A difícil arte de ser dois

31 10 2012


Devo confessar que essa é uma arte difícil: ser escritor, autor de sua própria obra, e crítico literário ao mesmo tempo. Às vezes, certos autores sentam o relho no pobre do crítico. Ontem mesmo assisti um especial na TV Câmara sobre a obra de Carlos Nejar, onde, lá pelas tantas, e fazendo as devidas ressalvas obviamente, o poeta gaúcho não poupou a crítica. É claro que explicou sua razões, totalmente pertinentes. Tem meu apoio. Mas quando me vejo do outro lado, sinto que a prática do comentário crítico-técnico sobre literatura se torna cada vez mais áspera.

Principalmente porque os autores não entendem que, nesse outro lado da mesa, há um ser humano feito do mesmo material, passível dos mesmos problemas, agruras, vicissitudes, temores, crises. E que isso, de tempos em tempos, mexe com a psiqué (alma) do crítico literário. Neste espaço, o Literaturial, sou o primeiro a criticar o crítico, quase sempre centrado na idéia e afirmação de que muitos críticos literários são mais comentaristas do que críticos propriamente e de que é fácil encontrar gente despreparada para a arte da crítica (por isso o meu apoio ao Carlos Nejar).

Porém, toda vez que passo para esse lado de cá da mesa, confesso que a barra pesa tremendamente. O trabalho é até agradável, mas uma fonte interminável na produção de desafetos.

O pior disso tudo: expõe o fôro íntimo do crítico. Caso esteja passando por um momento complexo ou singular da vida, todo mundo, de certa maneira, fica sabendo. O que é ruim, chato à beça (para o crítico). Porque a crise pessoal do crítico mexe nas cores de sua leitura quando se depara com uma obra, objeto de sua crítica, que mereceria louvores. O que escrever num momento desses?

É mais ou menos isso que acontece comigo nesse momento. Gasto o triplo da energia para olhar com bons olhos obras que elegeram em sua estrutura narrativa o famigerado fluxo de consciência. Infelizmente, estou numa fase da vida sem a menor paciência para esse tipo de registro. Haja! Em mãos habilidosas como as de Joyce e Saramago, beleza… Show de bola! Só que o bonito no quintal do vizinho nem sempre tem a ver com nosso próprio estilo e nem sempre temos o talento para utilizar o que, nas mãos de outros autores, faz o difícil parecer fácil.

E eu, avesso às modinhas, infelizmente, ando pegando corda com esse tipo de forma de expressão. Modinha. Todo mundo acha bonito soltar a mente, se libertar, se permitir, sem prestar atenção que há uma tremenda técnica por detrás. Técnica, já ouviram falar? Fluxo de consciência não é orelhada, não é também sei fazer isso, meter o dedo na viola e seja o que Deus quiser. Tem domínio de técnica naquilo. Não é fruto de vontade apenas, é preciso certo talento e bom domínio do tópico frasal para que o leitor não tenha diante de si um troço ininteligível.

Permitam-me (e perdoem-me!)  o desabafo inconsistente e fora de hora, mas dá a impressão de que a literatura brasileira acordou no dia 01 de janeiro de 2000 achando a maior lindeza ser Kafka, Joyce, Saramago, sem olhar para seu próprio passado de Novelas de Aprendizado, de Autran Dourado, ou Os Ratos, de Dyonélio Machado. Se fosse a Inglaterra, com quase cinco séculos de tradição literária, até entenderia. Mas não é o caso brasileiro. Há uma tradição literária brasileira? Há. Tal tradição nos dá lastro para tentativas de padrões ainda não interiorizados devidamente pelos autores brasileiros? Tenho lá minhas dúvidas. O fato é que tanto Dyonélio quanto Dourado esfregam na cara de qualquer um que o romance psicológico não precisa de rocambolescas rupturasquebras de paradigma, para ser sofisticado.

Aí, eis que cai em mãos o próximo livro da fila: João Gilberto Noll. O grande e maravilhoso João Gilberto Noll. João Gilberto Noll, celebrado, querido. Claro que a minha crítica será parcial: um colega de profissão, também um homem de formação em Letras assim como eu. Cúmplice da mesma paixão silenciosa e secreta por esse mundo das palavras, do suco de cérebro. Estou do outro lado da mesa. Lá se vai a credibilidade do Literaturial.

