Supresa de Ano Novo

8 02 2010

É bom começar o ano sendo surpreendido. Só quem gosta de livros é que consegue entender como um texto pode surpreender. Em especial por conta do autor. Ora quem escreve não é um escritor profissional, ora pertence a um outro tipo de atividade. Seja qual for o motivo, é sempre bom nos depararmos com um texto ou livro que nos pega de surpresa, seja pela sua leveza, pela sua luminosidade, pela sua carícia.

Por causa de um projeto iminente de atuar como ghost-writer para o projeto do meu amigo Alberto Brandi, o Betão, nesse ano de 2010, danei a meter as caras em lívros auto-biográficos, narrações de viagens e afins. Quando nos aventuramos em textos de autores que não são escritores, tudo pode acontecer. Mas as duas últimas experiências foram gratificantes.

A primeira foi com o livro Santos, do famoso fotógrafo J.R. Duran. Um livro rápido, porém noir, como toda obra de crime e mistério. Longe de ser macilento, porém carregado de certa urdidura. Mas esse será assunto de um outro post, quando retornarei ao livro Santos. Fica aqui a sugestão de leitura.

A segunda foi com o livro Cem Dias Entre o Céu e o Mar, do nosso grande navegador (e, dizem, torcedor do Peixe) Amyr Klink. Na sanha de encaminhar o projeto do meu amigo Betão, deparei com um livro e uma leitura singulares.

Cem Dias Entre o Céu e o Mar (Companhia de Bolso, São Paulo, 2009, 9ª reimpressão, 159 p., em torno de R$ 20,00) é a narrativa de Amyr Klink em sua primeira aventura, a travessia do Oceano Altântico num barco à remo, saindo em 10 de junho de 1984 do porto de Lüderitz, na costa da Namíbia, até a cidade de Salvador, capital do estado da Bahia, no Brasil.

O sagacidade do texto de Klink encontra-se exatamente no fato de ele não ser um escritor profissional, nem profissional de Letras. Nada contra profissionais de Letras, até mesmo porque sou um. Mas é fato que para profissionais de Letras a coisa é mais estreita. Torna-se quase fatal para quem é desse tipo de atividade carregar para dentro do trabalho e da construção do tecido verbal certos vícios e porque não dizer clichês que tornam qualquer leitura sempre tremendamente indigesta. Esse risco o caro leitor desse blog ou futuro leitor do livro desse comentário não correrá.

Porque a grande sacada do Klink foi manter a jovialidade do texto ao preservar toda a carga emotiva que antecedeu a viagem. O planejamento, a expectativa da partida, a burocracia na Namíbia que produziu aquele vai-não vai, tudo isso é logo de cara encontrado nas primeiras páginas do livro. Com se a viagem tivesse acontecida semana passada.

Uma característica marcante do livro é o seu texto leve. Sem aquela pretensão de ser literariamente engajado com uma estética que quase sempre acaba sendo um belo coice no balde. Amyr manteve o livro como um diário de viagem. Numa viagem solitária os personagens de sua empreitada acabaram se tornando os ventos, as correntezas, os pássaros, os dourados, as visitas das baleias e dos tubarões, seus contatos pelo rádio e até mesmo as incontáveis horas sem qualquer traço de humanidade por perto.

Com esse rol de personagens ao longo do livro, alguns leitores poderiam considerar tal leitura algo tremendamente maçante. A habilidade de Klink permitiu que a solidão da viagem se tornasse a linha mestra de sua narrativa, evitando concentração excessiva de adjetivos que quase sempre levam ao lugar comum de se existencializar algo simples. Para a visão de Klink, a vida é simples. Uma jornada difícil como atravessar o Atlântico por si só já merece a atenção do leitor e basta. Encontrar absurdo sentido na existência quando sua tarefa é chegar vivo do outro lado do oceano por si só já é complexo o bastante. Não soa bom conselheiro carregar isso para dentro do texto.

O coração do conjunto que encontramos no livro de Klink é que ele levou para dentro da narrativa o sonho de infância e juventude de singrar os sete mares. A paixão pela navegação, e somente isso, transpira no texto de Amyr. A reflexão que o leitor pode levar do livro é que tudo feito pelo prazer e paixão fatalmente tem enormes possibilidades de dar certo. Que procuremos aquilo que move nossa alma. No caso de Klink é a navegação. Que cada um encontre dentro de si aquilo que move a alma. Porque certamente o que move a alma será feito com grande alegria. E pode render um bom livro.

Se você deseja ser surpreendido por um bom texto e uma singular narrativa, Cem Dias Entre o Céu e o Mar pode ser o seu início de ano com o pé direito. Especialmente se você deseja saber o que é fazer algo que se gosta muito e como isso pode mover o mundo em grande alegria.