As vísceras animais

10 04 2012

Os Bichos, de Manoel Herzog
Qualquer semelhança entre os bichos que nos cercam e eventualmente tudo o que nos compõe deveria ser, apenas, mera coincidência. Principalmente porque não nos caberia vestir a carapuça, assim, de forma tão fragorosa. Sabemos de antemão que todos nós temos o nosso lado animalesco, mas, cá entre nós, não conheço nenhum cachorro, porco, galo autor de Novelas Exemplares ou que tenha chegado a uma assombrosa A Metafísica dos Costumes. Se há, por favor, avisem porque até hoje não o encontrei.

Comparar o homem aos bichos sempre é tentador, independente da época. O que diríamos das fábulas, animais que falam, com malícia, com bondade, com maldade, com inteligência e sabedoria ilustrativas, com o coração terno e a ira de aço. Se a intenção da fábula é contar estórias para as crianças dormirem, essa vocação humana de encontrar vida fora do humano (e talvez isso explique porque tanto o assunto vida extraterrestre faça a cabeça de tanta gente) persegue o inconsciente de civilizações inteiras há muito tempo. Isso sem contar justificativas pela Teoria Darwinista para um mau-caratismo latente, escorando-se e esgueirando-se na máxima de que somos todos animais, afinal, para trair, subverter, subtrair, atacar, desrespeitar e matar. Uma tentativa confusa e rasa de formular uma ética animalesca que nos auxilie na tarefa de justificar a ignomínia.

Não, não somos bichos. Somos seres humanos e, enquanto não provem o contrário, capazes de formular os mais abstratos pensamentos. Não se trata aqui de sermos superiores na natureza, melhores ou piores do que quaisquer seres que nos cercam. Somos diferentes, com capacidades que talvez outros seres na natureza não possuem. Teorias naturalistas são interessantes, mas, como qualquer teoria, com suas falhas.  E uma delas é querer justificar nossa atitude abjeta colocando o homem no mesmo balaio-de-gato das posturas diletantes de um cachorro. Eu não sou cachorro, não…

É essa tensão entre o humano e o animalesco que é a marca do romance de Manoel Herzog, Os Bichos. Qualquer leitura do tipo a comparação do homem, da política, da natureza humana, das relações sociais com a sordidez do mundo animal é maltratar a referida obra logo de saída. É leitura rasa de releases nitidamente feitos por jornalistas que ainda acreditam que a fortuna crítica é algo facilmente adquirido em cursos de comunicação social. Diante de releases tão sem profundidade, se eu fosse cachorro (ou qualquer outro tipo de bicho), reclamaria no Ministério Público.

O homem é unido ao bicho pelo basal. Essa é a teoria quase rocambolesca de Lira, pai de Agda, a princípio adversário político de Luís Theófilo, o personagem principal da história de Os Bichos. A hierarquia dos urubus, tese inicial de Lira nas primeiras páginas do romance, é uma belíssima teoria (ou justificativa) para se apossar do que não lhe pertence, respaldar a política do farinha pouca, meu pirão primeiro e açoitar um estado de coisas pela miséria humana cabalmente determinada pelo biológico, não pelo social. A ponte entre o biológico e o social que, de uma certa forma, acaba fazendo a cabeça de Luís Theófilo ao longo da narrativa, acaba trazendo a questão da imobilidade social para todos, como se uma sociedade de castas fosse determinado pelo que o ser biologicamente é.

A porta de entrada para essa sedução de Lira por um sebastianismo ufanista e triunfal, seu projeto pessoal de megalomania por se tratar de ser ele, Lira, sucessor natural dos luíses que governaram a França, numa mistura de misticismo cabalista com maçonaria, só acontece pela paixão carnal entre Luís Theófilo e Agda, filha de Lira. Aliás, Agda é um capítulo à parte. Manoel Herzog foi de uma felicidade, mas de uma felicidade na construção de Agda ao longo do romance, que merece um espaço a parte, aplausos e fascinação.

