Boi, boi, boi… Boi da cara preta…

23 07 2012

Devo dizer que não sou profundo conhecedor da obra de Chico Buarque como escritor. Li Estorvo e olhe lá. Não que Chico desmereça a nossa mais especial atenção, não é isso. Esse grande mestre das artes brasileiras, esse cronista do nosso tempo, tanto na sua obra musical quanto literária, sempre terá o carinho do nosso olhar. Ainda que não seja uma unanimidade (o que é até saudável), sempre será o destino de nosso respeito por sua criatividade.

Lembro da minha época de infância, 1978, nada desse negócio e-book, downloads e outras bossas tão presentes no nosso dia-a-dia. Era a época dos bolachões de vinil, das enciclopédias Baden e Britânica cujos vendedores batiam de porta em porta oferecendo uma inestimável fonte de saber, principalmente para quem tinha filhos em idade escolar. Surgiu, nessa época, uma espécie de serviço que nada mais era do que venda de livros em domicílio. Respondia pelo nome de Círculo do Livro. Todo mês, um(a) vendedor(a) batia a sua porta para entregar a revista e marcar a data da coleta dos pedidos que eram entregues dias depois na casa do sócio do clube. Uma espécie de avon dos livros.

Foi na transição do governo Geisel para o governo Figueiredo que pintou em casa uma obra discutível para o momento de exceção que o país vivia. Escrito em 1974, Fazenda Modelo, de Chico Buarque, trazia a metáfora comum nas fábulas ao narrar as idas e vindas de seus bois-personagens dentro de uma grande fazenda.

Aqui se faz necessária, para os mais jovens, a seguinte digressão ou aparte:  com a repressão do regime militar, principalmente após o AI-5 de 1968, muitos artistas foram considerados subversivos e perigosos ao establishment de então, fazendo com que muitos saíssem do país em forçoso exílio. Era questão de salvar o próprio couro: ou se mandava ou corria o risco de parar no pau-de-arara. Chico Buarque foi parar na Itália. Em seu retorno ao Brasil, driblava os agentes da censura da Polícia Federal escrevendo letras de músicas ou livros carregados de metáforas. Vai que o censor não entendesse direito o que ele queria dizer e liberasse  a canção/livro?

Foi o caso de Fazenda Modelo. Guiados pelo boi Juvenal, líder daquele amplo curral, os bois descritos por Chico Buarque divertem o leitor em uma das mais contundentes críticas aos governos militares anteriores à data da obra, em especial ao governo extremamente opressivo de Emílio Garrastazu Médici, que governara o país entre 1969 e 1974. Foi o período mais sangrento contra os direitos civis que se tem notícia, perdendo, talvez, segundo alguns historiadores, para a ditadura Vargas.

Logo no início da obra, um mapa da fazenda e seus arredores. Mais adiante, o mesmo mapa, já com legendas mostrando a infra-estrutura da fazenda, que conta com aeroporto, motel e uma porrada de estádios de futebol. Na edição do Círculo do Livro, na página 71, a reprodução do pasquim local, enaltecendo o apoio popular ao boi Juvenal, com anúncios do tipo “(…) Sua fazenda precisa de uma KKKK, moto-serra elétrica, (…)” ou a inconfundível “(…)  Kulmaco, Tudo em materiais para construção, (…)”, numa possível alusão às empresas que estiveram por trás da construção da rodovia Transamazônica, um toque faraônico dos projetos nacionais perpetrados pelos governos militares, empurrados, acalentados e noticiados histericamente por Amaral Neto, O Repórter.

Sendo filho de Sérgio Buarque de Hollanda e com uma tremenda competência linguística, Chico reproduz na fábula Fazenda Modelo, Novela Pecuária o cenário social e político da época, com os seus barões famintos e mais uma série de figuras folclóricas que nada mais eram do que escroques oportunistas que se locupletavam de alguma maneira das situações que se descortinavam naquele momento. Uma série de situações que vão do cômico ao opressivo, mas sem um tom carregado de pesada crítica ao estado de coisas que imperavam naquele momento. Pelo contrário. Chico Buarque desfila um humor de cunho britanicamente irônico, tendo nessa subjacente ironia o substrato para pitadas equilibradas de deboche. Dificilmente um agente da censura chegaria a tamanha clarividência, o que, para nossa sorte, permitiu que o livro fosse reimpresso no final dos anos 1970.

