeres ocultos. Aquele prazer culpado, comprometedor, vivenciado nas sombras das alcovas BR-040, na esperança de que o crime, um dia, prescreva.

E assim

ofegante
o delegado pediu
a garota de programa
que lhe introduzisse
um pinto de borracha
vinte e três centímetros

a princípio sem ky
& depois com

alertado porém
se fofoca virasse
ele fudido fadado
ela fada fudida
a boca com formiga
no desossário
do minério

Negrão percebe os prazeres particulares subjacentes no bioma urbano belorizontino. Ele não olha a cidade somente com o prazer da contemplação, o olhar repleto do lirismo saudoso dos tempos de outrora, ou o coração carregado da pureza e ingenuidade artística do poeta que se pôs a parte no mundo pelo seu estado especial de criação. Renato Negrão joga nas onze. É autor do pecado e concede o perdão, percebe a lascívia e compartilha o clímax, não deleta o ponto g do limite entre o prazer e a tara perturbadora que ocorre sob a luz do abat-jour ou nas sombras das alcovas. no desossário/do minério é o arremate para lá de perfeito desse mundo Forest Hill que todo leitor que se pretende entender a poesia atual belorizontina deveria enfiar na carne. É possível, inclusive, sentir o cheiro do minério depois de uma noite perdida no fausto do gozo.

Essa contemporaneidade feita de urbano na poética de Negrão, contudo, não impede o leitor de encontrar a indução da beleza da arte no coração de carne. Sabedor de que nem só de carne vive o homem, o autor de Vicente Viciado nos coloca diante da cidade como possibilidade de nutrir a alma com o encanto do espaço-movimento da palavra e do gesto.

Coreografia

o espaço coreográfico da palavra
e sua aplicabilidade semântica
são pensados como estímulo
a outras configurações corporais

nossos corpos merecem e podem
dar respostas mais criativas
ao textos urbanos para além
de suas palavras de ordem
e de consumo

gestos como construção
transitoriedade como eixo
dispersão como método (…)

O poeta aqui nos apresenta a segunda pele do espaço virtual, condição sine qua non da criação (o nada, a ausência da coisa em si, objeto de estudo de uma boa disciplina de literatura comparada ou teoria da literatura num bom curso de Letras!). Renato Negrão nos impede a visão naïve de poéticas que colocam ao rés-do-chão o concreto armado do urbano. Ele nos indica que é possível, sim, criar o gesto incomum, o movimento novo, a sensibilidade como valor estético a partir do cenário diante dos nossos olhos. O que já está estabelecido não é fator de cerceamento ou impeditivo da expressão do corpo. A criação do corpo (o gesto) surge entre os rigores desse cenário e, sim, é capaz de ser surpreendente pelo inusitado desse ineditismo.

Renato Negrão percebe a cidade não como um desafio a se transpor, mas a mais preciosa companhia na arte de criar. E que, talvez, essa arte, além de demandar engenho, exija um pequeno toque apenas: a doçura de se estar sensível a perceber.

Vicente Viciado resgata, na segunda metade da obra, um hábito comum nas obras literárias brasileiras dos anos 1970 conhecido como carona. Nada mais é do que a participação de outro artista com textos que dialogam por afinidade estética com o universo do livro e do autor.

E na obra em questão, Marcelo Negrão trouxe quatro letras de músicas do CD Verdadeiro, do rapper belorizontino Das Quebradas. “(…) Suas letras tem a mobilidade de registro, funcionando bem tanto no formato canção, quanto pode funcionar no universo do papel, (…) com um texto impulsionado pelo humor e uma escrita ágil que se nutre de palavras de idiomas diversos, siglas, apelidos, fala popular urbana, provocando a linguagem, desestabilizando discursos para além das polarizações maniqueístas de “bem e mal” tão presentes no rap. (…)”

Renato Negrão, em seu Vicente Viciadoapresenta a Belo Horizonte que passei a conhecer, admirar e gostar desde 1994. A de verdade, sem a tradicional família mineira (às vezes, motivo de anedotas entre os próprios belorizontinos), desancando o machão mineiro e trazendo para perto uma sutil sensualidade em quase tudo que habita na capital mineira. Renato Negrão é o principal expoente do urbano na poesia belorizontina, reverenciando a exuberância e ousando na liberdade de intuir novos pensamentos sobre o porquê da arte dentro da civilidade áspera do concreto armado, do asfalto e dos viadutos. E, por favor, ouçam: não conhecer um pouco de Belo Horizonte pode ser algo muito perigoso. Não conhecer por completo pode ser fatal!





A difícil arte de ser dois

31 10 2012


Devo confessar que essa é uma arte difícil: ser escritor, autor de sua própria obra, e crítico literário ao mesmo tempo. Às vezes, certos autores sentam o relho no pobre do crítico. Ontem mesmo assisti um especial na TV Câmara sobre a obra de Carlos Nejar, onde, lá pelas tantas, e fazendo as devidas ressalvas obviamente, o poeta gaúcho não poupou a crítica. É claro que explicou sua razões, totalmente pertinentes. Tem meu apoio. Mas quando me vejo do outro lado, sinto que a prática do comentário crítico-técnico sobre literatura se torna cada vez mais áspera.

Principalmente porque os autores não entendem que, nesse outro lado da mesa, há um ser humano feito do mesmo material, passível dos mesmos problemas, agruras, vicissitudes, temores, crises. E que isso, de tempos em tempos, mexe com a psiqué (alma) do crítico literário. Neste espaço, o Literaturial, sou o primeiro a criticar o crítico, quase sempre centrado na idéia e afirmação de que muitos críticos literários são mais comentaristas do que críticos propriamente e de que é fácil encontrar gente despreparada para a arte da crítica (por isso o meu apoio ao Carlos Nejar).

Porém, toda vez que passo para esse lado de cá da mesa, confesso que a barra pesa tremendamente. O trabalho é até agradável, mas uma fonte interminável na produção de desafetos.

O pior disso tudo: expõe o fôro íntimo do crítico. Caso esteja passando por um momento complexo ou singular da vida, todo mundo, de certa maneira, fica sabendo. O que é ruim, chato à beça (para o crítico). Porque a crise pessoal do crítico mexe nas cores de sua leitura quando se depara com uma obra, objeto de sua crítica, que mereceria louvores. O que escrever num momento desses?

É mais ou menos isso que acontece comigo nesse momento. Gasto o triplo da energia para olhar com bons olhos obras que elegeram em sua estrutura narrativa o famigerado fluxo de consciência. Infelizmente, estou numa fase da vida sem a menor paciência para esse tipo de registro. Haja! Em mãos habilidosas como as de Joyce e Saramago, beleza… Show de bola! Só que o bonito no quintal do vizinho nem sempre tem a ver com nosso próprio estilo e nem sempre temos o talento para utilizar o que, nas mãos de outros autores, faz o difícil parecer fácil.

E eu, avesso às modinhas, infelizmente, ando pegando corda com esse tipo de forma de expressão. Modinha. Todo mundo acha bonito soltar a mente, se libertar, se permitir, sem prestar atenção que há uma tremenda técnica por detrás. Técnica, já ouviram falar? Fluxo de consciência não é orelhada, não é também sei fazer isso, meter o dedo na viola e seja o que Deus quiser. Tem domínio de técnica naquilo. Não é fruto de vontade apenas, é preciso certo talento e bom domínio do tópico frasal para que o leitor não tenha diante de si um troço ininteligível.

Permitam-me (e perdoem-me!)  o desabafo inconsistente e fora de hora, mas dá a impressão de que a literatura brasileira acordou no dia 01 de janeiro de 2000 achando a maior lindeza ser Kafka, Joyce, Saramago, sem olhar para seu próprio passado de Novelas de Aprendizado, de Autran Dourado, ou Os Ratos, de Dyonélio Machado. Se fosse a Inglaterra, com quase cinco séculos de tradição literária, até entenderia. Mas não é o caso brasileiro. Há uma tradição literária brasileira? Há. Tal tradição nos dá lastro para tentativas de padrões ainda não interiorizados devidamente pelos autores brasileiros? Tenho lá minhas dúvidas. O fato é que tanto Dyonélio quanto Dourado esfregam na cara de qualquer um que o romance psicológico não precisa de rocambolescas rupturasquebras de paradigma, para ser sofisticado.