Herzog foi de uma felicidade em reconstituir o elemento fêmea dentro de uma concepção carnal-espiritual onde seria natural dentre as mulheres a lascívia como meio de vida. Se nenhum homem resiste a sedução-cio de uma mulher, Agda, mesmo tendo casado com o filho do prefeito na obediência primitiva de uma costura política simplesmente, é escrava da costela de Adão. Mal esfriado o defunto do filho do chefe do Executivo local, retorna aos braços de seu grande amor, botando na boca o motivo escuso e primevo de ainda manter e guardar o seu sopro sob o sol.

Agda, que ao mesmo tempo impera soberana pela lascívia, combustível essencial para a preservação da espécie, é frágil por ser um símbolo de uma sociedade que ainda não saiu da fase oral. É a mulher cabocla, mestiça, cujas intimidades e permissividades tanto encantam, que alinhava politicamente e rende o masculino pelo corpóreo. Colocam à mesma mesa o marido e o amante, o oficial e o oficioso, como se tal harmonização, às raias do impossível, fosse a coisa mais natural do mundo.

A sagacidade de Herzog em justapor o coito humano ao animal é um dos segredos, aqueles ingredientes um tanto especiais que chefe de cozinha nenhum revela, que procura trazer a Os Bichos sua singularidade. Ainda que nos nossos tempos é quase impossível algo verdadeiramente novo no que tange a escrita criativa, o intercalar da narrativa em torno de Luís Theófilo e vozes dos animais presentes na obra (o cachorro, o urubu, o porco, o galo e o homem) confere a velocidade e o passo da obra na sedução da leitura. A graça do livro é que em momento algum, por mais que Manoel Herzog tenha como idéia a superfície de convergência do basal entre o humano e o animalesco, há uma tentativa de colocar ombro-a-ombro o homem e o bicho.

A tensão em Os Bichos, de Manoel Herzog, vem justamente da tentativa de reforçar esse ponto de intersecção primitivo entre homem e animal em situações onde homem e animal estão desalinhados. Se lascívia de Agda é elementar num jogo de fecundação, a megalomania de Lira é um produto meramente humano. Bicho nenhum chegaria a tanto, por mais que as sociedades protetoras dos animais achem os bichos legais demais (no que eu concordo, aliás).

No rescaldo de Os Bichos, bicho é bicho, homem é homem. Não se trata de uma obra de elevado propósito estético, mas de questionamentos quanto a condição humana de se suportar em sua miséria. Não há confusão de papéis. Luís Theófilo vive suas angústias e contratempos ao longo da narrativa procurando nos bichos alguma possibilidade de aliança. Cai em si, em sua própria consciência, de que o bicho-homem é muito mais ardiloso do que o bicho-animal. São hábitos distintos em éticas distintas, que, em certos instantes, estão lado a lado. Tudo tão diferente e igual ao mesmo tempo.





O Marapé que não existe mais

17 12 2010
Cuíca no Velório, de Renê Ruas

Não, não é minha intenção maldizer o futuro que chegou. Também não vou colocar-me como intenso opositor das novidades, das tecnologias, das mudanças do mundo, dos costumes. Quem escreve um blog não pode cometer a desfaçatez de falar mal do novo. O novo sempre vem. Ainda que não saibamos se para melhor ou pior. Entretanto, é desumano o roubo de nosso direito à saudade, dos tempos idos, aqueles que temos a absoluta certeza de que éramos muito, mas muito mais felizes.

José Luiz Tahan foi de uma feliz sacação ao chegar primeiro nas escritas de Renê Ruas, lançando Cuíca no Velório – Samba de Arrelia e Arrabaldes, pelo selo da Realejo Livros, lançamento esse, inclusive, que aconteceu no dia 03 de dezembro último, na sede do Ouro Verde FC, na Rua 9 de Julho (hoje Rua do Samba), no Marapé, Santos-SP.
 
