Semeai livros a mão cheia e mande o povo pensar

12 01 2012

Conheçam William, um vendedor de livros

Gostaria de começar de forma positiva esse ano de 2012. Afinal esse é o primeiro post do ano. Daria aqui um destaque a esse ou aquele autor, esse ou aquele lançamento, mas decidi compartilhar a ação que um livro pode causar na conexão de uma cidade.

Na primeira Vitrolada do ano com DJs acidentais (Chico Marques e Mauro Pavesi), no Torto, quem por lá baixou viu se repetir uma cena que, mesmo não sendo frequente, ilustra bem o livro como ativo econômico. Não, não estou aqui fazendo defesa de livreiros, escritores e casas editorais. Esse primeiro post do ano vai um pouquinho mais além: a possibilidade de transformação que o objeto livro pode realizar (algo meio impensável para os e-books, pelo menos até o momento).

Na última terça, na esquina das avenidas Siqueira Campos e Bartolomeu de Gusmão, estava lá novamente o William. Não sei qual é o seu segundo nome (ficar enchendo o sujeito de perguntas e ele logo me daria como policial ou algo do gênero. Quem é da noite conhece essas criaturas e sabe bem que não são lá muito afeitas a certo tipo de inquisição). É um morador de rua que tem consigo um carrinho de supermercado onde carrega seus pertences e sua mercadoria: livros.

Estende uma lona plástica na calçada e organiza sua livraria ambulante. Alguns títulos manjados, outros totalmente interessantes. Enfim, apesar da quantidade diminuta, o nem-tão-trivial-assim era variado.

Perguntei o preço dos exemplares, a fim de saber se havia alguma diferença de valor entre eles. Afinal, havia livros de medicina expostos lá, pediatria, anatomia, logo pensei que ele praticaria preços distintos.

É tudo R$ 5,00. Isso mesmo! Toda aquela pequena fortuna tendo seus pedaços vendidos à R$ 5,00.  Títulos irresistíveis, preço irresistível.

Puxei assunto com o William. O negócio é fazer uma baladinha diferente. Sei que o pessoal desse lado curte cultura, aí

William e seu carrinho de fortunas literárias de toda espécie

vendo meu livrinhos.  Pelo estado de conservação dos exemplares, provavelmente ele os consegue no lixo. Pois é, ainda tem gente que, ao invés de doar as edições a bibliotecas, joga fora.  Enfim, bem a cara de uma parcela de nossa população que, apesar de rechonchuda conta bancária, é de uma indigência cultural sem par.

O trecho da Siqueira Campos entre Epitácio Pessoa e Bartolomeu de Gusmão é meio o quarteirão da alegria. De um lado o C4 e o Australiano. Do outro, o Torto. William foi feliz ao dizer que o pessoal desse lado curte cultura. No caso de uma Vitrolada, numa terça, a presença de jornalistas, artistas e pessoas simpáticas às causas culturais é um pouco maior do que baladeiros de fim-de-semana que certamente não estão sensíveis ao trabalho de William.

Se pouco conheço cabeça de baladeiro, o William não passa de um maloqueiro que vende livros encontrados no lixo para beber cachaça. Da minha parte, o que ele faz com o dinheiro que ganha vendendo seus livros não é da minha conta. William é uma pessoa que trabalha com livros. Ainda que longe de nossa fantasia de esteriótipos, William, na última terça, era a única loja de livros aberta naquele horário, com bons livros, alguns em excelente estado de conservação e por um preço condizente com sua atividade de ambulante (não precisa pagar aluguel, água, luz, IPTU, ISS e outros tributos).

Enfim, tem gente que ainda faz cara feia ou torce o nariz. Administradores públicos com contas em offshore para lavagem de dinheiro é que é bom, bacana, pelo jeito. William é humilde. Talvez nem saiba o valor do trabalho dele. Mesmo assim, achei aquilo algo positivo, não no sentido comercial e de sobrevivência de William, mas por sua percepção de Cultura como uma pulsação, como um elemento que pode muito bem ser orgânico numa cidade que se diz cultural, mas que aponta para um desertificação inimaginável.