Apesar do bom humor e de algumas passagens hilárias do livro, Chico mostra os dentes à caterva que naquele instante bem que tirava algum tipo de proveito da tragédia social e política que se abateu sobre o país naquelas décadas. Chico foi brilhante mais uma vez (permitam-me o pleonasmo): costurou a carapuça. Certamente teve muita gente na época que a vestiu confortavelmente, pessoas que deram graças a Deus quanto o autor iniciou nova fase literária a partir de Estorvo. Já outros sequer a usaram por conta exclusivamente da parca capacidade escolástica e intelectual.

O que podemos afirmar inicialmente é que Fazenda Modelo, Novela Pecuária mostra um Chico Buarque razoavelmente puto com certas figuras que pouco fizeram para que o merdelê não se instalasse do jeito que se instalou. Atrás do verniz bem humorado da obra, há um Chico que mete, outra vez, o dedo na ferida (olha o pleonasmo aí de novo!). Uma crítica contundente, mas não severa, de que, de certa maneira, também fomos responsáveis pela permanência de governos sanguinariamente opressores por conta de estarmos sempre às voltas com nosso próprio umbigo, afogados em nosso ridículo café pequeno.

Pode até ser que esteja redondamente enganado, uma vez que não li BudapesteLeite Derramado, obras mais recentes do Chico, mas acredito que Fazenda Modelo, Novela Pecuária foi o melhor livro que ele escreveu. Talvez pelo fato do autor ser mais jovem quando da materialização da obra, sem os vícios de intertextualidades ou subtextos presentes em seus últimos livros, já em idade avançada. Enfim, está lançado o desafio e a discussão. Uma coisa é certa: depois de ler Fazenda Modelo, há um sério risco do riso solto diante do bife de seu próximo almoço.





Ai, aaaaiii, aaaaaaiiiiii… Os referentes…

28 04 2012

Sinceramente, às vezes fico meio atônito diante de certas celeumas, tendências, ou seja lá o nome que se possa dar a certas discussões que aparecem na vida da gente.

No campo da literatura atualmente, há uma discussão meio deslocada, em geral sedimentada em teóricos que no século XXI já soam bem meia-boca, mas que, por causa da parca instrução costumeira de nossa inteligência brasileira, continuam fazendo sucesso. É muita gente distraída.

Em breve, teremos que baixar os glúteos na seringa e ver que os grandes nomes do século XX, na verdade, não eram tão bons quanto a gente imaginava. E ainda tem gente que emplaca doutoramento citando os falecidos. Ruim os doutorandos, ruim a universidade. É, a nova intelectualidade brasileira respira por aparelhos. Muito próximo da morte encefálica. Aliás, encefálica? Não foi à toa que o Supremo votou sobre interrupção da gravidez em casos de feto anencéfalo. Se valesse para os que estão respirando agora, haveria uma penca de gente na fila.

Maldades à parte, e tentando imprimir o mínimo de seriedade em um assunto que já não deveria ser levado tão à sério assim, alguém poderia me explicar o retorno dessa mania que, mesmo depois de tantas voltas que o mundo deu, deveria estar para lá de sepultado (ou, pelo menos, resolvido)? Por que ainda gastamos tempo com o velho assunto realidade e ficção?

Afinal de contas, esse assunto não deveria estar para lá de esgotado? Para que gastar tanto tempo precioso num assunto chato e que já deu o que tinha de dar?

Roland Barthes não decretou a morte do autor? Maurice Blanchot e Michel Foucault não especularam sobre a experiência do fora? Qual é o problema agora? Por que essa empulhação de novo em querer encontrar na vida pessoal do autor, em suas experiências passadas, a explicação de uma obra?

Por que essa eterna mania de servir o leitor com o livro, acompanhado de uma bula, guia, sabe-se lá o que, para explicar o que está escrito, para que o texto faça algum sentido ou tenha algum significado? Achei que tanto os leitores quanto os críticos já tivessem passado da fase oral. Achei que todo mundo já estivesse curtindo o tecido verbal e como o autor trabalhou a trama desse tecido. Qual é o problema agora?