Aí, eis que cai em mãos o próximo livro da fila: João Gilberto Noll. O grande e maravilhoso João Gilberto Noll. João Gilberto Noll, celebrado, querido. Claro que a minha crítica será parcial: um colega de profissão, também um homem de formação em Letras assim como eu. Cúmplice da mesma paixão silenciosa e secreta por esse mundo das palavras, do suco de cérebro. Estou do outro lado da mesa. Lá se vai a credibilidade do Literaturial.

Canoas e Marolas compõe uma série da editora Objetiva chamada Plenos Pecados, sobre os 7 pecados capitais. Noll parece-me que foi sorteado para o pecado preguiça, não sei aqui dizer ao certo se a obra foi encomendada. Segundo o site da revista Época, João Gilberto Noll refugiou-se durante nove meses na Costa da Lagoa, em Santa Catarina, para a confecção da obra, o que leva a crer que realmente tenha sido on demand.

No romance (que mais tem cara de conto), um homem, que ao longo da narrativa revela a alcunha de João das Águas, chega a uma ilha com a finalidade de, finalmente, conhecer sua filha, chamada Marta,  fruto de um romance com uma enfermeira num período da vida onde esteve hospitalizado. Na sua chegada à ilha, conhece um menino-índio que se torna seu companheiro de preguiça, com quem passa boa parte do tempo em ócio, entre as sobras das árvores e as permanências na praia.

Marta é médica, cuja especialidade é preparar pacientes terminais para a morte. Ao longo da história, o homem (ou João das Águas) descobre que sua filha espera um filho e desconfia que o menino-índio responde pela paternidade de seu neto. Assim, a primeira idéia que o leitor tem em relação aos personagens é que cada um representa uma fase da vida, a natureza sempre pródiga em sua força e renovação, numa história que simboliza fechamentos de ciclos e aberturas de outros.

Quando uma prosa quase poética é confeccionada por mãos hábeis e talentosas como as de João Gilberto Noll, a força corrente da narração perpassa o leitor de maneira sutil e suave. E esse é o grande mérito da beleza dessa obra de Noll. O espinhoso tema da vida quando acaba se torna poesia, é leve e tocante nas mãos de um profissional de Letras. O risco de não se gostar da história é zero. Mas, então, por que cargas d’água eu fiquei meio assim diante de uma das grandes obras da literatura contemporânea brasileira?

A escolha de Noll foi pela sua poética. Até aí, problema é meu. O chato de galochas aqui sou eu, não o autor. Noll optou pela superfície de convergência entre a prosa e a poesia no equilíbrio da mistura de frases curtas (característica de uma poesia mais contemporânea) e períodos compostos (quase sempre por subordinação e que denota a inclinação natural da prosa). Essa fronteira movediça entre prosa e poesia (chamada por alguns de prosa poética) se tornou, a bem dizer, um ente constante na literatura produzida no século XXI (e isso não quer dizer que não exista prosa poética produzida anteriormente).

Resumindo, minha fase pessoal me tornou um ser ignóbil e deplorável, que anda achando muito mais legal O Paraíso é Bem Bacana, de André Sant’Anna, do que Canoas e Marolas, do João Gilberto Noll. O que me coloca numa situação ruim, injusta com Noll (pois o livro é uma grande obra, é um grande texto). Eu queria muito ter gostado. E olha que o livro de Noll, do meio para o final, fica simplesmente excelente!

Tudo por conta da minha pentelhice atual em relação a parte de autores contemporâneos que andam confundindo fluxo de consciência com corrimento verborrágico. Dá nos nervos! A obra de João Gilberto Noll passa longe de um corrimento… Mas a simples perspectiva de estar diante de uma alegoria sobre a morte, a conclusão de ciclos, o fim de uma passagem pela Terra, motivo de tantos pensamentos que todos nós temos sobre a vida, colocou-me na defensiva. Uma poética de cunho delirante (o próprio narrados utiliza a palavra delírio algumas vezes), que deveria me trazer o deleite do belo (ou da graça), por conta dessa minha fase, ergueu minha guarda mais ainda.

Nem sempre a prosa poética traz densidade a uma narrativa, nem tampouco a torna sofisticada. É tão difícil entender isso? Brincar com ou subverter as fronteiras entre prosa e poesia não pode ser um molde-panacéia, a solução para tudo, a garantia de que sua obra será bem fófis naquele medo tremendo de que as pedras não alcancem a vidraça.

E ainda para piorar, a saber quem foi o gênio da Objetiva que associou Canoas e Marolas com preguiça. Provavelmente não consta no vocabulário desse profissional a palavra estupor, que melhor cabe para descrever a leseira encontrada tanto em João das Águas quanto no menino-índio. Os dois são muito mais regidos  pelo estupor do que pela preguiça propriamente dita. É quase propaganda enganosa: você ganha um carro num concurso de supermercado e quando vai tirar o prêmio descobre que o veículo é uma Brasília 77 azul-marinho. Ou seja, se eu já estava irritadiço, comecei a mostrar os dentes. É nisso que dá editora não contratar profissionais de Letras. Ah, Marcelo… Esquenta, não! Relaxa…

Enfim, rogo que leiam Canoas e Marolas, de João Gilberto Noll, imediatamente. Trata-se de um grande trabalho do romancista gaúcho. Definitivamente, coisa fina. Esqueçam minha irritabilidade momentânea e passageira. E deixem o trabalho de pegar de jeito  essa turminha do corrimento verborrágico comigo. Ao querido leitor do Literaturial, somente o prazer da leitura.





Boi, boi, boi… Boi da cara preta…

23 07 2012

Devo dizer que não sou profundo conhecedor da obra de Chico Buarque como escritor. Li Estorvo e olhe lá. Não que Chico desmereça a nossa mais especial atenção, não é isso. Esse grande mestre das artes brasileiras, esse cronista do nosso tempo, tanto na sua obra musical quanto literária, sempre terá o carinho do nosso olhar. Ainda que não seja uma unanimidade (o que é até saudável), sempre será o destino de nosso respeito por sua criatividade.

Lembro da minha época de infância, 1978, nada desse negócio e-book, downloads e outras bossas tão presentes no nosso dia-a-dia. Era a época dos bolachões de vinil, das enciclopédias Baden e Britânica cujos vendedores batiam de porta em porta oferecendo uma inestimável fonte de saber, principalmente para quem tinha filhos em idade escolar. Surgiu, nessa época, uma espécie de serviço que nada mais era do que venda de livros em domicílio. Respondia pelo nome de Círculo do Livro. Todo mês, um(a) vendedor(a) batia a sua porta para entregar a revista e marcar a data da coleta dos pedidos que eram entregues dias depois na casa do sócio do clube. Uma espécie de avon dos livros.

Foi na transição do governo Geisel para o governo Figueiredo que pintou em casa uma obra discutível para o momento de exceção que o país vivia. Escrito em 1974, Fazenda Modelo, de Chico Buarque, trazia a metáfora comum nas fábulas ao narrar as idas e vindas de seus bois-personagens dentro de uma grande fazenda.

Aqui se faz necessária, para os mais jovens, a seguinte digressão ou aparte:  com a repressão do regime militar, principalmente após o AI-5 de 1968, muitos artistas foram considerados subversivos e perigosos ao establishment de então, fazendo com que muitos saíssem do país em forçoso exílio. Era questão de salvar o próprio couro: ou se mandava ou corria o risco de parar no pau-de-arara. Chico Buarque foi parar na Itália. Em seu retorno ao Brasil, driblava os agentes da censura da Polícia Federal escrevendo letras de músicas ou livros carregados de metáforas. Vai que o censor não entendesse direito o que ele queria dizer e liberasse  a canção/livro?

Foi o caso de Fazenda Modelo. Guiados pelo boi Juvenal, líder daquele amplo curral, os bois descritos por Chico Buarque divertem o leitor em uma das mais contundentes críticas aos governos militares anteriores à data da obra, em especial ao governo extremamente opressivo de Emílio Garrastazu Médici, que governara o país entre 1969 e 1974. Foi o período mais sangrento contra os direitos civis que se tem notícia, perdendo, talvez, segundo alguns historiadores, para a ditadura Vargas.

