O valor da perturbação destemida

17 02 2011
"No Coração das Trevas", de Josef Conrad

"No Coração das Trevas", de Josef Conrad

No mundo de hoje, as pessoas valem pela sua competência. Ainda que essa competência, no fundo, seja apenas aparente. Alguns afirmam que as pessoas valem pela sua raridade. Outros dizem que a capacidade de inovação é o verdadeiro valor de alguém. Se Józef Teodor Konrad Korzeniowski fosse um encarregado de RH para a contratação de novos profissionais em uma grande firma, certamente os escolhidos após o processo de seleção não seriam os mais competentes, nem os mais raros, nem os mais inovadores. Seriam, simplesmente, aqueles com a melhor capacidade de não mostrar qualquer temor diante de suas próprias perturbações.

Joseph Conrad (cujo nome de bastismo é Józef Teodor Konrad Korzeniowski, nascido em 3 de dezembro de 1857, em Berdyczów, Polônia (atual Berdychiv, Ucrânia), e falecido em 3 de agosto de 1924, em Bishopsbourne, Inglaterra), na sua obra mais popular, Heart of Darkness (traduzido para o português como No Coração das Trevas), de primeira publicação em 1902, conseguiu tornar verbal a perturbação que faz as pessoas se mexerem na vida. Ainda que os efeitos colaterais de cada passo dado dentro desse processo de perturbação tragam marcas indeléveis.

Conrad consegue tornar ainda mais superior a escrita como arte (o que acidentalmente chamamos de literatura, e digo acidentalmente porque literatura é um conceito e definição difíceis de serem alcançados com certo sossego). Porque, para Conrad, é pulsante ao longo de No Coração das Trevas sua crença de que a psique só é grande e memorável se não está apaziguada. Porque é a psique não apaziguada que forja o artista. É a psique não apaziaguada que nos faz flertar com a dúvida. É a psique não apaziaguada que nos faz sair do lugar.

Qualquer bom aluno de uma boa escola de tradução sabe que nada substitui a leitura de uma determinada obra em seu texto original. Não tive essa possibilidade. O exemplar lido é da editoria Hedra e terei de confiar nas credenciais de José Roberto O’Shea, titular da cátedra de Literatura Inglesa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com pós-doutorado na Universidade de Birmingham (Shakespeare Institute) e Universidade de Exeter (ambos na Inglaterra).

Vale aqui lembrar que a língua inglesa é a terceira língua adquirida por Joseph Conrad ao longo da vida. E talvez por conta disso foi de um zelo com o idioma que assombrou muitos escritores renomados (como no caso de Virgina Wolf) cuja língua materna era o inglês. Apesar do forte sotaque, nas Letras, Conrad foi de um denodo e potência de causar inveja a muitos nativos da língua. Sem a presença do original, não há como avaliar o trabalho de José Roberto O’Shea. A observação aqui proferida vale para meus pares, tradutores, ainda que para o público em geral a importância do trabalho de uma boa tradução seja mitigada diante diante de um autor capaz de esmiuçar os subterrâneos da alma com a propriedade de quem deu a volta ao mundo.

Conrad é detentor de uma biografia agitada. Foi um homem que singrou os sete-mares. Ainda que nascido em uma região longe da costa, em 1874, aos 17 anos, integrou a tripulação de uma navio mercante francês em sua primeira viagem de Marselha a Martinica. Por força de sua paixão pela navegação, fez carreira na British Merchant Service, onde, após os devidos exames, tornou-se comandante. Em 1886, tornou-se cidadão britânico, quando passou seu nome para Joseph Conrad. Mas foi sua aventura nas selvas do Congo, em 1890, que marcaria em definitivo sua carreira como romancista e o tornaria um homem conhecedor das profundezas da alma humana. Do horror que pode assaltar qualquer um de nós. Seja pelo imponderável de um mundo invisível o qual não temos o menor controle, seja pelo resultado de nossas próprias escolhas.

A situação do Congo era considerada bastante peculiar no século XIX. Nenhum país o disputava. Talvez por isso tenha se tornado objeto de cobiça do rei Leopoldo II, da Bélgica, que, em 1876, realizou uma conferência em Bruxelas para examinar a situação da África. Como resultado da conferência, foi criada a Associação Africana Internacional, que se tornou uma organização pessoal do rei belga e o levou a criar a Associação Internacional do Congo.