Renê Ruas, para os que ainda não o conhecem e não estão familiarizados, é um dos cavacos da mais tradicional roda-de-samba de Santos, a Roda de Samba do Ouro Verde. Morador do Marapé desde o nascimento, depois do casamento, inaugurou seu solar no José Menino, mas jamais deixou de transitar no bairro de sua criação e paixão. Renê viu , pelo Marapé, a metamorfose que ocorreu em toda a cidade. O fim das casas, da arquitetura típica do bairro, dando lugar aos prédios e a um progresso incontrolável. O pior disso tudo: os anos apagaram os personagens que o Marapé zelou com tanto carinho, objeto de suas memórias e escritas.
 
Já dizia Leon Tolstói, canta a tua aldeia e cantarás o mundo. E Renê, como forma de conter na escrita o desaparecimento daquele Marapé de antigamente e suas respectivas personalidades, conta em suas histórias parte relevante da cultura santista. De sua gente, de hábitos e manias da cidade, de como a cidade pulsava muito, mas muito mais do que pulsa hoje em dia.
 
Um elemento importante e vivo no livro de Renê é o registro. Renê Ruas resgata o jeito de falar malandro e faceiro que só em Santos se encontra. Ainda que um registro de tempos idos, de expressões que já não se usam mais, mas que marcam um tempo da cidade. E é justamente por esse registro que Renê prende o leitor. Ora para os santistas modernos, que desconhecem completamente aquele jeito de falar, ora para quem não é da cidade, que tem a oportunidade de saber como o santista se expressa.
 
E o santista se expressa no seco, sem plumas, com sua enorme capacidade de bordões e expressões de uma linguagem espertamente figurada. E que, obviamente, demanda do receptor um raciocínio ligeiro de associações. O que para os santistas é mamão-com-mel, para quem é de outra localidade o texto pode até soar como sofisticado. O registro encontrado no livro de Renê Ruas exige de seu leitor certa ligeireza de pensamento, antes que a onda o(a) carregue.
 
Renê Ruas deu ênfase aos personagens, objetos e ocorrências do Marapé de sua infância e juventude. Resolveu não correr sérios riscos. Ainda que muito hábil na construção de seu tecido verbal, evitou pavonear seu texto, até mesmo por compromisso à coerência.  Não cabe narrar a história de tantos malandros feito um Alves Redol ou Eça de Queiróz. Por isso, não arriscou: capricou no período simples e períodos compostos só em caso de extrema necessidade. Foi simples e feliz no eixo paradigmático, batendo firme e certeiro numa morfologia que passasse bem longe de uma erudição fora do contexto, sob sério risco de entediar seu leitor(a) e pô-lo(a) para dormir.
 
O humor está presente em quase todas as histórias narradas no livro. Há trechos, sim, não tão contentes assim, mas que com o talento de Renê se tornam retratos peculiares desses personagens. Um outro aspecto positivo no livro Cuíca no Velório é que Renê Ruas reverencia essas figuras comuns, quase anônimas, sem cair na armadilha do pitoresco (no sentido pictorial de descrições pesadas e infinitas que, se mal administradas, jogam o ritmo da narrativa para escanteio).
 
Essa é a cabeça do marapense: rápido no gatilho, sem o canto bonito de uma retórica elaborada. Mas que dentro dessa filosofia, nos surpreende com a sofisticação do trato com o dia-a-dia. Lantejoulas e luréx, só no carnaval. Pelo livro de Renê Ruas, se entende a simplicidade do bairro e sua gente. Pelas narrativas de Ruas, entendemos porque a Rua 9 de Julho de transformou na Rua do Samba.
 
Cuíca no Velório em mãos e podem se aprontar para rir (às vezes muito) das boas histórias de um Marapé que não existe mais. Confesso que, no próximo sábado, na Roda de Samba do Ouro Verde, indagarei o autor sobre a veracidade dos fatos e dos personagens contidos no livro. Porque as histórias chegam às raias do insólito. Quem ler
Cuíca no Velório vai me dar razão.
 
E toca o bonde, motorneiro…