O primeiro problema que vejo é que esse tipo de abordagem, esse tipo de discussão, dá uma chance enorme e danada para um plêiade de orelhudos arrotarem uma erudição que tenho lá minhas dúvidas. Como diz o Ademir Demarchi: de novo, o delírio da crítica. Pior do que o delírio, esse tipo de assunto é papel para cupins. Acaba atraindo gente rasa como um pires ocupando espaços de quem deveria ser do ramo.

Não, não há a menor necessidade de um autor ter vivenciado um universo específico para falar sobre tal assunto. Duvido que 80% dos autores que escreveram um romance de guerra tenham sequer empunhado uma arma de fogo. E nem por isso. Suas obras são de grande quilate, bem escritas, verossímeis e dignas de premiação em certos casos. Também não há o menor cabimento de um escritor se tornar um serial-killer por uns 4, 5, 6 meses a fim de caracterizar com rigor de veracidade um determinado personagem.

É óbvio que o olho que processa aquilo que se testemunha é único. Entendo que não se pode retirar do autor seu traço de personalização daquilo que vê. E não é esse o caso. Não se trata de colocar o autor para escanteio, nem de renegar a um segundo plano o autor ser humano. E é aí que reside a graça do negócio. A minha história de guerra será diferente de qualquer outro escritor. Será diferente da escrita pelo Ademir Demarchi, pelo Marcelo Ariel, pelo Manoel Herzog…

O meu olho é brasileiro. Por mais que vivencie uma realidade estranha ao meu habitat, ao meio meio de vida, captarei o diferente por esse olho que é meu: brasileiro, santista, meia-idade, masculino, oceânico, bilingue. Diferente de qualquer outro autor e esse é o tempero especial que cada um possui.

Posto isso e também a questão de que não há a menor necessidade de se vivenciar certas coisas (algumas delas bem escabrosas e abjetas), resta ao escritor algo de suma importância e que todo mundo já conhece (daí a perda da importância dessa discussão realidade e ficção): remeter-se ao referente.

É a habilidade de um autor remeter-se a um determinado referente que faz de uma obra especial. Ainda que o escritor tenha um ponto de partida dentro da realidade onde está inserido, jamais conseguirá um amplo domínio, um domínio total do assunto em questão. Logo, ele se remeterá a partes desse todo para garantir a verossimilhança de determinados trechos da obra e a agradabilidade diante de seu leitor. E estamos conversados.

Vasculhar na vida do autor algo que dê sentido à obra ou justifique certas passagens de um romance, de um conto, é uma tremenda empulhação. É afastar o leitor do livro, justificando a debilidade de uma obra ou de um escritor pela presunção de que a ficção é um ente menor do que a realidade quando os dois estão em pé de igualdade. É fustigar a chaga determinando que quanto maior for a correspondência daquela ficção com a realidade, melhor será a ficção.

Em suma: um tremendo desserviço. É insistir na decretação da inferioridade ficcional, de que ficção ou é obra menor ou simplesmente não existe. Mas é claro que ela não existe. Caso contrário, não seria chamada como tal. Entretanto, isso não significa que a prosa ficcional fique terminantemente reduzida a quanto ela pode ter de realidade.

A força da prosa ficcional está, inclusive, na habilidade de um autor se remeter a um referente que também é criação do próprio escritor, fruto da força e possibilidade criativa de quem tece o texto. Até mesmo o referente não precisa ser necessariamente um produto do meio, um ente real, concreto, corpóreo, com quem convivemos, almoçamos juntos ou tomamos café num fim-de-tarde. Não há teoria literária, sequer lei, que obrigue um escritor a somente se remeter a um referente que seja de carne e osso, que podemos encontrar a qualquer momento andando na rua.

A graça da prosa de ficção está aí: na oportunidade de se remeter a um referente pertencente a um mundo real ou não. Há amplas e quase infinitas possibilidades do autor se remeter a referentes que nada mais são do que criações suas também. Se há a graça na confusão entre realidade e ficção, a ausência dessa confusão é tão possível, saborosa e agradável quanto.  Portanto, façam-me o favor de deixar autores e leitores em paz que todo o resto se acerta, se ajusta.