Para se evitar conflitos entre países europeus em relação à exploração das riquezas africanas, Bismarck, em 1884, organizou uma conferência. Uma das resoluções foi a de que cada nação deveria notificar as demais sobre seus planos de colonização, inclusive com a descrição dos territórios a serem explorados. O mais insólito disso tudo foi o fato de todos concordarem com a propriedade pessoal do Congo pelo rei da Bélgica, ratificado pelo parlamento belga que o confirmou como chefe de Estado fundado na África pela Associação Internacional do Congo. O golpe de mestre veio com a morte de Leopoldo II, em 1908, onde legou o estado africano, em testamento, à Bélgica, em troca de memorável empréstimo concedido pela Câmara Legislativa belga.

O Congo era gerido da Bélgica por um Administrador Geral. Por conta das dificuldades e disputas, foi finalmente dividido em 15 distritos, cada qual representado por um Comissário, que por sua vez representavam o Administrador Geral. Diferentemente dos ingleses, que administravam suas possessões por meio de chefes locais, os belgas optaram por esvaziar esse poder dos chefes. O resultado foi a ausência total de direitos dos nativos. Leopoldo II concedia a varias companhias o direito da exploração do marfim em troca do pagamento de taxas. O trabalho era semi-escravo, caracterizado por salários quase inexistentes. A tirania e a brutalidade dos exploradores fomentavam uma amargura e um ódio generalizados no povo congolês. Foi para esse cenário, desconhecido por Conrad, que o autor se deslocou em 1890.

Consta que o comando do navio a vapor belga só foi conseguido por intermédio de uma prima, a quem tratava de tia, viúva de um primo de sua mãe, que morava na Bélgica e frequentava a alta sociedade. De cara, uma furiosa daquelas: substituir o comandante que havia sido assassinado. Só que para assumir o posto, precisou subir o rio e fazer um percurso de cerca de 321 km a pé, jornada que durou 36 dias. Ao chegar lá, descobriu que o navio estava encalhado e precisando de reparos. Já na África, mas ainda não no Congo, percebeu que seria um tempo difícil de sua vida, como se deduz das cartas que escreveu para amigos e para a tia. Meses depois, com a saúde muito debilitada pela febre e pela disenteria, pede por seu retorno à Europa. E foi a mesma tia que intercedeu a seu favor junto a companhia belga que o havia contratado. Sem essa ajuda, a existência de Conrad teria sido breve. A mesma brutalidade que os belgas tratavam os nativos era usada sem piedade por quem fosse contratado pela companhia.

A experiência no Congo, além de marcante na vida de Joseph Conrad, serviu de sustentação para sua obra mais popular, No Coração das Trevas. Nesse romance, Charlie Marlow narra sua jornada ao que considerava ser o coração das trevas, não só pela presumida selvageria dos nativos, mas também pela inexatidão do que se sente diante de um vasto mundo coberto por uma densa vegetação tropical, ambiente bastante diferente do padrão europeu. O choque de sentir-se deslocado já coloca o narrador-personagem em situação de ligeira perturbação.

A habilidade de Conrad em utilizar os elementos da selva, esse cenário estranho e agressivo, com a função de lenta e gradativamente amplificar a perturbação, torna No Coração das Trevas uma obra singular. Numa narrativa em 1ª pessoa, tal gradação não somente perturbava o narrador Charlie Marlow, mas também seus ouvintes e, de quebra, o leitor, que é convocado a passear pelo desconforto que tanto evitamos. Sabemos o quanto ingrato pode ser uma narrativa em 1ª pessoa, demanda muita habilidade de quem escreve. Mas para um artista como Joseph Conrad, ele consegue fazer o difícil parecer fácil.