Canoas e Marolas compõe uma série da editora Objetiva chamada Plenos Pecados, sobre os 7 pecados capitais. Noll parece-me que foi sorteado para o pecado preguiça, não sei aqui dizer ao certo se a obra foi encomendada. Segundo o site da revista Época, João Gilberto Noll refugiou-se durante nove meses na Costa da Lagoa, em Santa Catarina, para a confecção da obra, o que leva a crer que realmente tenha sido on demand.

No romance (que mais tem cara de conto), um homem, que ao longo da narrativa revela a alcunha de João das Águas, chega a uma ilha com a finalidade de, finalmente, conhecer sua filha, chamada Marta,  fruto de um romance com uma enfermeira num período da vida onde esteve hospitalizado. Na sua chegada à ilha, conhece um menino-índio que se torna seu companheiro de preguiça, com quem passa boa parte do tempo em ócio, entre as sobras das árvores e as permanências na praia.

Marta é médica, cuja especialidade é preparar pacientes terminais para a morte. Ao longo da história, o homem (ou João das Águas) descobre que sua filha espera um filho e desconfia que o menino-índio responde pela paternidade de seu neto. Assim, a primeira idéia que o leitor tem em relação aos personagens é que cada um representa uma fase da vida, a natureza sempre pródiga em sua força e renovação, numa história que simboliza fechamentos de ciclos e aberturas de outros.

Quando uma prosa quase poética é confeccionada por mãos hábeis e talentosas como as de João Gilberto Noll, a força corrente da narração perpassa o leitor de maneira sutil e suave. E esse é o grande mérito da beleza dessa obra de Noll. O espinhoso tema da vida quando acaba se torna poesia, é leve e tocante nas mãos de um profissional de Letras. O risco de não se gostar da história é zero. Mas, então, por que cargas d’água eu fiquei meio assim diante de uma das grandes obras da literatura contemporânea brasileira?

A escolha de Noll foi pela sua poética. Até aí, problema é meu. O chato de galochas aqui sou eu, não o autor. Noll optou pela superfície de convergência entre a prosa e a poesia no equilíbrio da mistura de frases curtas (característica de uma poesia mais contemporânea) e períodos compostos (quase sempre por subordinação e que denota a inclinação natural da prosa). Essa fronteira movediça entre prosa e poesia (chamada por alguns de prosa poética) se tornou, a bem dizer, um ente constante na literatura produzida no século XXI (e isso não quer dizer que não exista prosa poética produzida anteriormente).

Resumindo, minha fase pessoal me tornou um ser ignóbil e deplorável, que anda achando muito mais legal O Paraíso é Bem Bacana, de André Sant’Anna, do que Canoas e Marolas, do João Gilberto Noll. O que me coloca numa situação ruim, injusta com Noll (pois o livro é uma grande obra, é um grande texto). Eu queria muito ter gostado. E olha que o livro de Noll, do meio para o final, fica simplesmente excelente!

Tudo por conta da minha pentelhice atual em relação a parte de autores contemporâneos que andam confundindo fluxo de consciência com corrimento verborrágico. Dá nos nervos! A obra de João Gilberto Noll passa longe de um corrimento… Mas a simples perspectiva de estar diante de uma alegoria sobre a morte, a conclusão de ciclos, o fim de uma passagem pela Terra, motivo de tantos pensamentos que todos nós temos sobre a vida, colocou-me na defensiva. Uma poética de cunho delirante (o próprio narrados utiliza a palavra delírio algumas vezes), que deveria me trazer o deleite do belo (ou da graça), por conta dessa minha fase, ergueu minha guarda mais ainda.

Nem sempre a prosa poética traz densidade a uma narrativa, nem tampouco a torna sofisticada. É tão difícil entender isso? Brincar com ou subverter as fronteiras entre prosa e poesia não pode ser um molde-panacéia, a solução para tudo, a garantia de que sua obra será bem fófis naquele medo tremendo de que as pedras não alcancem a vidraça.