Logo no início da obra, um mapa da fazenda e seus arredores. Mais adiante, o mesmo mapa, já com legendas mostrando a infra-estrutura da fazenda, que conta com aeroporto, motel e uma porrada de estádios de futebol. Na edição do Círculo do Livro, na página 71, a reprodução do pasquim local, enaltecendo o apoio popular ao boi Juvenal, com anúncios do tipo “(…) Sua fazenda precisa de uma KKKK, moto-serra elétrica, (…)” ou a inconfundível “(…)  Kulmaco, Tudo em materiais para construção, (…)”, numa possível alusão às empresas que estiveram por trás da construção da rodovia Transamazônica, um toque faraônico dos projetos nacionais perpetrados pelos governos militares, empurrados, acalentados e noticiados histericamente por Amaral Neto, O Repórter.

Sendo filho de Sérgio Buarque de Hollanda e com uma tremenda competência linguística, Chico reproduz na fábula Fazenda Modelo, Novela Pecuária o cenário social e político da época, com os seus barões famintos e mais uma série de figuras folclóricas que nada mais eram do que escroques oportunistas que se locupletavam de alguma maneira das situações que se descortinavam naquele momento. Uma série de situações que vão do cômico ao opressivo, mas sem um tom carregado de pesada crítica ao estado de coisas que imperavam naquele momento. Pelo contrário. Chico Buarque desfila um humor de cunho britanicamente irônico, tendo nessa subjacente ironia o substrato para pitadas equilibradas de deboche. Dificilmente um agente da censura chegaria a tamanha clarividência, o que, para nossa sorte, permitiu que o livro fosse reimpresso no final dos anos 1970.

Apesar do bom humor e de algumas passagens hilárias do livro, Chico mostra os dentes à caterva que naquele instante bem que tirava algum tipo de proveito da tragédia social e política que se abateu sobre o país naquelas décadas. Chico foi brilhante mais uma vez (permitam-me o pleonasmo): costurou a carapuça. Certamente teve muita gente na época que a vestiu confortavelmente, pessoas que deram graças a Deus quanto o autor iniciou nova fase literária a partir de Estorvo. Já outros sequer a usaram por conta exclusivamente da parca capacidade escolástica e intelectual.

O que podemos afirmar inicialmente é que Fazenda Modelo, Novela Pecuária mostra um Chico Buarque razoavelmente puto com certas figuras que pouco fizeram para que o merdelê não se instalasse do jeito que se instalou. Atrás do verniz bem humorado da obra, há um Chico que mete, outra vez, o dedo na ferida (olha o pleonasmo aí de novo!). Uma crítica contundente, mas não severa, de que, de certa maneira, também fomos responsáveis pela permanência de governos sanguinariamente opressores por conta de estarmos sempre às voltas com nosso próprio umbigo, afogados em nosso ridículo café pequeno.

Pode até ser que esteja redondamente enganado, uma vez que não li BudapesteLeite Derramado, obras mais recentes do Chico, mas acredito que Fazenda Modelo, Novela Pecuária foi o melhor livro que ele escreveu. Talvez pelo fato do autor ser mais jovem quando da materialização da obra, sem os vícios de intertextualidades ou subtextos presentes em seus últimos livros, já em idade avançada. Enfim, está lançado o desafio e a discussão. Uma coisa é certa: depois de ler Fazenda Modelo, há um sério risco do riso solto diante do bife de seu próximo almoço.





Ai, aaaaiii, aaaaaaiiiiii… Os referentes…

28 04 2012

Sinceramente, às vezes fico meio atônito diante de certas celeumas, tendências, ou seja lá o nome que se possa dar a certas discussões que aparecem na vida da gente.

No campo da literatura atualmente, há uma discussão meio deslocada, em geral sedimentada em teóricos que no século XXI já soam bem meia-boca, mas que, por causa da parca instrução costumeira de nossa inteligência brasileira, continuam fazendo sucesso. É muita gente distraída.

Em breve, teremos que baixar os glúteos na seringa e ver que os grandes nomes do século XX, na verdade, não eram tão bons quanto a gente imaginava. E ainda tem gente que emplaca doutoramento citando os falecidos. Ruim os doutorandos, ruim a universidade. É, a nova intelectualidade brasileira respira por aparelhos. Muito próximo da morte encefálica. Aliás, encefálica? Não foi à toa que o Supremo votou sobre interrupção da gravidez em casos de feto anencéfalo. Se valesse para os que estão respirando agora, haveria uma penca de gente na fila.

Maldades à parte, e tentando imprimir o mínimo de seriedade em um assunto que já não deveria ser levado tão à sério assim, alguém poderia me explicar o retorno dessa mania que, mesmo depois de tantas voltas que o mundo deu, deveria estar para lá de sepultado (ou, pelo menos, resolvido)? Por que ainda gastamos tempo com o velho assunto realidade e ficção?

Afinal de contas, esse assunto não deveria estar para lá de esgotado? Para que gastar tanto tempo precioso num assunto chato e que já deu o que tinha de dar?

Roland Barthes não decretou a morte do autor? Maurice Blanchot e Michel Foucault não especularam sobre a experiência do fora? Qual é o problema agora? Por que essa empulhação de novo em querer encontrar na vida pessoal do autor, em suas experiências passadas, a explicação de uma obra?

Por que essa eterna mania de servir o leitor com o livro, acompanhado de uma bula, guia, sabe-se lá o que, para explicar o que está escrito, para que o texto faça algum sentido ou tenha algum significado? Achei que tanto os leitores quanto os críticos já tivessem passado da fase oral. Achei que todo mundo já estivesse curtindo o tecido verbal e como o autor trabalhou a trama desse tecido. Qual é o problema agora?

O primeiro problema que vejo é que esse tipo de abordagem, esse tipo de discussão, dá uma chance enorme e danada para um plêiade de orelhudos arrotarem uma erudição que tenho lá minhas dúvidas. Como diz o Ademir Demarchi: de novo, o delírio da crítica. Pior do que o delírio, esse tipo de assunto é papel para cupins. Acaba atraindo gente rasa como um pires ocupando espaços de quem deveria ser do ramo.

Não, não há a menor necessidade de um autor ter vivenciado um universo específico para falar sobre tal assunto. Duvido que 80% dos autores que escreveram um romance de guerra tenham sequer empunhado uma arma de fogo. E nem por isso. Suas obras são de grande quilate, bem escritas, verossímeis e dignas de premiação em certos casos. Também não há o menor cabimento de um escritor se tornar um serial-killer por uns 4, 5, 6 meses a fim de caracterizar com rigor de veracidade um determinado personagem.

É óbvio que o olho que processa aquilo que se testemunha é único. Entendo que não se pode retirar do autor seu traço de personalização daquilo que vê. E não é esse o caso. Não se trata de colocar o autor para escanteio, nem de renegar a um segundo plano o autor ser humano. E é aí que reside a graça do negócio. A minha história de guerra será diferente de qualquer outro escritor. Será diferente da escrita pelo Ademir Demarchi, pelo Marcelo Ariel, pelo Manoel Herzog…

O meu olho é brasileiro. Por mais que vivencie uma realidade estranha ao meu habitat, ao meio meio de vida, captarei o diferente por esse olho que é meu: brasileiro, santista, meia-idade, masculino, oceânico, bilingue. Diferente de qualquer outro autor e esse é o tempero especial que cada um possui.

Posto isso e também a questão de que não há a menor necessidade de se vivenciar certas coisas (algumas delas bem escabrosas e abjetas), resta ao escritor algo de suma importância e que todo mundo já conhece (daí a perda da importância dessa discussão realidade e ficção): remeter-se ao referente.

É a habilidade de um autor remeter-se a um determinado referente que faz de uma obra especial. Ainda que o escritor tenha um ponto de partida dentro da realidade onde está inserido, jamais conseguirá um amplo domínio, um domínio total do assunto em questão. Logo, ele se remeterá a partes desse todo para garantir a verossimilhança de determinados trechos da obra e a agradabilidade diante de seu leitor. E estamos conversados.

Vasculhar na vida do autor algo que dê sentido à obra ou justifique certas passagens de um romance, de um conto, é uma tremenda empulhação. É afastar o leitor do livro, justificando a debilidade de uma obra ou de um escritor pela presunção de que a ficção é um ente menor do que a realidade quando os dois estão em pé de igualdade. É fustigar a chaga determinando que quanto maior for a correspondência daquela ficção com a realidade, melhor será a ficção.