William, naquele instante, representou tudo aquilo que a Cultura deveria ser: orgânica. Um movimento e um pulsar sem grandes reflexões, transgressões ou comprometimentos estéticos e pessoais. Vendo livros, diria William. O resto é com você, leitor(a).

A propósito, graças ao William, tenho em casa, agora, Crônicas Escolhidas de Lima Barreto, e O Conto da Ilha Desconhecida de José Saramago.





Eu podia estar roubando, eu podia estar matando.

11 08 2011

"51 Mendicantos", de Paulo de Toledo

          Um dos grandes atrativos da áspera vida nas cidades é a fauna, o conjunto de júbilos, gozos e misérias humanas. A vida no campo é muito melhor, mais tranquila, o ar mais puro, temos mais verde. O que sobra nas cidades são as histórias que não deram certo. Vale, então, aquela velha máxima de que a história é sempre contada por aqueles que venceram. Nem sempre. O poeta santista Paulo de Toledo, um poeta observador, aquele observador com o olho curioso, recria a figura urbana do mendigo em sua obra 51 Mendicantos. Não. Não há aqui um corte profundo que nos identifique com os mendigos, nem tampouco um ordenamento meio na base da autópsia do que deu errado na vida dessas pessoas. Também não há uma tentativa de entender o que é um mendigo, como pensa, porque chegou naquele estado. Se a busca for por mandamentos da mendicância, é bom tirar o cavalinho da chuva igualmente. Aqui se trata de como a imagem de um ser em sofrimento pode recriar um espaço imaginário a partir do olho de quem vê.
          E Paulo de Toledo não economizou observação e imaginação para reconstruir um universo que, quase sempre, nos passa completamente desapercebido. De fato, num primeiro momento o trem acaba soando estranho pacas. Mas é surpreendente ver um poeta deitar os olhos nessa figura humana sempre associada a um sabor de derrota, de fracasso. Essa imagem de um homem vencido pela estranheza dos códigos urbanos, dos códigos sociais, ligado a inaptidão de se adequar a costumes que até mesmo nós (não mendigos) questionamos sua validade, seu sentido.
           A primeira leitura da obra de Paulo de Toledo deixou em minha boca um leve e imperceptível sabor de traquinagem. Sabe aquele garoto traquinas que escarnece do mendigo, que lhe atira coisas, só por passatempo, molecagem? Sabia que minha primeira leitura era um equívoco grande demais para continuar nela. Releitura, releitura, releitura… E depois achei a imaginação a serviço do registro de um personagem das cidades tão de carne-e-osso quanto todos nós. People we despise.
          Se Paulo de Toledo corrige esse equívoco, tinha de corrigir meu equívoco de uma primeira impressão tão rasteira, parca, fraca, débil. E descobri a figura do mendigo como um ser sentimental, racional, emocional, embutido na invisibilidade por nós produzida, essa invisibilidade deplorável de não enxergar os seres que nos cercam exceto pelo que mostram, ostentam, induzem, pelo que vestem, dirigem, pelo lugar onde moram, pela poupuda conta bancária.
          51 Mendicantos definitivamente é um livro onde o preconceito foi jogado fora, passa longe. Lá temos o mendigo, o herói desses poemas, como a mais fina, pura e cognoscível persona poética. Paulo de Toledo teve a felicidade de confir-lhe a autoridade artística, um posto que não fica nas mãos do autor, mas que transitoriamente termina na personalidade frágil, exposta e dependente de tudo que um mendigo possa ter.
          Sim, o mendigo de Paulo de Toledo possui ideal estético capaz de sensibilizá-lo ao que Immanuel Kant chamou de a forma da conformidade a fins de objeto. O mendigo a vê, e a ela é atraído, sem rodeios, sem protocolos de uma vida urbana débil, cheia de pífias idéias de ordem, que nada mais faz do que tolher brutalmente a sensibilidade de qualquer persona poética (ou artística).
nem tudo são flores
 
com o cacete o guarda dá no pé do ouvido
do mendigo que brincava comovido
de bem-me-quer com uma flor do município
 
(TOLEDO, Paulo de. 51 Mendicamentos, ilustrações de Sandro Saraiva. Porto Alegre, Editora Éblis, 2007.)