E ainda para piorar, a saber quem foi o gênio da Objetiva que associou Canoas e Marolas com preguiça. Provavelmente não consta no vocabulário desse profissional a palavra estupor, que melhor cabe para descrever a leseira encontrada tanto em João das Águas quanto no menino-índio. Os dois são muito mais regidos  pelo estupor do que pela preguiça propriamente dita. É quase propaganda enganosa: você ganha um carro num concurso de supermercado e quando vai tirar o prêmio descobre que o veículo é uma Brasília 77 azul-marinho. Ou seja, se eu já estava irritadiço, comecei a mostrar os dentes. É nisso que dá editora não contratar profissionais de Letras. Ah, Marcelo… Esquenta, não! Relaxa…

Enfim, rogo que leiam Canoas e Marolas, de João Gilberto Noll, imediatamente. Trata-se de um grande trabalho do romancista gaúcho. Definitivamente, coisa fina. Esqueçam minha irritabilidade momentânea e passageira. E deixem o trabalho de pegar de jeito  essa turminha do corrimento verborrágico comigo. Ao querido leitor do Literaturial, somente o prazer da leitura.





Ai, aaaaiii, aaaaaaiiiiii… Os referentes…

28 04 2012

Sinceramente, às vezes fico meio atônito diante de certas celeumas, tendências, ou seja lá o nome que se possa dar a certas discussões que aparecem na vida da gente.

No campo da literatura atualmente, há uma discussão meio deslocada, em geral sedimentada em teóricos que no século XXI já soam bem meia-boca, mas que, por causa da parca instrução costumeira de nossa inteligência brasileira, continuam fazendo sucesso. É muita gente distraída.

Em breve, teremos que baixar os glúteos na seringa e ver que os grandes nomes do século XX, na verdade, não eram tão bons quanto a gente imaginava. E ainda tem gente que emplaca doutoramento citando os falecidos. Ruim os doutorandos, ruim a universidade. É, a nova intelectualidade brasileira respira por aparelhos. Muito próximo da morte encefálica. Aliás, encefálica? Não foi à toa que o Supremo votou sobre interrupção da gravidez em casos de feto anencéfalo. Se valesse para os que estão respirando agora, haveria uma penca de gente na fila.

Maldades à parte, e tentando imprimir o mínimo de seriedade em um assunto que já não deveria ser levado tão à sério assim, alguém poderia me explicar o retorno dessa mania que, mesmo depois de tantas voltas que o mundo deu, deveria estar para lá de sepultado (ou, pelo menos, resolvido)? Por que ainda gastamos tempo com o velho assunto realidade e ficção?

Afinal de contas, esse assunto não deveria estar para lá de esgotado? Para que gastar tanto tempo precioso num assunto chato e que já deu o que tinha de dar?

Roland Barthes não decretou a morte do autor? Maurice Blanchot e Michel Foucault não especularam sobre a experiência do fora? Qual é o problema agora? Por que essa empulhação de novo em querer encontrar na vida pessoal do autor, em suas experiências passadas, a explicação de uma obra?

Por que essa eterna mania de servir o leitor com o livro, acompanhado de uma bula, guia, sabe-se lá o que, para explicar o que está escrito, para que o texto faça algum sentido ou tenha algum significado? Achei que tanto os leitores quanto os críticos já tivessem passado da fase oral. Achei que todo mundo já estivesse curtindo o tecido verbal e como o autor trabalhou a trama desse tecido. Qual é o problema agora?

O primeiro problema que vejo é que esse tipo de abordagem, esse tipo de discussão, dá uma chance enorme e danada para um plêiade de orelhudos arrotarem uma erudição que tenho lá minhas dúvidas. Como diz o Ademir Demarchi: de novo, o delírio da crítica. Pior do que o delírio, esse tipo de assunto é papel para cupins. Acaba atraindo gente rasa como um pires ocupando espaços de quem deveria ser do ramo.

Não, não há a menor necessidade de um autor ter vivenciado um universo específico para falar sobre tal assunto. Duvido que 80% dos autores que escreveram um romance de guerra tenham sequer empunhado uma arma de fogo. E nem por isso. Suas obras são de grande quilate, bem escritas, verossímeis e dignas de premiação em certos casos. Também não há o menor cabimento de um escritor se tornar um serial-killer por uns 4, 5, 6 meses a fim de caracterizar com rigor de veracidade um determinado personagem.

É óbvio que o olho que processa aquilo que se testemunha é único. Entendo que não se pode retirar do autor seu traço de personalização daquilo que vê. E não é esse o caso. Não se trata de colocar o autor para escanteio, nem de renegar a um segundo plano o autor ser humano. E é aí que reside a graça do negócio. A minha história de guerra será diferente de qualquer outro escritor. Será diferente da escrita pelo Ademir Demarchi, pelo Marcelo Ariel, pelo Manoel Herzog…

O meu olho é brasileiro. Por mais que vivencie uma realidade estranha ao meu habitat, ao meio meio de vida, captarei o diferente por esse olho que é meu: brasileiro, santista, meia-idade, masculino, oceânico, bilingue. Diferente de qualquer outro autor e esse é o tempero especial que cada um possui.