Em suma: um tremendo desserviço. É insistir na decretação da inferioridade ficcional, de que ficção ou é obra menor ou simplesmente não existe. Mas é claro que ela não existe. Caso contrário, não seria chamada como tal. Entretanto, isso não significa que a prosa ficcional fique terminantemente reduzida a quanto ela pode ter de realidade.

A força da prosa ficcional está, inclusive, na habilidade de um autor se remeter a um referente que também é criação do próprio escritor, fruto da força e possibilidade criativa de quem tece o texto. Até mesmo o referente não precisa ser necessariamente um produto do meio, um ente real, concreto, corpóreo, com quem convivemos, almoçamos juntos ou tomamos café num fim-de-tarde. Não há teoria literária, sequer lei, que obrigue um escritor a somente se remeter a um referente que seja de carne e osso, que podemos encontrar a qualquer momento andando na rua.

A graça da prosa de ficção está aí: na oportunidade de se remeter a um referente pertencente a um mundo real ou não. Há amplas e quase infinitas possibilidades do autor se remeter a referentes que nada mais são do que criações suas também. Se há a graça na confusão entre realidade e ficção, a ausência dessa confusão é tão possível, saborosa e agradável quanto.  Portanto, façam-me o favor de deixar autores e leitores em paz que todo o resto se acerta, se ajusta.

Porque futucar vida de escritor na esperança de produzir uma bula para a leitura de uma obra torna a literatura um dolorido pé-no-saco. Não é à toa que leitor no Brasil anda fugindo de livro, de escritores e de todo universo literário. Lá vem aqueles caras arrogantes e chatos para cacete. É por essas e outras que entendo o desejo do Ariel em gravar um disco de sambas.





As vísceras animais

10 04 2012

Os Bichos, de Manoel Herzog
Qualquer semelhança entre os bichos que nos cercam e eventualmente tudo o que nos compõe deveria ser, apenas, mera coincidência. Principalmente porque não nos caberia vestir a carapuça, assim, de forma tão fragorosa. Sabemos de antemão que todos nós temos o nosso lado animalesco, mas, cá entre nós, não conheço nenhum cachorro, porco, galo autor de Novelas Exemplares ou que tenha chegado a uma assombrosa A Metafísica dos Costumes. Se há, por favor, avisem porque até hoje não o encontrei.

Comparar o homem aos bichos sempre é tentador, independente da época. O que diríamos das fábulas, animais que falam, com malícia, com bondade, com maldade, com inteligência e sabedoria ilustrativas, com o coração terno e a ira de aço. Se a intenção da fábula é contar estórias para as crianças dormirem, essa vocação humana de encontrar vida fora do humano (e talvez isso explique porque tanto o assunto vida extraterrestre faça a cabeça de tanta gente) persegue o inconsciente de civilizações inteiras há muito tempo. Isso sem contar justificativas pela Teoria Darwinista para um mau-caratismo latente, escorando-se e esgueirando-se na máxima de que somos todos animais, afinal, para trair, subverter, subtrair, atacar, desrespeitar e matar. Uma tentativa confusa e rasa de formular uma ética animalesca que nos auxilie na tarefa de justificar a ignomínia.

Não, não somos bichos. Somos seres humanos e, enquanto não provem o contrário, capazes de formular os mais abstratos pensamentos. Não se trata aqui de sermos superiores na natureza, melhores ou piores do que quaisquer seres que nos cercam. Somos diferentes, com capacidades que talvez outros seres na natureza não possuem. Teorias naturalistas são interessantes, mas, como qualquer teoria, com suas falhas.  E uma delas é querer justificar nossa atitude abjeta colocando o homem no mesmo balaio-de-gato das posturas diletantes de um cachorro. Eu não sou cachorro, não…

É essa tensão entre o humano e o animalesco que é a marca do romance de Manoel Herzog, Os Bichos. Qualquer leitura do tipo a comparação do homem, da política, da natureza humana, das relações sociais com a sordidez do mundo animal é maltratar a referida obra logo de saída. É leitura rasa de releases nitidamente feitos por jornalistas que ainda acreditam que a fortuna crítica é algo facilmente adquirido em cursos de comunicação social. Diante de releases tão sem profundidade, se eu fosse cachorro (ou qualquer outro tipo de bicho), reclamaria no Ministério Público.

O homem é unido ao bicho pelo basal. Essa é a teoria quase rocambolesca de Lira, pai de Agda, a princípio adversário político de Luís Theófilo, o personagem principal da história de Os Bichos. A hierarquia dos urubus, tese inicial de Lira nas primeiras páginas do romance, é uma belíssima teoria (ou justificativa) para se apossar do que não lhe pertence, respaldar a política do farinha pouca, meu pirão primeiro e açoitar um estado de coisas pela miséria humana cabalmente determinada pelo biológico, não pelo social. A ponte entre o biológico e o social que, de uma certa forma, acaba fazendo a cabeça de Luís Theófilo ao longo da narrativa, acaba trazendo a questão da imobilidade social para todos, como se uma sociedade de castas fosse determinado pelo que o ser biologicamente é.

A porta de entrada para essa sedução de Lira por um sebastianismo ufanista e triunfal, seu projeto pessoal de megalomania por se tratar de ser ele, Lira, sucessor natural dos luíses que governaram a França, numa mistura de misticismo cabalista com maçonaria, só acontece pela paixão carnal entre Luís Theófilo e Agda, filha de Lira. Aliás, Agda é um capítulo à parte. Manoel Herzog foi de uma felicidade, mas de uma felicidade na construção de Agda ao longo do romance, que merece um espaço a parte, aplausos e fascinação.

Herzog foi de uma felicidade em reconstituir o elemento fêmea dentro de uma concepção carnal-espiritual onde seria natural dentre as mulheres a lascívia como meio de vida. Se nenhum homem resiste a sedução-cio de uma mulher, Agda, mesmo tendo casado com o filho do prefeito na obediência primitiva de uma costura política simplesmente, é escrava da costela de Adão. Mal esfriado o defunto do filho do chefe do Executivo local, retorna aos braços de seu grande amor, botando na boca o motivo escuso e primevo de ainda manter e guardar o seu sopro sob o sol.

Agda, que ao mesmo tempo impera soberana pela lascívia, combustível essencial para a preservação da espécie, é frágil por ser um símbolo de uma sociedade que ainda não saiu da fase oral. É a mulher cabocla, mestiça, cujas intimidades e permissividades tanto encantam, que alinhava politicamente e rende o masculino pelo corpóreo. Colocam à mesma mesa o marido e o amante, o oficial e o oficioso, como se tal harmonização, às raias do impossível, fosse a coisa mais natural do mundo.

A sagacidade de Herzog em justapor o coito humano ao animal é um dos segredos, aqueles ingredientes um tanto especiais que chefe de cozinha nenhum revela, que procura trazer a Os Bichos sua singularidade. Ainda que nos nossos tempos é quase impossível algo verdadeiramente novo no que tange a escrita criativa, o intercalar da narrativa em torno de Luís Theófilo e vozes dos animais presentes na obra (o cachorro, o urubu, o porco, o galo e o homem) confere a velocidade e o passo da obra na sedução da leitura. A graça do livro é que em momento algum, por mais que Manoel Herzog tenha como idéia a superfície de convergência do basal entre o humano e o animalesco, há uma tentativa de colocar ombro-a-ombro o homem e o bicho.

A tensão em Os Bichos, de Manoel Herzog, vem justamente da tentativa de reforçar esse ponto de intersecção primitivo entre homem e animal em situações onde homem e animal estão desalinhados. Se lascívia de Agda é elementar num jogo de fecundação, a megalomania de Lira é um produto meramente humano. Bicho nenhum chegaria a tanto, por mais que as sociedades protetoras dos animais achem os bichos legais demais (no que eu concordo, aliás).

No rescaldo de Os Bichos, bicho é bicho, homem é homem. Não se trata de uma obra de elevado propósito estético, mas de questionamentos quanto a condição humana de se suportar em sua miséria. Não há confusão de papéis. Luís Theófilo vive suas angústias e contratempos ao longo da narrativa procurando nos bichos alguma possibilidade de aliança. Cai em si, em sua própria consciência, de que o bicho-homem é muito mais ardiloso do que o bicho-animal. São hábitos distintos em éticas distintas, que, em certos instantes, estão lado a lado. Tudo tão diferente e igual ao mesmo tempo.





