Da exuberância e ousadia

14 01 2013

Vicente Viciado, de Renato Negrão

Há muito, tanto nesse blog quanto no Pela Proa, venho afirmando que a literatura produzida no estado de Minas Gerais é uma literatura da exuberância. A literatura mineira é naturalmente exuberante. É difícil tecnicamente explicar esse traço encontrado nos escritos de boa parte dos autores mineiros. E diríamos que não é só na literatura apenas. Quem já ouviu o Toninho Horta, por exemplo, ou se amarrou no Clube da Esquina, sabe muito bem do que estou falando.

Murilo Rubião, João Guimarães Rosa, Roberto Drummond, Autran Dourado, Adélia Prado, Fernando Sabino… É bom eu parar por aqui porque certamente cometerei injustiças, esquecerei nomes que não poderia esquecer.

Em geral os autores mineiros trabalham bem mais no eixo paradigmático, o que, quase sempre, permite uma excelente impressão diante do leitor mais traquejado. E são exímios introdutores ao amor pela leitura porque não abusam do eixo sintagmático. Os autores mineiros vão de boa: reproduzem inicialmente a sintaxe sofisticada do homem comum mineiro para, mais a frente, criar uma sintaxe artisticamente insólita. Não tem como não se apaixonar.

Primeiramente, peço perdão pelo preâmbulo literatura mineira é exuberante. É um pleonasmo dolorido e horroso. Se é literatura mineira, associá-la à palavra exuberante é chover no molhado. É o mesmo que dizer que o fogo é quente. Os mineiros sabem ser irreverentes (irreverente no sentido de não reverenciar o common knowledge), revolucionários na trama de seus tecidos verbais e absurdamente ousados ao peitar bom-mocismos academicistas com uma sintaxe de tirar o cidadão do eixo.

No Brasil atualmente tem uns cabras que não estão para brincadeira. De Milton Hatoum a Antônio Xerxenesky, passando por Paulo Lins, Humberto Werneck (Deus seja louvado!), Lourenço Mutarelli, Ana Paula Maia, Maria Alzira Brum Lemos, Manoel Herzog, Marcelo Ariel, Modesto Carone, Ademir Demarchi, Alice Ruiz, Líria Porto, Flávio Viegas Amoreira e por aí vai…

Na seção Minas Gerais, além dos nomes citados de Humerto Werneck (Deus seja louvado!) e Líria Porto (descobri a Líria numa conversa que tive com a Alice Ruiz), cito dois que se transformaram no meu xodóId est, se falarem mal deles, vão comprar briga comigo (parcial pacas!): o quebra-muros de Ituiutaba, Whisner Fraga, e o homem urbano Renato Negrão.

Parcial, sim… Parcial. Ah, Marcelo, cê diz isso porque cê morou em beagá. Justamente! Entendo isso como conhecimento de causa. E mesmo quem nunca nem pôs os pés em Minas Gerais assina embaixo quando digo que a literatura mineira é exuberante. Passam-se os mundos e os calendários maias e a força da escrita vinda desse estado brasileiro continua a mesma. Só os néscios, incautos e apedeutas não se apaixonariam.

Como estou ainda no processo de leitura de Abismo PoenteSol Entre Noites do Whisner Fraga, o comentário de hoje é sobre o mais recente livro do poeta belorizontino Renato Negrão, com quem tive a honra de celebrar seu aniversário (sim, ele também é um capricorniano caprichoso!) na casa do Téo Ruiz e da Estrela Leminski, onde esteve hospedado recentemente.

Vicente Viciado é o mais recente trabalho de Renato Negrão. Se nos poemas publicados nesse livro encontramos a mesma exuberância comum na literatura mineira em geral, dessa vez encontramos a veia urbana de uma cidade pouco conhecida ainda dos brasileiros. Uma grande capital com sua mazelas e seus encantos (como qualquer lugar do mundo), mas que pratica o encanto em cada esquina dessa metrópole.

E devo jogar esse cadáver no colo da grande mídia, que só conhece Rio de Janeiro e São Paulo. O desconhecimento de cidades como Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba, Recife, Salvador, Florianópolis, Fortaleza, São Luiz e mais uma penca de capitais de estado é uma cegueira que envergonha a cultura nacional. Se pegarmos cidades não capital de estado como Londrina, Campinas, São José dos Campos, Juiz de Fora, Santos, Maringá, Ribeirão Preto, Petrolina, São José do Rio Preto, entre milhares que poderíamos citar aqui, é para posicionar a corda no lustre.