Posto isso e também a questão de que não há a menor necessidade de se vivenciar certas coisas (algumas delas bem escabrosas e abjetas), resta ao escritor algo de suma importância e que todo mundo já conhece (daí a perda da importância dessa discussão realidade e ficção): remeter-se ao referente.

É a habilidade de um autor remeter-se a um determinado referente que faz de uma obra especial. Ainda que o escritor tenha um ponto de partida dentro da realidade onde está inserido, jamais conseguirá um amplo domínio, um domínio total do assunto em questão. Logo, ele se remeterá a partes desse todo para garantir a verossimilhança de determinados trechos da obra e a agradabilidade diante de seu leitor. E estamos conversados.

Vasculhar na vida do autor algo que dê sentido à obra ou justifique certas passagens de um romance, de um conto, é uma tremenda empulhação. É afastar o leitor do livro, justificando a debilidade de uma obra ou de um escritor pela presunção de que a ficção é um ente menor do que a realidade quando os dois estão em pé de igualdade. É fustigar a chaga determinando que quanto maior for a correspondência daquela ficção com a realidade, melhor será a ficção.

Em suma: um tremendo desserviço. É insistir na decretação da inferioridade ficcional, de que ficção ou é obra menor ou simplesmente não existe. Mas é claro que ela não existe. Caso contrário, não seria chamada como tal. Entretanto, isso não significa que a prosa ficcional fique terminantemente reduzida a quanto ela pode ter de realidade.

A força da prosa ficcional está, inclusive, na habilidade de um autor se remeter a um referente que também é criação do próprio escritor, fruto da força e possibilidade criativa de quem tece o texto. Até mesmo o referente não precisa ser necessariamente um produto do meio, um ente real, concreto, corpóreo, com quem convivemos, almoçamos juntos ou tomamos café num fim-de-tarde. Não há teoria literária, sequer lei, que obrigue um escritor a somente se remeter a um referente que seja de carne e osso, que podemos encontrar a qualquer momento andando na rua.

A graça da prosa de ficção está aí: na oportunidade de se remeter a um referente pertencente a um mundo real ou não. Há amplas e quase infinitas possibilidades do autor se remeter a referentes que nada mais são do que criações suas também. Se há a graça na confusão entre realidade e ficção, a ausência dessa confusão é tão possível, saborosa e agradável quanto.  Portanto, façam-me o favor de deixar autores e leitores em paz que todo o resto se acerta, se ajusta.

Porque futucar vida de escritor na esperança de produzir uma bula para a leitura de uma obra torna a literatura um dolorido pé-no-saco. Não é à toa que leitor no Brasil anda fugindo de livro, de escritores e de todo universo literário. Lá vem aqueles caras arrogantes e chatos para cacete. É por essas e outras que entendo o desejo do Ariel em gravar um disco de sambas.





Sabe quanto custa?

13 03 2012

Concordo plenamente que atrelar a criação artística tendo em vista viabilidades comerciais das peças em questão é um péssimo conselheiro. O ato da criação é livre. É tudo que se pede. Criar sob ou pensando em amarras tão venais acaba que todo potencial de uma obra se perde por tentar agradar dois amos.

Toda obra, de um jeito ou de outro, quando atinge seu objetivo de “forma da Conformidade a Fins de Objeto, na medida em que é percebida nele sem representação de um fim” (Kant), torna-se perene, transcende. A intenção de uma estética através do uso de uma forma e de uma linguagem (no caso da literatura), sem ter um fim por finalidade e completamente desinteressada (o que, num primeiro momento, geraria uma contradição inicial) é a graça do artista. Ou seja, se numa hora dessas, com todos esses pratos para equilibrar (inclusive o da contradição), o artista fica com a cabeça no quanto vale o show, já sabe que vai ter muita louça se espatifando no chão.

Só que uma vez a obra de arte materializada, dois destinos a escolher: gaveta ou público. No caso da gaveta, o custo é zero. Agora, se há intenção de mostrar tal materialização da criatividade para, ao menos, um pequeno grupo de pessoas, já se sabe que esse impacto da operação trará certas despesas, certos custos.