Só existe um

16 03 2012


Há certos livros que são um perigo para quem lê. Para quem os comenta, perigo em dobro. Para quem lê, o perigo de se vestir a carapuça. Para quem se propõe a analisar a obra, o sério de risco de comparar o autor com esse ou aquele escritor. Há certos escritores que mostram, aqui e ali, certa intertextualidade com obras já lidas, certos traços que remetem a leituras anteriores. Perigo danado: vá que não conheço um determinado autor afundo e dou partida na minha metralhadora de besteiras?!

Isso sem contar que fazer comparações é cair naquele lance o mais da mesma coisa danado. Ora falta de recurso, ora desconhecimento do mundo vasto da literatura. Eterno e infinito.

O perigo de minha leitura de Notas de Arrebentação do escritor paulistano Marcelo Mirisola é a contaminação de minhas visitas a sua coluna no Congresso em Foco. Precisaria de um certo tempo para fazer a descompressão. Uma desassociação necessária para não confundir alhos com bugalhos. Entender momentos distintos de Mirisola, não atropelar a obra, sempre única e singular.

Notas de Arrebentação é uma reunião de textos que tem em comum a abordagem em cores nem tanto brilhantes e sem qualquer abrandamentos de esfuminho de seres e cenários tão comuns e tão peculiares. É o movimento do pincel sobre a tela com a energia de reproduzir, de certa maneira, o borrão que todos nós somos e escondemos por detrás de um certo verniz civilizatório. Caberia na página de abertura do livro: pare de viadagem!

Apesar da predileção do autor por Carta para Gombro e Rio Pantográfico (os dois textos de abertura de Notas), e apesar de alguns creditarem a O Azul do Filho Morto a melhor obra de Mirisola, Notas de Arrebentação é passagem obrigatória. Porque não cai no perigo da nefasta tendência de uma literatura paisagística nacional, acusada por Lêdo Ivo, e que tem em José de Alencar seu grande executor. Porque coloca qualquer um no lugar onde se deveria estar. Senta lá

Não ver o subjacente nesse livro de Marcelo Mirisola é questão fechada: alternativa a. burrice, alternativa b. má-vontade, alternativa c. deixe de sacanagem, por favor. Não ver, em Notas de Arrebentação, que a sociedade contemporânea, assim como os bebês, não passaram da fase oral, com a quantidade de falos boca adentro ao longo das situações descritas em Notas, ou é alternativa a ou alternativa b. Encher o saco por conta de uma linguagem direta e constante lascívia nos personagens é ficar no superficial, é não enxergar um enfastio produzido por uma sociedade de controle. Pior ainda, uma sociedade que, deliberadamente, escolheu ser babaca (leiam Tigelão de Açaí, presente em Notas).

Mirisola não se escora na manjadíssima manipulação (às vezes barata) da mancha de texto, tentando traduzir algum tipo de avant-guarde para iniciados. Não se escora na questão do registro, sacadíssimo isso, de encher o texto com dois pontos. Nem os reis do registro (Saramago, Joyce) abusavam desse tipo de recurso para estender as lindas penas de pavão a quem os lia. Pode até ser bacana isso, uma hora aqui, outra ali, mas com o patrimônio literário do século XX, é o mesmo que querer ensinar a geração Y como mexer num smartphone. O trouxa certamente será você. Live and let die.

Ficar preso no sequencial felatio in ore, ou cigarros às nadegas, ou no hilário personagem que para mostrar austeridade confessa sublimar a cópula, entregando-se ao império de Onan em infinitas homenagens a uma cadela, é ficar no superficial. É querer chegar ao final da leitura de Notas de Arrebentação morrendo de vontade de dizer que a obra é razoável. É desconhecer o quanto pode ser indutivo, perturbador e até mesmo depressivo uma Telefunken 79. Um referente ao império das sombras.

Alguns autores não entregam de bandeja pelo hermetismo do texto. Mirisola não entrega de bandeja pelo que Freud chamou de aparelho neural. Ele demanda de seu leitor, pelo menos, esse tipo de sintonia. Demanda tempo, vivência, certo tipo de conhecimento ou até mesmo de algum tipo de ilustração. É através de Mirisola que se entendem porque existem sagas crepúsculos: não é todo mundo que está tão preparado assim para o esconderijo não hermético. Talvez leitores mais novos, cabaços de vida, encontrem algum tipo de dificuldade, ainda que Marcelo Mirisola tenha escolhido o discurso direto e equilíbrio entre os períodos simples e compostos. A esses, um vampiro, um lobisomem e uma menina de sangue frio.

A teoria de Mirisola não fica escondida num tecido verbal vertiginoso de tão rococó. Está numa paisagem humana quase balzaquiana, só que mais rasgada. Eis a graça do negócio. Sem a percepção de que o texto é meio e não fim da crítica à sociedade fase oral, e que a sandice é coisa da lascívia e de uma falta de caráter tão comum entre nós em nosso tempo, o leitor ficará apenas no lugar comum.

Na teoria de Mirisola, pelo passeio em Notas de Arrebentação, teríamos o herói trágico? O bode finalmente dissecado? Seus personagens enfrentam aquilo que os abreviam? Aquilo que os colocariam na condição de uma perenidade pelo enfrentamento daquilo que lhes encurtam a vida?

Bom, cheguei aqui sem cair na cilada de fazer correspondências excessivas de intertextualidade. Compreendo aqueles que, por causa do superficial, não admiram as narrativas de Marcelo Mirisola. A disposição do autor como figura pública interferiria a agradabilidade de quem eventualmente fosse lê-lo. Pura perda de tempo essa do estético pelo ético. Mas isso não importa. O que importa mesmo é que, nos dias de hoje, um autor como Marcelo Mirisola talvez não se encontre. Ficou ímpar. Autor como Marcelo Mirisola, só outro Marcelo Mirisola. Marcelo Mirisola, só existe um.