O poeta Renato Negrão apresenta a Belo Horizonte urbana, a metrópole que cada um de nós deveria conhecer (e bem!). Negão é o bicho-urbano-belorizontino que consegue, como ninguém, captar, interiorizar, potencializar, subverter e apresentar a Belo Horizonte urbis, a fauna da capital mineira, suas espécies, sua cadeia-alimentar, seu bioma.

Renato Negrão é o filho mais nobre, o filho-de-algo, o fidalgo que a veia urbana belorizontina pôs no mundo. O filho que completou a contemplação urbana paulistana da física dos interesses com tudo aquilo que justifica o movimento de alma (como diria Renata Pallotini). Aliás, nisso os mineiros são impagáveis e imbatíveis. A mesma parcimônia e sabedoria do homem comum mineiro em lidar com o retrato cru da vida pode ser, ouso dizer, amplamente encontrada na poética de Negrão.

O que diferencia sua poética dos demais nomes consagrados da literatura mineira e nacional é a sacação urbana de característica unicamente belorizontina. Não, é impossível encontrar esse olhar estando em São Paulo, no Rio ou em qualquer outro lugar do país. É uma alma cujo c0rpo, um dia, precisa estar em Belo Horizonte. Algo que o leitor não tem como escapar.

Ciborgue me deu

ciborgue me deu
um beijo na boca e me disse

não me peça
para gostar de seus poemas ou que
você goste dos meus

ou não me impeça
de não gostar dos meus ou de
gostar dos seus

porque tudo quanto é aço
silício alicate
interno e déu aqui

tudo quanto é melopéia
logopéia ali
e de lá a fanopéia nada traz

para a elípse entre nós
proezas no breu

O ciborgue de Cidade de Minas não se atém ao objeto beijado, não usa o ósculo como veículo de acepção. O beijo do ciborgue vai ao encontro descompromissado da leitura e da poesia sem as enfadonhas obrigações de julgamento (gostar ou não).  A poesia que toca o ciborgue é a feliz comunhão produzida pelo acaso da atração, esse sabor de aventura que tanto fascina o ser humano. O urbano moderno belorizontino (sem se perder no materialismo instrumental) acalenta a natureza meio carnal, meio etérea, que, às vezes, nos empurra, em outras, atravanca. E sempre o final feliz das luzes apagadas, o fim das distâncias corpóreas, o fechar os olhos e transitar numa dimensão alegremente sinestésica. Ô, coisa boa!

Um traço na poética de Renato Negrão, presente em Vicente Viciado, é o da revelação dos prazeres ocultos. Aquele prazer culpado, comprometedor, vivenciado nas sombras das alcovas BR-040, na esperança de que o crime, um dia, prescreva.

E assim

ofegante
o delegado pediu
a garota de programa
que lhe introduzisse
um pinto de borracha
vinte e três centímetros

a princípio sem ky
& depois com

alertado porém
se fofoca virasse
ele fudido fadado
ela fada fudida
a boca com formiga
no desossário
do minério

Negrão percebe os prazeres particulares subjacentes no bioma urbano belorizontino. Ele não olha a cidade somente com o prazer da contemplação, o olhar repleto do lirismo saudoso dos tempos de outrora, ou o coração carregado da pureza e ingenuidade artística do poeta que se pôs a parte no mundo pelo seu estado especial de criação. Renato Negrão joga nas onze. É autor do pecado e concede o perdão, percebe a lascívia e compartilha o clímax, não deleta o ponto g do limite entre o prazer e a tara perturbadora que ocorre sob a luz do abat-jour ou nas sombras das alcovas. no desossário/do minério é o arremate para lá de perfeito desse mundo Forest Hill que todo leitor que se pretende entender a poesia atual belorizontina deveria enfiar na carne. É possível, inclusive, sentir o cheiro do minério depois de uma noite perdida no fausto do gozo.

Essa contemporaneidade feita de urbano na poética de Negrão, contudo, não impede o leitor de encontrar a indução da beleza da arte no coração de carne. Sabedor de que nem só de carne vive o homem, o autor de Vicente Viciado nos coloca diante da cidade como possibilidade de nutrir a alma com o encanto do espaço-movimento da palavra e do gesto.