Porque futucar vida de escritor na esperança de produzir uma bula para a leitura de uma obra torna a literatura um dolorido pé-no-saco. Não é à toa que leitor no Brasil anda fugindo de livro, de escritores e de todo universo literário. Lá vem aqueles caras arrogantes e chatos para cacete. É por essas e outras que entendo o desejo do Ariel em gravar um disco de sambas.





Sabe quanto custa?

13 03 2012

Concordo plenamente que atrelar a criação artística tendo em vista viabilidades comerciais das peças em questão é um péssimo conselheiro. O ato da criação é livre. É tudo que se pede. Criar sob ou pensando em amarras tão venais acaba que todo potencial de uma obra se perde por tentar agradar dois amos.

Toda obra, de um jeito ou de outro, quando atinge seu objetivo de “forma da Conformidade a Fins de Objeto, na medida em que é percebida nele sem representação de um fim” (Kant), torna-se perene, transcende. A intenção de uma estética através do uso de uma forma e de uma linguagem (no caso da literatura), sem ter um fim por finalidade e completamente desinteressada (o que, num primeiro momento, geraria uma contradição inicial) é a graça do artista. Ou seja, se numa hora dessas, com todos esses pratos para equilibrar (inclusive o da contradição), o artista fica com a cabeça no quanto vale o show, já sabe que vai ter muita louça se espatifando no chão.

Só que uma vez a obra de arte materializada, dois destinos a escolher: gaveta ou público. No caso da gaveta, o custo é zero. Agora, se há intenção de mostrar tal materialização da criatividade para, ao menos, um pequeno grupo de pessoas, já se sabe que esse impacto da operação trará certas despesas, certos custos.

Se há custos para colocar a obra de arte à disposição do maior número de pessoas, termina-se aqui, e assim, o discurso da criação livre. O ato criativo, volto a repetir, nada deve ter de pecuniário, nem por detrás, nem em seu alicerce, nem como motivo. Só que a materialização da criatividade (a peça em si) só terá serventia se alcançar o maior número de gente.

Eis o cadafalso da arte: a corda vai ao pescoço e o chão se abre. A difusão do que foi criado tem custos financeiros, sim. Nem relógio trabalha de graça. Há uma logística e disposição humana em torno da peça que não escapa da cobiça e que não encontra outro motivador que não seja o vil metal.

Acompanhar de perto o processo de um manuscrito virar um livro não necessariamente abriu meus horizontes, mas me tornou uma espécie de abutre, o comedor de carniça aguardando a falência de algum ser vivo. E geralmente a falência desse ser vivo reside num discurso até oportuno, mas sem o menor dedo de maior reflexão quanto ao pós ato criativo. Chega a ser engraçado, como se o ser humano (incluindo os artistas) vivesse de brisa.

Se creio que o ato criativo não deve ser pautado absolutamente por qualquer traço de pecúnia, também não acho justo que a peça artística resultante desse ato não atenda as exigências de custo que todo objeto nesse mundo possui. Como também não acho justo limar o artista que, lá pelas tantas, decidiu viver de sua atividade artística.

Não acho justo severas críticas aos artistas que optaram em fazer de seus nomes uma marca. Porque até mesmo os puristas, quer gostem do fato ou não, acabam se tornando, mesmo que de forma muito inconsciente, uma marca. Isso mesmo: uma marca! Feito um objeto de consumo, aquele mesmo produto enfiado num mercado consumidor. Não acho justo, lá pelas tantas, virarem os obuzes da pureza criativa e do bom-gostismo para cima de artistas como Adriana Varejão e Beatriz Milhazes que decidiram passar as últimas duas décadas batalhando em várias frentes a fim de gerar uma reputação pública. Reputação que, aliás, nada interfere ou interferiu no ato criativo e na qualidade da obra dessas duas artistas.

É cansativo ver discursos sobre a transcendência da obra artística, que jamais deve ceder às promessas fúteis do dinheiro (no que eu concordo plenamente), e se esquecer que, depois de pronto, esse ato criativo materializado nada mais é do que um manuscrito a espera de se transformar em cópias. É justamente essa transformação que tem um custo prático que muitos artistas, sabe-se lá porque, gostariam que não existisse.