Achados e perdidos

27 12 2011

Um Brinde em Copos de Plástico, de Ricardo Carlaccio

O que fazer diante de um livro bom, bem escrito, mas que sabemos, de partida, enfrentaria resistência da massa de leitores? O que fazer diante de um livro bom, mas que, por questões de não querer combinar a mesa-de-centro com a moldura do quadro pendurado nas sala-de-estar, se tem a nítida noção que o melhor que o autor realmente fez foi bancar a própria publicação? O que fazer diante de um livro bom, mas que ainda não encontrou o seu leitor? A propósito: estariam todos os leitores preparados para qualquer tipo de texto, tema, ou ficção? Se todos os leitores estivessem realmente preparados, haveria alguma graça na vida?
Essas questões soaram como sino de igreja centenária em praça matriz ao término da leitura de Um Brinde em Copos de Plástico, de Ricardo Carlaccio. Vale lembrar que o livro em questão é uma edição do próprio autor, no melhor do do-it-  yourself. As aventuras do herói do livro e seu parceiro, a travesti anã Tinky Winky são quase um desfile de situações e personagens alegóricos bem longe do convencional e do caricato.  Nada mais do que a falência do ser como humano, o ser mergulhado em obscuridades e hedonismos sem freios, uma espécie de agonia da virtude. Definitivamente, a perturbação, o niilismo e o epílogo de qualquer tipo de moral, encabeçando um encadeamento pela lógica de posturas em completa busca de esgotamento.
Não há como não lembrar do filme O Cheiro do Ralo, baseado no livro homônimo de Lourenço Mutarelli. Ricardo tem o texto sob controle, habilmente urdido e equilibrado, para criar espaço e ambiente de um universo onde seus personagens vão se solavanco. É uma escolha difícil. Se o conselho de alguns editores é escrever ficção tendo um determinado tipo de público-alvo em mente, isso não significa que tal aconselhamento seja unanimidade. Não são todos os autores (e editores) que curtem muito a mesa-de-centro combinando com a moldura do quadro na parede.
A incursão do personagem principal do livro, que ora responde pelo pseudônimo de Souza Capanema, mas quando inserido no mundo da pornografia ganha o apelido de Gervásio Vasconcellos, tem sob sua batuta o que as pessoas comumente chamariam de escória. Nesse universo, o ator pornô Aníbal, Bete, Boca Aberta, o Judeu, Tinky Winky e tantos outros personagens descortinam o caráter como elemento duvidoso, ora descartável, ora fisiológico. Aventura-se sem pensar muito em perdas, em danos, em efeitos colaterais. Uma alegoria onde qualquer semelhança entre a moral duvidosa e esquelética com a vida real seria apenas mera coincidência?
Diante de um bom livro como Um Brinde em Copos de Plásticos, caímos no questionamento de alguns posts há meses atrás: qual o limite do do-it-yourself. A popularização dos métodos de impressão, o custo cada vez mais reduzido de se publicar um livro, não criaria uma faca no pescoço de editores e casas editoriais, uma abordagem muito mais por intimidação e constrangimento do que por qualidade do texto produzido? O custo cada vez mais reduzido de publicações não acarretaria numa enxurrada de textos sem a menor leitura crítica ou filtro qualitativo?
Quem, no caso de filtro qualitativo, faria o trabalho sujo? Quem colocaria o polegar para cima ou para baixo feito um imperador no circo romano? E quais seriam esses critérios?
Porque, até mesmo para vários editores e casas editoriais, o mesa-de-centro não tem que combinar com a moldura do quadro pendurado na parede da sala, em nome de certa oxigenação criativa que toda obra de ficção sempre deveria ter.
A porca torce o rabo de vez quando colocamos, nessa rota, a parte mais interessada e interessante em todo esse sistema: o público leito. O sentimento de tristeza ao terminar a leitura de Um Brinde em Copos de Plástico pode se resumir em dois pontos: primeiro, essa enxurrada de novos autores e livros, por conta do custo reduzido de publicação (o que permite o autor bancar sua própria edição) torna o encontro feliz do leitor com uma obra como Um Brinde… uma tarefa cada vez mais difícil. É muita cortina de fumaça para se achar um bom texto como a ficção de Ricardo Carlaccio.
Segundo: conhecendo a outra ponta, o público, fica cada vez mais difícil, na média santista e nacional, achar quem realmente passe da página 20 de Um Brinde em Copos de Plástico. Poderia se pensar num público mais jovem, mas, peraí… Achar que jovem não é reaça é um perigo daqueles. Ainda que o público jovem faça sua adesão à obra de Ricardo Carlaccio, o livro acaba se tornando uma espécie de catecismo do Carlos Zéfiro: para se ler escondido do pai, da mãe e da ala mais velha da família.
Até por um simples detalhe: quanto mais a sociedade avança na tecnologia dos números e na ciência da eletrônica, pior a capacidade cognitiva do grande público em entender que ao longo das páginas de Um Brinde em Copos de Plástico nada mais temos que uma alegoria, como em boa parte das obras de ficção. Não há um entendimento do universo literário como mímese, ou uma espécie de simulacro onde o trabalho do leitor é se remeter a referentes.
Já dá para ver que tanto autores quanto leitores estão sem bússola, sem seus smart phones com magnânimos GPSs. É uma quantidade considerável de gente na roça. E um bom livro como Um Brinde em Copos de Plástico sem o seu leitor.





Brasil: o país do tambor.

11 11 2011

          Que a língua portuguesa é uma língua de cultura, não gastemos tempo para provar o contrário. Pode gozar do mesmo prestígio do dinamarquês, do galês, do croata, do eslovaco. Isso são outros quinhentos. Que o Brasil produziu grandes nomes da literatura universal, também não gastemos muito tempo com isso. Um país que teve João Guimarães Rosa não é um país qualquer quando se trata de literatura.
          Mas, então, porque diabos o Brasil jamais teve um de seus autores laureado pelo prêmio Nobel de literatura? Se temos grandes escritores (como a internacional Clarice Lispector) e grandes obras literárias, porque vizinhos como Peru, Colômbia e Argentina já foram agraciados com tamanha honraria e nosso país ainda não?
          É uma investigação muito complexa e, consequentemente, difícil. Qualquer coisa que se diga sempre ficará soando como pretensão, sempre uma análise incompleta e incorreta do que realmente somos. Para piorar: num processo constante de juventude e mudança coloca qualquer item que se discorra aqui como o mais fino exercício do palpite, da orelhada.
          Lembro da 1ª Tarrafa Literária, numa mesa mediada por Vladir Lemos que contou com Xico Sá e Matthew Shirts, chefe de redação da revista National Geographic Brasil e hoje cronista da revista Veja. Uma observação pertinente de Matthew naquela mesa: literatura e leitura são atividades para dentro, são atividades em que os indivíduos podem executar de forma coletiva, mas nunca conseguem se desgrudar do caráter solo que esse ramo artístico possui. Em geral, quem lê o faz em silêncio. Pode até fazer em ambientes coletivos, como dentro de um ônibus, por exemplo, mas jamais trocando figurinhas com quem quer que seja. É uma atividade silenciosa, pessoal, quase íntima. Talvez a mais íntima das artes. É a mais básica dos métodos comunicativos, pois basta a vontade de um emissor e de um receptor, duas pessoas apenas, que 50% do evento já está bem encaminhado.
          Segundo Matthew, uma espécie de contrasenso. Apesar de ter adotado o Brasil de coração, sua percepção de mundo ainda possui traços da terra-natal, os Estados Unidos. Talvez um lugar do mundo onde é bem improvável que um povo muito ruidoso (como é o caso do brasileiro) seja lá afeito a atividade tão íntima e silenciosa.
          O brasileiro gosta de bater bumbo. Não há aqui qualquer sentido perjorativo na colocação. É uma fato cultural e pronto. O brasileiro é orgulhoso da sensualidade de seus corpos, do futebol que joga, de ser alegre e (ainda que seja uma baita de uma falácia) cordial, tranquilo e calmo. Um povo amigo e pacífico. Bastou três séculos de uma falsidade ideológica e o estrago está feito.
          O Brasil é país onde as pessoas sabem viver bem. Da bossa-nova com lindíssimas mulheres desfilando na praia com minúsculos trajes de banho. País-Sorriso. Mais 50 anos insistindo nisso e o próximo prêmio Nobel para um autor de língua portuguesa vai parar em Angola ou Moçambique. E isso são olhos de quem nos vê do lado de fora. Inclusive dos suecos, logo eles, que, de uma forma ou de outra, decidem quem leva o prêmio ou não.
          Dá até para imaginar a academia sueca reunida para decidir quem será o agraciado: Prêmio Nobel para um autor brasileiro? Aaah… Não vamos perder tempo com isso…
          Explicar para um intelectual sueco que não, não somos um povo bonzinho, que não sorrimos o tempo todo, que somos um povo violento pacas, que finge ser cortês e pacífico (historicamente, pergunte a um paraguaio), um lugar forradíssimo de favelas onde certamente a vida não é boa e se toca funk carioca ou rap, hip-hop, vai por mim, é trabalho de vulto.
          Tentar fazê-los entender que tivemos Clarice Lispector, João Guimarães Rosa, que a lendária banda de rock Legião Urbana foi capaz de fazer um primor de canção como Feedback Song for a Dying Friend é a sutileza das sutilezas. Depois da porta arrombada, faríamos o que? Como reverteríamos o quadro nos mostrando forrados de selos e casas editoriais, tradutores, revisores, poetas, contistas, cronistas, de várias nacionalidades e matizes?
          O que é pior (e isso, sim, é que mata e mostra o quanto não somos tão bonzinhos assim): não basta dizer que não gosta disso ou daquilo. Tem que bater forte, fazer pouco caso, humilhar. Não basta dizer que não gosta de funk carioca. Tem que bater pesado, fazer piada, botar abaixo de barata. E de preferência deixar bem claro que o funkeiro é um incivilizado, um pobre coitado, sem o verniz da erudição escolar e escolástica. Um juízo de caráter por conta do que canta, do conteúdo da obra. Não basta dizer que você não gosta do Paulo Coelho. O posicionamento precisa vir acompanhado de algum tipo de ataque frontal à pessoa do autor, seu caráter.
          Diante disso, como fica a cabeça de um sueco? Como ele concede um prêmio Nobel de literatura para um autor de um país onde a própria cultura é aviltada e atacada, sem dó, nem piedade, pelos próprios agentes culturais e população em geral? Onde as pessoas não ficam somente no gostei/não gostei? Onde a obra em questão é usada para atacar a moral do autor dela?
          Id est, já podeis, filhos da pátria, perceber que talvez sejamos um povo que não sabemos nos comportar de forma, no mínimo, razoável. E quem não se comporta direito, já sabem: fica sem a sobremesa. Não haverá, tão cedo, docinhos caramelados da geladeira depois do jantar.