Coreografia

o espaço coreográfico da palavra
e sua aplicabilidade semântica
são pensados como estímulo
a outras configurações corporais

nossos corpos merecem e podem
dar respostas mais criativas
ao textos urbanos para além
de suas palavras de ordem
e de consumo

gestos como construção
transitoriedade como eixo
dispersão como método (…)

O poeta aqui nos apresenta a segunda pele do espaço virtual, condição sine qua non da criação (o nada, a ausência da coisa em si, objeto de estudo de uma boa disciplina de literatura comparada ou teoria da literatura num bom curso de Letras!). Renato Negrão nos impede a visão naïve de poéticas que colocam ao rés-do-chão o concreto armado do urbano. Ele nos indica que é possível, sim, criar o gesto incomum, o movimento novo, a sensibilidade como valor estético a partir do cenário diante dos nossos olhos. O que já está estabelecido não é fator de cerceamento ou impeditivo da expressão do corpo. A criação do corpo (o gesto) surge entre os rigores desse cenário e, sim, é capaz de ser surpreendente pelo inusitado desse ineditismo.

Renato Negrão percebe a cidade não como um desafio a se transpor, mas a mais preciosa companhia na arte de criar. E que, talvez, essa arte, além de demandar engenho, exija um pequeno toque apenas: a doçura de se estar sensível a perceber.

Vicente Viciado resgata, na segunda metade da obra, um hábito comum nas obras literárias brasileiras dos anos 1970 conhecido como carona. Nada mais é do que a participação de outro artista com textos que dialogam por afinidade estética com o universo do livro e do autor.

E na obra em questão, Marcelo Negrão trouxe quatro letras de músicas do CD Verdadeiro, do rapper belorizontino Das Quebradas. “(…) Suas letras tem a mobilidade de registro, funcionando bem tanto no formato canção, quanto pode funcionar no universo do papel, (…) com um texto impulsionado pelo humor e uma escrita ágil que se nutre de palavras de idiomas diversos, siglas, apelidos, fala popular urbana, provocando a linguagem, desestabilizando discursos para além das polarizações maniqueístas de “bem e mal” tão presentes no rap. (…)”

Renato Negrão, em seu Vicente Viciadoapresenta a Belo Horizonte que passei a conhecer, admirar e gostar desde 1994. A de verdade, sem a tradicional família mineira (às vezes, motivo de anedotas entre os próprios belorizontinos), desancando o machão mineiro e trazendo para perto uma sutil sensualidade em quase tudo que habita na capital mineira. Renato Negrão é o principal expoente do urbano na poesia belorizontina, reverenciando a exuberância e ousando na liberdade de intuir novos pensamentos sobre o porquê da arte dentro da civilidade áspera do concreto armado, do asfalto e dos viadutos. E, por favor, ouçam: não conhecer um pouco de Belo Horizonte pode ser algo muito perigoso. Não conhecer por completo pode ser fatal!





Uma voz das Alterosas

21 12 2010

Só em Beagá, de Eduardo Ferrari

Eduardo Ferrari,  jornalista do Portal iG, há anos atrás, recebeu uma sugestão de um amigo pessoal e também jornalista Sílvio Ribas, natural de Curvelo, que hoje está em Brasília, atuando no Correio Brasiliense. Por que você não escreve num blog? Blog, naqueles tempos, era novidade, coisa de jovem, ninguém sabia ao certo se era uma bolha ou vingaria. Foi, então, que resolveu acatar o conselho de Ribas e também cantar a sua aldeia. Veio com um baita de um blog chamado Só em Beagá. Para os que não tiveram a honra de morar na capital mineira, é entrar em Belo Horizonte pela porta da frente. Nem preciso dizer que era parada obrigatória quando procurava por textos novos que não estivessem em formato de livro.

Mas o livro, essa entidade que resiste bravamente, mostrou sua costumeira intromissão e se fez presente para os textos que eram exclusivamente eletrônicos. A editora da empresa de comunicação Medialuna, em parceria com a Mondana Editorial, lançou em 2008 os melhores posts do blog reunidos. Só em Beagá – Histórias, Crônicas e Reportagens Sob o Olhar de uma Cidade guia seu leitor desde a crítica ao modo de ser belorizontino até as figuras mitológicas que a jovem cidade, em seus apenas 113 anos (salvo a memória não me abandone), foi capaz de criar, como a Loira do Bonfim e o Capeta do Vilarinho.