Pois bem, aos fatos, então: se a logística da transformação de uma manuscrito em cópia não pode contemplar regras de mercado, acredito, assim, que os artistas não devem, em hipótese alguma, ser remunerados por aquilo que criaram. Acho muito válido o discurso criaçãoXconsumo, mas levar tal discurso a cabo implica em renúncia de se viver (ou ser pago) por aquilo que se criou. Nessa, até o Ecad perderia efeito, provavelmente.

A prática desse discurso criaçãoXconsumo implica na pureza em excesso: só seria realmente artista aquele que tivesse qualquer outra profissão que não fosse a de artistaescritor, e que dela tirasse seu sustento e financiasse as edições e reimpressões de sua própria obra. Uma espécie de Moacir Scliar em início de carreira. O discurso estaria validado, nesse caso, finalmente.

Agora, demandar de uma casa editorial linha de investimento numa obra literária e tirar da editora o direito de tratá-la como produto a ser inserido no mercado por causa desse discurso de não contaminação do ato criativo pela pecúnia, não sei o que é pior. Soa como deboche, provocação vazia, ladinagem, malandragem. Seria o caso, então, de se eliminar de vez as leis de renúncia tributária e os concursos públicos de fomento às artes, bem como ações pontuais das respectivas secretarias de cultura?

O que mais dói nisso tudo é que esse discurso, graças ao advento da grande rede e das redes sociais, virou bandeira de alguns, uma espécie de esperto marketing pessoal, um tipo de cabotinagem da essência artística. Vira discurso de efeito, provavelmente para impressionar pessoas e aplacar as demandas de uma alma egocêntrica. Às vezes, gostaria de estar vivo para testemunhar até onde essa falta de fôlego dissertativo vai parar.





Fagocitose

16 02 2012

Beatriz Rezende alerta: a formação de guetos pode ser tremendamente prejudicial à literatura.

Funciona mais ou menos como na música do Saia Rodada, eu te puxo e tu me lambeEu te elogio e você me dá uma força. É uma coisa meio estranha, ou esquisita, mas a realidade entre os artistas do texto está cada vez mais assim: ação entre amigos.

Diz o ditado popular que quem tem padrinho não morre pagão. A pergunta é até onde isso vale, até onde vai isso.

Pode parecer estranho pacas, mas a formação de guetos tem muito por trás a velha máxima de efetivar a arte de produzir efeito sem causa. São várias as indagações, como, por exemplo, até que ponto autores estão, por detrás da confecção de seus textos, querendo colo e afago?

Até que ponto a preocupação é com o elogio e tapete vermelho? Estranho? Pode até ser um exagero de minha parte, mas a quantidade grande de autores muitas vezes esconde ou camufla certas questões que deveriam ser mais artísticas, ou pelo menos mais técnicas.

Id est, se a banda continuar nessa toada, começaremos a reparar que tem muito espertalhão que por conta de um excelente marketing pessoal, aparece nos cenários dito artísticos e culturais como escritor, mas uma abordagem mais precisa, aquela boa e velha hora de espremer o texto do sujeito, e não vai sobrar muito para contar a história.

Ou seja, é compreensível a preocupação de Beatriz Rezende: os guetos são forma de proteção, ora do ego, ora da pessoa pública do escritor, de uma observação mais técnica, precisa e detalhada do que foi escrito, de fato. Caberia, assim, a boa e velha máxima de que o nome valeria mais do que a obra.

Independente do que seja, muito do que se fala da falência do discurso literário meio que se deve ao excesso: de textos, de autores, edições e por aí vai…

Mas o excesso não deveria ser considerado algo ruim. Sempre é bom textos à vontade. Só que no meio dessa imensidão talvez haja uma preocupação grande com o tapete vermelho e o tecido verbal fica para segundo plano.

Fica, assim, a dúvida sobre essa tal falência. De repente, ela não existe. O que existe, talvez, seja uma quantidade de gente preparada para tal, de ambos os lado da mesa.