No Coração das Trevas não é um romance de difícil digestão. A questão é que um leitor destreinado pode passar pela história sem saborear a densidade da narrativa e da perturbação vivida e sentida pelo seu narrador. E um leitor mais destreinado ainda talvez não consiga passar da trigésima página. O brilhante nessa obra é que Conrad exige que o leitor coloque suas cartas na mesa. Não é uma obra de leitor passivo, que empresta os seus olhos a uma história. Conrad novamente convoca a vivência que cada leitor possui, seja ela de magnitude ou não, de enormes proporções ou de tamanhos mais modestos, do horror. A vivência da angústia da espera pelas peças que nunca chegam para a embarcação encalhada que precisa de reparos, da incerteza da navegação rio acima, do pânico diante do ataque dos silvícolas, do obscurantismo que cerca a figura do Sr. Kurtz. A sintonia do leitor com tudo aquilo que o perturbe. Sem esse reconhecimento do desconforto ou do horror que se pode sofrer, as nuances ficam perdidas, um tanto soltas, o que para um leitor sem traquejo e desatento soa como um desfile desbragado da dor, gratuitamente, quando o conteúdo psísquico é justamente o contrário disso.

A psique em No Coração das Trevas não é um componente ornamental para um júbilo acadêmico e academicista ou gozo de uma densidade restrita a uma pretensa semi-intelectualidade. A psique neste romance nos toca fundo, nas dissonâncias que produzimos quase todos os dias sem ao menos nos atentarmos que foram de lavra própria. A psique não apaziaguada, a fuga da consciência, tem a ver com nosso grau de neuroticismo. É o neuroticismo de marca indelével que move Charlie Marlow a contar sua jornada pelo Congo, que o move a contar porque o Sr. Kurtz não voltou para casa e fez da África o seu sepulcro de olhos abertos. Reparem que o neuroticismo de Marlow evita que ele pratique uma falta, um pecado comum dos tempos contemporâneos: o da procrastinação.

Marlow se torna uma narrador incansável, obstinado, mas também obcecado pelo infortúnio da jornada ao Congo e pela felicidade de, enfim, entender o horror. Sua perturbação o põe em movimento e encara sua narrativa como uma tarefa urgente, sem pausas, sem escala, até que a última energia dele e de seus ouvintes (e leitores) se esvaia. Conrad não se deixa apegar por qualquer eventual arrefecimento da neurose: os níveis insustentáveis neuroticismo é o sabor da narrativa. A própria utilização repetidas vezes do verbo achar (a princípio transitivo direto, mas que evoca um predicativo que não é do sujeito, posto que o verbo é transitivo, mas do próprio objeto direto) instaura no leitor a instabilidade dos personagens, mas não pelo que são e sim pelo que fazem. Não por aquilo que eventualmente possam representar, mas pelo alvo direto de suas ações. A mudança de foco para o ato conduz o leitor a perturbação de psiques não-apaziguadas, que não estão escancaradas. Se um dos objetivos da prosa de ficção, ou um dos motivos que leva um autor a escrever, é revelar o que está oculto, Joseph Conrad, brilhantemente, joga por terra a premissa. O oculto também é um elemento da narrativa, também é um elemento do jogo com o leitor.

A parte final do livro, quando Charlie Marlow se encontra com a Pretendida do Sr. Kurtz é, de longe, uma das melhores peças da literatura universal. E com absoluta destreza, Conrad não caiu na bobagem de empacotar as últimas páginas com qualquer subliminaridade barata. Arrematou sua obra-prima com a mais fina epifania, encontrada em obras como Dubliners, de James Joyce. A composição sutil dos elementos da cena e a subjacência da dor da perda, ainda que jogue o colóquio final em tons e cores enegrecidos, é de um requinte que só encontrei no conto São Cristóvão, de Eça de Queiróz. Conrad foi absurdamente feliz em acertar o passo da marcha do diálogo entre Marlow e a Pretendida. Uma gradação que derruba Marlow como épico e o coloca como homem comum, caído dentro da covardia que o leva a mentir. Ora porque não quisesse mais se deparar com o horror, ora porque o sentimento de amor entre a Pretendida e o Sr. Kurtz não podia ser sepultado com a verdade. Pia fraus. E Charlie Marlow se revela um homem comum, não motivado pela dúvida, mas motivado por sua própria covardia.

Bem, minha missão para 2011 é destrinchar 1.371 páginas de textos selecionados de Joseph Conrad. A boa notícia: os textos estão no original, em inglês. A hora da verdade e uma eventual avaliação do trabalho de José Roberto O’Shea. Se você quiser aceitar o desafio de encarar literatura de fôlego, de quilate, entrar pela porta da frente do mundo literário, No Coração das Trevas, de Joseph Conrad. Uma obra para mentes sãs e leitores preparados. Caso contrário, relaxe e divirta-se com o best-seller de sua preferência.