O poeta e escritor Paulo de Toledo

          Três versos em cada Mendicanto e a figura do mendigo completa seu desfile pelas questões humanas de uma subserviência pecuniária e tecnológica que expõe o ser humano a sua própria rugosidade feito um ralador de carne. O mendigo luta. Universaliza-se pelo ponto de intersecção com o leitor: a alma, o sopro, a elevação da arte, do artístico. Desde que o leitor não esteja impregnado pela aparência e não fique a abraçar o que lhe exposto. Um leitor que vai muito mais além do que os olhos apreendem. 
           Diferente de Poesia é Não, de Estrela Leminski (onde o poema é perpassado mais pela emoção do que pela imagem), 51 Mendicantos uniria David Hume e Maurice Blanchot no que tange a imagem & imaginário se ambos não fossem um tanto descontinuados em relação à imagem. Se para Hume tanto a impressão quanto a idéia se diferenciariam em relação a sua intensidade (a impressão é mais forte, portanto, inegociável), é na imagem em que elas se baseiam num primeiro contato com o objeto de nossa contemplação. Mas sem nada por trás desse objeto. É na inegociabilidade da impressão que arrefecemos sua intensidade e a tornamos idéia. Mas sem a loucura de acreditar que haja algo por trás do signo que invada nossa visão.
          Prudente Blanchot ter mantido a distância necessária entre o signo e a coisa real. Ainda que afirme na simultaneidade entre objeto e imagem, não correu o risco de alegar pesos iguais para ambos. Apenas afirmou que um não vem desassociado do outro. Meu único descontentamento com Blanchot vem com a não abordagem empírica da imagem (impressão & idéia) e com a não contemplação do caráter arbitrário e convencional do signo linguístico indicado por Ferdinand de Saussure, o que acaba tirando da jogada o(a) amado(a) leitor(a) num processo palimpsesto, de conclusão de um ciclo cognitivo. Mas isso é uma história para um outro por do sol…
          Se para Blanchot a imagem é uma outra possibilidade do ser, é na idéia (Hume, o arrefecimento da impressão) que o poeta Paulo de Toledo recria um espaço literário onde as palavras e expressões em língua inglesa presentes em 51 Mendicantos conota a sofisticação de uma tralha técnica, científica e tecnológica capaz de excluir esse ou aquele por situação finaceira e inadequação adaptiva em mundo sem explicação e sem sentido.
          A idéia de quem é o mendigo presente em seus poemas faz com que Paulo de Toledo corrobore a autoridade de persona poética, sem cair no perigoso apelo de transformá-lo num herói virtuoso. A idéia dessa imagem recria o espaço literário e a palavra literária (Blanchot) para intensificar a força dessa idéia, tornando-a impressão dentro desse espaço e, consequentemente, inegociável outra vez.
          Paulo de Toledo, assim, reforça sua opção mais empirista em 51 Mendicantos, mas com a singela cumplicidade de seu(ua) leitor(a). Transforma-o(a) não num(a) interlocutor(a), mas numa testemunha dos passos errantes do mendigo, em sua jornada, em sua epopéia de respirar simplesmente. Dá um passo além de Blanchot por não ignorar o(a) leitor(a) como integrante de relevância dentro de um ciclo comunicativo, de reconhecimento, de entendimento. A notícia de que o ser ao seu lado existe. Com todas as suas complexidades imateriais.




O viço do suporte formal (ou “Poesia não é catarse”)

2 08 2011
Poesia é Não

"Poesia é Não", da escritora e compositora Estrela Ruiz Leminski

Esses dois elementos estão intimamente unidos e um reclama o outro. Quer busquemos o sentido da palavra latina arbor, ou a palavra com que o latim designa o conceito “ávore”, está claro que somente as vinculações consagradas pela língua nos parecem conformes à realidade, e abandonamos toda e qualquer outra que se possa imaginar.

Esta definição suscita uma importante questão de terminologia. Chamamos signo a combinação do conceito com a imagem acústica: mas, no uso corrente, esse termo designa geralmente a imagem acústica apenas, por exemplo, uma palavra (arbor, etc.). Esquece-se que se chamamos arbor signo, é somente porque exprime o conceito “árvore”, de tal maneira que a idéia da parte sensorial implica a do total.

