Gostaria de começar de forma positiva esse ano de 2012. Afinal esse é o primeiro post do ano. Daria aqui um destaque a esse ou aquele autor, esse ou aquele lançamento, mas decidi compartilhar a ação que um livro pode causar na conexão de uma cidade.
Na primeira Vitrolada do ano com DJs acidentais (Chico Marques e Mauro Pavesi), no Torto, quem por lá baixou viu se repetir uma cena que, mesmo não sendo frequente, ilustra bem o livro como ativo econômico. Não, não estou aqui fazendo defesa de livreiros, escritores e casas editorais. Esse primeiro post do ano vai um pouquinho mais além: a possibilidade de transformação que o objeto livro pode realizar (algo meio impensável para os e-books, pelo menos até o momento).
Na última terça, na esquina das avenidas Siqueira Campos e Bartolomeu de Gusmão, estava lá novamente o William. Não sei qual é o seu segundo nome (ficar enchendo o sujeito de perguntas e ele logo me daria como policial ou algo do gênero. Quem é da noite conhece essas criaturas e sabe bem que não são lá muito afeitas a certo tipo de inquisição). É um morador de rua que tem consigo um carrinho de supermercado onde carrega seus pertences e sua mercadoria: livros.
Estende uma lona plástica na calçada e organiza sua livraria ambulante. Alguns títulos manjados, outros totalmente interessantes. Enfim, apesar da quantidade diminuta, o nem-tão-trivial-assim era variado.
Perguntei o preço dos exemplares, a fim de saber se havia alguma diferença de valor entre eles. Afinal, havia livros de medicina expostos lá, pediatria, anatomia, logo pensei que ele praticaria preços distintos.
É tudo R$ 5,00. Isso mesmo! Toda aquela pequena fortuna tendo seus pedaços vendidos à R$ 5,00. Títulos irresistíveis, preço irresistível.
Puxei assunto com o William. O negócio é fazer uma baladinha diferente. Sei que o pessoal desse lado curte cultura, aí
vendo meu livrinhos. Pelo estado de conservação dos exemplares, provavelmente ele os consegue no lixo. Pois é, ainda tem gente que, ao invés de doar as edições a bibliotecas, joga fora. Enfim, bem a cara de uma parcela de nossa população que, apesar de rechonchuda conta bancária, é de uma indigência cultural sem par.
O trecho da Siqueira Campos entre Epitácio Pessoa e Bartolomeu de Gusmão é meio o quarteirão da alegria. De um lado o C4 e o Australiano. Do outro, o Torto. William foi feliz ao dizer que o pessoal desse lado curte cultura. No caso de uma Vitrolada, numa terça, a presença de jornalistas, artistas e pessoas simpáticas às causas culturais é um pouco maior do que baladeiros de fim-de-semana que certamente não estão sensíveis ao trabalho de William.
Se pouco conheço cabeça de baladeiro, o William não passa de um maloqueiro que vende livros encontrados no lixo para beber cachaça. Da minha parte, o que ele faz com o dinheiro que ganha vendendo seus livros não é da minha conta. William é uma pessoa que trabalha com livros. Ainda que longe de nossa fantasia de esteriótipos, William, na última terça, era a única loja de livros aberta naquele horário, com bons livros, alguns em excelente estado de conservação e por um preço condizente com sua atividade de ambulante (não precisa pagar aluguel, água, luz, IPTU, ISS e outros tributos).
Enfim, tem gente que ainda faz cara feia ou torce o nariz. Administradores públicos com contas em offshore para lavagem de dinheiro é que é bom, bacana, pelo jeito. William é humilde. Talvez nem saiba o valor do trabalho dele. Mesmo assim, achei aquilo algo positivo, não no sentido comercial e de sobrevivência de William, mas por sua percepção de Cultura como uma pulsação, como um elemento que pode muito bem ser orgânico numa cidade que se diz cultural, mas que aponta para um desertificação inimaginável.
William, naquele instante, representou tudo aquilo que a Cultura deveria ser: orgânica. Um movimento e um pulsar sem grandes reflexões, transgressões ou comprometimentos estéticos e pessoais. Vendo livros, diria William. O resto é com você, leitor(a).
A propósito, graças ao William, tenho em casa, agora, Crônicas Escolhidas de Lima Barreto, e O Conto da Ilha Desconhecida de José Saramago.