Obrigações matrimoniais

14 10 2011

          Acho engraçado isso: após assinar os papéis do casamento, no civil, se um dos cônjuges não cumprir com alguns dos itens lá relacionados, coisas acontecem. Desde o fim do contrato até coisa pior (uma sub-versão dele). Ninguém fica satisfeito, ninguém fica feliz. Entretanto, quando o assunto é mercado editorial, voltamos a ver fantasmas ao meio-dia e ouvir vozes depois das 22 horas.

          Deus é testemunha que sou um defensor do do-it-yourself. Se tem alguém que pensa e acha que o escritor não pode ficar refém de uma espera interminável para uma publicação, esse alguém sou eu. Do fundo do coração, sou tremendamente favorável que o autor procure a melhor maneira de viabilizar a publicação e/ou trazer sua obra para o público (seja qual for o tamanho). Apenas penso que isso deveria ter em sua raiz o bom e velho for free and for fun. Que isso deveria ser, acima de tudo, divertido para o autor e o público.

          Porém, quando a publicação é uma forma de dar vazão a egocentrismos distorcidos e pressionar um mercado com seus próprios códigos e procedimentos, seria bom o(a) escritor(a) em questão repensar um pouco sobre o que é (ou deveria ser) literatura.

          Vivemos tempos difíceis. Sei disso. Tempos que transformaram o então famoso e charmoso marketing pessoal em um cabotinismo sem par. Egos inflados e mentes doentes quase sempre são nitroglicerina pura. Vivemos tempos difíceis, eu sei. Tempos onde os meios dão uma enorme atenção a tudo que é tóxico. E, ainda por cima, tentam quase que a todo custo enfiar goela abaixo de que isto é um valor dos tempos modernos, de que isso é bom pacas.

          Publicar nada mais é do que levar ao público. Só isso. Não é a tábua de salvação de uma carreira, não é um cafuné, não é prova-de-honra, não é a defesa de uma tese que tenta provar que essa ou aquela pessoa é indispensável artisticamente.

          Quando publicar se torna uma mecânica de defesa a qualquer tentativa de edição, a deterioração atinge seu grau mais avançado. Simples: com as recentes possibilidades de prensagem em quantidades reduzidas, praticamente qualquer um pode publicar o que quiser. Se na primeira leva as duzentas cópias são vendidas, logo o público, um ente soberano, referendou a qualidade daquele(a) escritor(a). E partir desse ponto em diante, ai do editor que venha com qualquer tipo de sugestão nas obras seguintes.

          É o famoso todo mundo quer ir para o céu, mas ninguém quer morrer. Quem senta do outro lado da mesa acaba não curtindo muito esse tipo de postura. Casas editoriais costumam deter CNPJs, impostos a pagar e toda sorte de encargos vencendo mês após mês. É impossível um editor não pensar no texto como um produto a ser adquirido. Ainda que o pensamento esteja vibrando na mesma frequência de onda da qualidade artística de um texto, com tantas contas a pagar, fica complexo não considerar a viabilidade comercial de uma obra.

          Se o lance é ser independente, sejamos independentes all the way. Utilizar um eventual sucesso inicial como instrumento de pressão contra qualquer tipo de flexibilização é fazer de qualquer projeto primeiro e único. Certamente o editor não vai querer repeteco. Pensará duas vezes antes de partir para uma segunda empreitada na base da pressão.

          Simples: se determinado autor já vendeu suas duzentas, quatrocentas cópias, que permaneça no do-it-yourself e seja o que Deus quiser. Agora, uma vendagem nessas condições justificar um baita tapete vermelho, entrar na casa editorial pela porta da frente, onde vale sequer passar pelo processo de edição, sei não… Fica esquisito pacas. Isso sem contar a gigantesca legião de autores que não possuem uma leitura mais crítica do que fazem, aquele leitor mais atento que evita cochilos e viagens onde só o escritor goza. Mais ninguém.

          A possibilidade de publicação não deveria jamais ser uma massagem no ego. Deveria ser um ato de comunicação, um contar uma história. Ainda que solta em estética particular e elaborada, deveria ser uma celebração do e com o público, não um ato vazão de si próprio. Penso que não foi para isso (um ato de vazão de si próprio) que o livro foi feito. E livro nenhum oriundo de uma casa editorial foge à necessidade de se transformar num produto, ou desrespeita os códigos, ritos e convenções do que é chamado mercado.