Se há custos para colocar a obra de arte à disposição do maior número de pessoas, termina-se aqui, e assim, o discurso da criação livre. O ato criativo, volto a repetir, nada deve ter de pecuniário, nem por detrás, nem em seu alicerce, nem como motivo. Só que a materialização da criatividade (a peça em si) só terá serventia se alcançar o maior número de gente.

Eis o cadafalso da arte: a corda vai ao pescoço e o chão se abre. A difusão do que foi criado tem custos financeiros, sim. Nem relógio trabalha de graça. Há uma logística e disposição humana em torno da peça que não escapa da cobiça e que não encontra outro motivador que não seja o vil metal.

Acompanhar de perto o processo de um manuscrito virar um livro não necessariamente abriu meus horizontes, mas me tornou uma espécie de abutre, o comedor de carniça aguardando a falência de algum ser vivo. E geralmente a falência desse ser vivo reside num discurso até oportuno, mas sem o menor dedo de maior reflexão quanto ao pós ato criativo. Chega a ser engraçado, como se o ser humano (incluindo os artistas) vivesse de brisa.

Se creio que o ato criativo não deve ser pautado absolutamente por qualquer traço de pecúnia, também não acho justo que a peça artística resultante desse ato não atenda as exigências de custo que todo objeto nesse mundo possui. Como também não acho justo limar o artista que, lá pelas tantas, decidiu viver de sua atividade artística.

Não acho justo severas críticas aos artistas que optaram em fazer de seus nomes uma marca. Porque até mesmo os puristas, quer gostem do fato ou não, acabam se tornando, mesmo que de forma muito inconsciente, uma marca. Isso mesmo: uma marca! Feito um objeto de consumo, aquele mesmo produto enfiado num mercado consumidor. Não acho justo, lá pelas tantas, virarem os obuzes da pureza criativa e do bom-gostismo para cima de artistas como Adriana Varejão e Beatriz Milhazes que decidiram passar as últimas duas décadas batalhando em várias frentes a fim de gerar uma reputação pública. Reputação que, aliás, nada interfere ou interferiu no ato criativo e na qualidade da obra dessas duas artistas.

É cansativo ver discursos sobre a transcendência da obra artística, que jamais deve ceder às promessas fúteis do dinheiro (no que eu concordo plenamente), e se esquecer que, depois de pronto, esse ato criativo materializado nada mais é do que um manuscrito a espera de se transformar em cópias. É justamente essa transformação que tem um custo prático que muitos artistas, sabe-se lá porque, gostariam que não existisse.

Pois bem, aos fatos, então: se a logística da transformação de uma manuscrito em cópia não pode contemplar regras de mercado, acredito, assim, que os artistas não devem, em hipótese alguma, ser remunerados por aquilo que criaram. Acho muito válido o discurso criaçãoXconsumo, mas levar tal discurso a cabo implica em renúncia de se viver (ou ser pago) por aquilo que se criou. Nessa, até o Ecad perderia efeito, provavelmente.

A prática desse discurso criaçãoXconsumo implica na pureza em excesso: só seria realmente artista aquele que tivesse qualquer outra profissão que não fosse a de artistaescritor, e que dela tirasse seu sustento e financiasse as edições e reimpressões de sua própria obra. Uma espécie de Moacir Scliar em início de carreira. O discurso estaria validado, nesse caso, finalmente.

Agora, demandar de uma casa editorial linha de investimento numa obra literária e tirar da editora o direito de tratá-la como produto a ser inserido no mercado por causa desse discurso de não contaminação do ato criativo pela pecúnia, não sei o que é pior. Soa como deboche, provocação vazia, ladinagem, malandragem. Seria o caso, então, de se eliminar de vez as leis de renúncia tributária e os concursos públicos de fomento às artes, bem como ações pontuais das respectivas secretarias de cultura?

O que mais dói nisso tudo é que esse discurso, graças ao advento da grande rede e das redes sociais, virou bandeira de alguns, uma espécie de esperto marketing pessoal, um tipo de cabotinagem da essência artística. Vira discurso de efeito, provavelmente para impressionar pessoas e aplacar as demandas de uma alma egocêntrica. Às vezes, gostaria de estar vivo para testemunhar até onde essa falta de fôlego dissertativo vai parar.