Eu podia estar roubando, eu podia estar matando.

11 08 2011

"51 Mendicantos", de Paulo de Toledo

          Um dos grandes atrativos da áspera vida nas cidades é a fauna, o conjunto de júbilos, gozos e misérias humanas. A vida no campo é muito melhor, mais tranquila, o ar mais puro, temos mais verde. O que sobra nas cidades são as histórias que não deram certo. Vale, então, aquela velha máxima de que a história é sempre contada por aqueles que venceram. Nem sempre. O poeta santista Paulo de Toledo, um poeta observador, aquele observador com o olho curioso, recria a figura urbana do mendigo em sua obra 51 Mendicantos. Não. Não há aqui um corte profundo que nos identifique com os mendigos, nem tampouco um ordenamento meio na base da autópsia do que deu errado na vida dessas pessoas. Também não há uma tentativa de entender o que é um mendigo, como pensa, porque chegou naquele estado. Se a busca for por mandamentos da mendicância, é bom tirar o cavalinho da chuva igualmente. Aqui se trata de como a imagem de um ser em sofrimento pode recriar um espaço imaginário a partir do olho de quem vê.
          E Paulo de Toledo não economizou observação e imaginação para reconstruir um universo que, quase sempre, nos passa completamente desapercebido. De fato, num primeiro momento o trem acaba soando estranho pacas. Mas é surpreendente ver um poeta deitar os olhos nessa figura humana sempre associada a um sabor de derrota, de fracasso. Essa imagem de um homem vencido pela estranheza dos códigos urbanos, dos códigos sociais, ligado a inaptidão de se adequar a costumes que até mesmo nós (não mendigos) questionamos sua validade, seu sentido.
           A primeira leitura da obra de Paulo de Toledo deixou em minha boca um leve e imperceptível sabor de traquinagem. Sabe aquele garoto traquinas que escarnece do mendigo, que lhe atira coisas, só por passatempo, molecagem? Sabia que minha primeira leitura era um equívoco grande demais para continuar nela. Releitura, releitura, releitura… E depois achei a imaginação a serviço do registro de um personagem das cidades tão de carne-e-osso quanto todos nós. People we despise.
          Se Paulo de Toledo corrige esse equívoco, tinha de corrigir meu equívoco de uma primeira impressão tão rasteira, parca, fraca, débil. E descobri a figura do mendigo como um ser sentimental, racional, emocional, embutido na invisibilidade por nós produzida, essa invisibilidade deplorável de não enxergar os seres que nos cercam exceto pelo que mostram, ostentam, induzem, pelo que vestem, dirigem, pelo lugar onde moram, pela poupuda conta bancária.
          51 Mendicantos definitivamente é um livro onde o preconceito foi jogado fora, passa longe. Lá temos o mendigo, o herói desses poemas, como a mais fina, pura e cognoscível persona poética. Paulo de Toledo teve a felicidade de confir-lhe a autoridade artística, um posto que não fica nas mãos do autor, mas que transitoriamente termina na personalidade frágil, exposta e dependente de tudo que um mendigo possa ter.
          Sim, o mendigo de Paulo de Toledo possui ideal estético capaz de sensibilizá-lo ao que Immanuel Kant chamou de a forma da conformidade a fins de objeto. O mendigo a vê, e a ela é atraído, sem rodeios, sem protocolos de uma vida urbana débil, cheia de pífias idéias de ordem, que nada mais faz do que tolher brutalmente a sensibilidade de qualquer persona poética (ou artística).
nem tudo são flores
 
com o cacete o guarda dá no pé do ouvido
do mendigo que brincava comovido
de bem-me-quer com uma flor do município
 
(TOLEDO, Paulo de. 51 Mendicamentos, ilustrações de Sandro Saraiva. Porto Alegre, Editora Éblis, 2007.)

O poeta e escritor Paulo de Toledo

          Três versos em cada Mendicanto e a figura do mendigo completa seu desfile pelas questões humanas de uma subserviência pecuniária e tecnológica que expõe o ser humano a sua própria rugosidade feito um ralador de carne. O mendigo luta. Universaliza-se pelo ponto de intersecção com o leitor: a alma, o sopro, a elevação da arte, do artístico. Desde que o leitor não esteja impregnado pela aparência e não fique a abraçar o que lhe exposto. Um leitor que vai muito mais além do que os olhos apreendem. 
           Diferente de Poesia é Não, de Estrela Leminski (onde o poema é perpassado mais pela emoção do que pela imagem), 51 Mendicantos uniria David Hume e Maurice Blanchot no que tange a imagem & imaginário se ambos não fossem um tanto descontinuados em relação à imagem. Se para Hume tanto a impressão quanto a idéia se diferenciariam em relação a sua intensidade (a impressão é mais forte, portanto, inegociável), é na imagem em que elas se baseiam num primeiro contato com o objeto de nossa contemplação. Mas sem nada por trás desse objeto. É na inegociabilidade da impressão que arrefecemos sua intensidade e a tornamos idéia. Mas sem a loucura de acreditar que haja algo por trás do signo que invada nossa visão.
          Prudente Blanchot ter mantido a distância necessária entre o signo e a coisa real. Ainda que afirme na simultaneidade entre objeto e imagem, não correu o risco de alegar pesos iguais para ambos. Apenas afirmou que um não vem desassociado do outro. Meu único descontentamento com Blanchot vem com a não abordagem empírica da imagem (impressão & idéia) e com a não contemplação do caráter arbitrário e convencional do signo linguístico indicado por Ferdinand de Saussure, o que acaba tirando da jogada o(a) amado(a) leitor(a) num processo palimpsesto, de conclusão de um ciclo cognitivo. Mas isso é uma história para um outro por do sol…
          Se para Blanchot a imagem é uma outra possibilidade do ser, é na idéia (Hume, o arrefecimento da impressão) que o poeta Paulo de Toledo recria um espaço literário onde as palavras e expressões em língua inglesa presentes em 51 Mendicantos conota a sofisticação de uma tralha técnica, científica e tecnológica capaz de excluir esse ou aquele por situação finaceira e inadequação adaptiva em mundo sem explicação e sem sentido.
          A idéia de quem é o mendigo presente em seus poemas faz com que Paulo de Toledo corrobore a autoridade de persona poética, sem cair no perigoso apelo de transformá-lo num herói virtuoso. A idéia dessa imagem recria o espaço literário e a palavra literária (Blanchot) para intensificar a força dessa idéia, tornando-a impressão dentro desse espaço e, consequentemente, inegociável outra vez.
          Paulo de Toledo, assim, reforça sua opção mais empirista em 51 Mendicantos, mas com a singela cumplicidade de seu(ua) leitor(a). Transforma-o(a) não num(a) interlocutor(a), mas numa testemunha dos passos errantes do mendigo, em sua jornada, em sua epopéia de respirar simplesmente. Dá um passo além de Blanchot por não ignorar o(a) leitor(a) como integrante de relevância dentro de um ciclo comunicativo, de reconhecimento, de entendimento. A notícia de que o ser ao seu lado existe. Com todas as suas complexidades imateriais.




O viço do suporte formal (ou “Poesia não é catarse”)

2 08 2011
Poesia é Não

"Poesia é Não", da escritora e compositora Estrela Ruiz Leminski

Esses dois elementos estão intimamente unidos e um reclama o outro. Quer busquemos o sentido da palavra latina arbor, ou a palavra com que o latim designa o conceito “ávore”, está claro que somente as vinculações consagradas pela língua nos parecem conformes à realidade, e abandonamos toda e qualquer outra que se possa imaginar.

Esta definição suscita uma importante questão de terminologia. Chamamos signo a combinação do conceito com a imagem acústica: mas, no uso corrente, esse termo designa geralmente a imagem acústica apenas, por exemplo, uma palavra (arbor, etc.). Esquece-se que se chamamos arbor signo, é somente porque exprime o conceito “árvore”, de tal maneira que a idéia da parte sensorial implica a do total.