É bem mais fácil Eduardo Neri Ferrari parar de respirar do que deixar de ser jornalista. Casado também com uma jornalista, a editora-chefe da Rádio Band Minas FM, Ivana Moreira, tanto ele quanto ela já estiveram na vizinhança quando trabalharam na grande mídia paulistana. Depois da fase catarinense da carreira, Eduardo Ferrari retorna à casa, mas carregando consigo olhos que já não eram tão parecidos a de seus conterrâneos que em Belo Horizonte edificaram vida durante o hiato.

Essa certamente é a primeira percepção de qualquer desavisado leitor de Só em Beagá. Se você é um leitor ávido por enaltecimentos, é bom exercitar a paciência de entender que nem tudo são flores na vida. Apesar de sua paixão por Belo Horizonte, Eduardo Ferrari é superior ao lugar de sua paixão e tem o cuidado de não tratar seu leitor como détraqué. Amor pela terra onde nasceu não significa condescendência. Ferrari não recua ou silencia diante daquilo que ele considera como algo que deveria ser melhor ou até mesmo um defeito da cidade. Isso, por si só, já é uma qualidade rara, a coragem de enfrentar um patrulhamento quase sempre acéfalo, incapaz de entender a crítica como uma possibilidade de melhoria.

O forte de Só em Beagá é o passeio ao longo de suas 125 páginas de como o mundo afeta o comportamento dos habitantes de Belo Horizonte. Por causa de seus olhos quase estrangeiros, Eduardo Ferrari não apenas obtém o recorte das cenas e cenários belorizontinos, mas convida seu leitor a entender um pouco como esse processo se constrói. E de uma possível semelhança com a terra-natal ou local de habitação desse leitor. Quando as diferenças culturais entre Belo Horizonte e os demais lugares do mundo são ao mesmo tempo o aterrador fator de que o humano guarda mais semelhanças do que diferenças.

Só em Beagá é um documento que relata a vocação de Belo Horizonte. Sem plumas ou ufanismos. Do jeito que toda cidade verdadeiramente é: um lugar maravilhoso que tenta sobreviver ao elemento humano inserido dentro dela. Tirando a cultura de cada local, as características de cada localidade, o elemento humano nas cidades é feito doença auto-imune: repele o que o terreno lhe ofereceu de melhor, numa sanha desvairada de hegemonia cujo peso as próprias pernas não aguentam. Eduardo Ferrari vai desde o movimento de alma que influencia tanto Belo Horizonte até a mítica de seus personagens, de seus cartões-postais, do que é ser belorizontino dentro do pulso da cidade.

Uma outra característica dos textos de Eduardo Ferrari (que também pode ser vista no livro Interlocutores, tema de um outro post nesse humilíssimo blog, em breve): ele conversa com o leitor por escrito. Sem os maneirismos de uma suposta oralidade ou o risco de pertubar o leitor com desabafos no papel. Eduardo Ferrari abre sua garrafa de vinho, compartilha uma generosa taça com seu leitor e dá a dose certa de álcool que toda boa conversa deveria ter. Passa bem longe do coloqualismo e dribla eventuais períodos compostos ora com a utilização do advérbio sozinho, de precisão cirúrgica, ora na redução de subordinadas na tentativa de esconder a sempre cansativa repetição dos verbos (conjugados ou não). Quando o período composto é inevitável, busca não colocar o pronome relativo como sujeito da oração subordinada que quase sempre leva o leitor ao início do período inteiro após a leitura, uma vez que tal estratégia implica em ruídos semânticos que interferem no bom andamento dessa conversa.

Isso sem contar com a utilização de notas em cada texto do livro. Já que o papel não possui o recurso de links, comuns nos textos da internet, essa contextualização é importante e essencial.

A Belo Horizonte de Eduardo Ferrari é única, singular. Mais importante de tudo, real. É a Belo Horizonte das virtudes e dos defeitos, das imagens e do que há por detrás delas. Só em Beagá é uma conversa sobre a cultura que a capital mineira construiu, ainda que nem mesmo parte dos belorizontinos tenha se dado conta de que ela existe. Uma cultura eminentemente belorizontina.