A ambiguidade desapareceria se designássemos as três noções aqui presentes se por nomes que se relacionem entre si, ao mesmo tempo que se opõem. Propomo-nos a conservar o termo signo para designar o total, e a substituir conceito e imagem acústica por significado e significante; estes dois termos tem a vantagem de assinalar a oposição que os separa, quer entre si, quer do total que fazem parte. Quanto a signo, se nos contentamos com ele, é porque não sabemos por que substituí-lo, visto não nos sugerir a língua usual nenhum outro”

(SAUSSURE, Ferdinand de, Curso de Linguística Geral. São Paulo, Ed. Cultrix, 2006, p. 16-17)

Pela primeira vez, enveredo pela poesia. Meu contato com a poesia foi escolar e acadêmico. Por força de um curso de Letras, a poesia estava presente. Por paladar, poesia para mim era Castro Alves e estamos conversados. Até que encontrei outros poetas ao longo da vida: Ferreira Gular, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Leminski, Vicente de Carvalho, os irmãos Campos, Mário Quintana, Manoel Bandeira, e tantos outros cuja minha falha de memória certamente cometerá uma tremenda injustiça.

Apesar da minha falta de jeito, tenho mantido contato com novos autores, em especial os daqui da cidade. Cada um com sua característica, com sua peculiaridade, com seu talento, com sua marca, com seu sabor especial. Graças a Deus, Santos em termos de poesia não é um rol de nomes cujo trabalho apresenta qualquer sinal de uniformidade. A poesia em por aqui, nesses tempos atuais, certamente não é monocromática. A variabilidade de matizes talvez seja a principal marca do cenário poético santista.

Abrindo essa incursão num terreno que domino muito mal e mal, fui apresentado a Poesia é Não, da escritora e compositora Estrela Ruiz Leminski, num sábado de autógrafos na Realejo Livros. Téo Ruiz, marido de Estrela, é santista também. No sobe-e-desce da vida, com a necessidade de proximidade com a capital São Paulo, mas sem perder a qualidade de vida para filhos ainda pequenos, veio o casal a habitar o litoral paulista. A cinco horas de carro da capital curitibana, diríamos que Téo e Estrela fundaram o eixo Curitiba-São Paulo, passando por Santos.

Como toda cidade de porto é meio que uma cidade de passagem, Téo e Estrela vieram passar algum tempo nesta modesta cidade dos mares do sul. Uma parte da vida que passa e não podemos contê-la. Como diz o querido Renê Ruas, segue o bonde…

Ferdinand de Saussure, um franco-suíço de sagaz investigação da língua, da linguagem e do signo linguístico, deixou uma obra póstuma (organizada por seus alunos e seguidores da Universidade de Genébra) chamada Cours de Linguistique Générale (o Curso de Linguística Geral), meio cartilha ou livro de cabeceira de quase todo estudante de Letras. Iniciei esse post com uma parte do livro onde ele introduz o signo linguístico, do que ele é feito, de sua relevância para o pontapé inicial da linguística como estudo científico.

Se o signo linguístico é feito de significante e significado (introduzido por Saussere como imagem acústica e conceito, respectivamente), o significante passou pelo resto do século XX como sendo um objeto de apreciação e, assim sendo, de acordo com Immanuel Kant  ( Königsber, 22 de abril de 1724 – Königsber, 12 de fevereiro de 1804), matéria do conceito. Nascia, assim, o entendimento do significante que também incluía o suporte formal.

Na linguística, o suporte formal nada mais é do que um formato físico do significante, o ato de grafar. A caneta deslizando sobre uma folha em branco, executando um determinado percurso, deixa como resultado apenas uma quantidade de tinta sobre o papel. Nada mais. Por conta do desenho do percurso sobre a folha, o leitor insere, num primeiro momento, o que Saussure chamou de imagem acústica, o significante. O que chamaríamos de entendimento do que aquele desenho representa. Posteriormente é que o leitor trabalha com o conceito, o significado, que, no caso da poesia, também perpassa por questões de morfossintaxe e estilística.

Poesia é Não levou-me a esse reencontro com Saussure. É uma obra que depende da tinta no papel, seu formato, seu percurso, sua disposição na folha do livro. A comunicação visual do suporte formal, ora amparando significante e significado, ora se opondo aos dois. É o apoio e o contrasenso. Claro que não há grandes novidades nisso que estou dizendo. Os concretistas faziam isso há décadas atrás. Não se trata aqui da invenção da roda ou algo semelhante. A diferença aqui se deve a marca que Estrela Ruiz Leminski deixa em sua poesia: de que o suporte formal pode ganhar novo sopro.

Jamais tinha imaginado que o suporte formal pudesse sofrer a condução de quem marca a folha de papel (hoje em dia, substituída pela tela em branco dos editores de texto, computadores). Estrela conseguiu desenvolver a inserção de si a partir do suporte formal. Pelo suporte formal de Poesia é Não, é possível encontrar os indícios de um modo de vida, de uma geração. Isso me pegou meio de calças curtas. Como técnico, o sopro estaria muito mais num campo sintagmático do que num simples suporte formal. Rodeio suíno: montei num porco.

Sendo o suporte formal uma quantidade x de tinta sobre papel, jamais tinha me preocupado com qualquer traço de presença de quem desenhou o percurso daquela tinta, o grafar do escritor. Não cabe aqui, igualmente, ser pego de surpresa com a capacidade comunicativa do suporte formal. Só não tinha imaginado que a partir dele conseguiria enxergar a marca de uma geração. Uma geração que aprecia e admira o academicismo, mas não é escrava dela. A possibilidade de intuir o academicismo sem escancará-lo, seja de forma proposital ou despretenciosa.

E tudo isso a partir do suporte formal. É a técnica sem conhecer a técnica. É a técnica quase inconsciente que pega de surpresa quem a domina. É a hora de cair do cavalo. É muito mais o toque das imagens do que a explosão de um racionalismo instrumental. Empírico em seu conteúdo por validar o conhecimento da vida pela experiência dos sentimentos. Razão pura por transmitir isso dentro de uma forma que consegue universalizar o que, em muitas vezes, passa despercebido. Ainda que essa seja a função de qualquer poeta, não imaginei em vida me deparar com a possibilidade de que o suporte formal pudesse ganhar viço novo. Ou que esse viço novo pudesse indicar aos leitores uma marca geracional.

Íntima da música, Estrela Ruiz Leminski carrega para a poesia de Poesia é Não aquilo que Sausurre chamou nos primeiros anos da década de 1910 de imagem acústica. Ainda que eu faça aqui o pecado de uma interpretação totalmente sem pé, nem cabeça, do que realmente Saussure quis dizer com imagem acústica, por conta dessa intersecção com a música (um ponto de convergência), Estrela conseguiu pegar na veia ainda que ela não tenha se apercebido disso. É a técnica sem conhecer a técnica. É a técnica a serviço da emoção, dos ritos de passagem.

Se o poeta Paulo de Toledo imprime em seu conteúdo o que os olhos vêem, seu cunho de observação das imagens, o que David Hume (Edimburgo, 07 de maio de 1711 – Edimburgo, 25 de agosto de 1776) chamou de impressão (algo inegociável primeiramente, mas que, perdendo a intensidade, torna-se idéia), Estrela Leminski não se resguardou na imagem para a sua impressão. Sua impressão não conta somente com a observância de algo, mas como esse algo, a partir de seus sentidos, abriu e fossilizou o caminho dentro de si (naquilo que Sigmundo Freud (Pribor, 6 de maior de 1856 – Londres, 23 de setembro de 1939), no seu primeiro estudo psicanalítico, sobre o aparelho psíquico, chamou de hábito).

Estrela Leminski conseguiu, a partir da possibilidade do suporte formal ganhar viço novo, expressar uma geração. Uma geração que flerta com a necessidade de uma psique mais apaziguada, mas que pode, com a psique não apaziguada, dizer a que veio. Deixar marcas, heranças de possibilidades.  De se apoiar, nessa busca da essência, na permissão de não apaziguar a psique, operando como um fomento de criação. A chegada do novo. O novo sempre vem.