A ambiguidade desapareceria se designássemos as três noções aqui presentes se por nomes que se relacionem entre si, ao mesmo tempo que se opõem. Propomo-nos a conservar o termo signo para designar o total, e a substituir conceito e imagem acústica por significado e significante; estes dois termos tem a vantagem de assinalar a oposição que os separa, quer entre si, quer do total que fazem parte. Quanto a signo, se nos contentamos com ele, é porque não sabemos por que substituí-lo, visto não nos sugerir a língua usual nenhum outro”

(SAUSSURE, Ferdinand de, Curso de Linguística Geral. São Paulo, Ed. Cultrix, 2006, p. 16-17)

Pela primeira vez, enveredo pela poesia. Meu contato com a poesia foi escolar e acadêmico. Por força de um curso de Letras, a poesia estava presente. Por paladar, poesia para mim era Castro Alves e estamos conversados. Até que encontrei outros poetas ao longo da vida: Ferreira Gular, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Leminski, Vicente de Carvalho, os irmãos Campos, Mário Quintana, Manoel Bandeira, e tantos outros cuja minha falha de memória certamente cometerá uma tremenda injustiça.

Apesar da minha falta de jeito, tenho mantido contato com novos autores, em especial os daqui da cidade. Cada um com sua característica, com sua peculiaridade, com seu talento, com sua marca, com seu sabor especial. Graças a Deus, Santos em termos de poesia não é um rol de nomes cujo trabalho apresenta qualquer sinal de uniformidade. A poesia em por aqui, nesses tempos atuais, certamente não é monocromática. A variabilidade de matizes talvez seja a principal marca do cenário poético santista.

Abrindo essa incursão num terreno que domino muito mal e mal, fui apresentado a Poesia é Não, da escritora e compositora Estrela Ruiz Leminski, num sábado de autógrafos na Realejo Livros. Téo Ruiz, marido de Estrela, é santista também. No sobe-e-desce da vida, com a necessidade de proximidade com a capital São Paulo, mas sem perder a qualidade de vida para filhos ainda pequenos, veio o casal a habitar o litoral paulista. A cinco horas de carro da capital curitibana, diríamos que Téo e Estrela fundaram o eixo Curitiba-São Paulo, passando por Santos.

Como toda cidade de porto é meio que uma cidade de passagem, Téo e Estrela vieram passar algum tempo nesta modesta cidade dos mares do sul. Uma parte da vida que passa e não podemos contê-la. Como diz o querido Renê Ruas, segue o bonde…

Ferdinand de Saussure, um franco-suíço de sagaz investigação da língua, da linguagem e do signo linguístico, deixou uma obra póstuma (organizada por seus alunos e seguidores da Universidade de Genébra) chamada Cours de Linguistique Générale (o Curso de Linguística Geral), meio cartilha ou livro de cabeceira de quase todo estudante de Letras. Iniciei esse post com uma parte do livro onde ele introduz o signo linguístico, do que ele é feito, de sua relevância para o pontapé inicial da linguística como estudo científico.

Se o signo linguístico é feito de significante e significado (introduzido por Saussere como imagem acústica e conceito, respectivamente), o significante passou pelo resto do século XX como sendo um objeto de apreciação e, assim sendo, de acordo com Immanuel Kant  ( Königsber, 22 de abril de 1724 – Königsber, 12 de fevereiro de 1804), matéria do conceito. Nascia, assim, o entendimento do significante que também incluía o suporte formal.

Na linguística, o suporte formal nada mais é do que um formato físico do significante, o ato de grafar. A caneta deslizando sobre uma folha em branco, executando um determinado percurso, deixa como resultado apenas uma quantidade de tinta sobre o papel. Nada mais. Por conta do desenho do percurso sobre a folha, o leitor insere, num primeiro momento, o que Saussure chamou de imagem acústica, o significante. O que chamaríamos de entendimento do que aquele desenho representa. Posteriormente é que o leitor trabalha com o conceito, o significado, que, no caso da poesia, também perpassa por questões de morfossintaxe e estilística.

Poesia é Não levou-me a esse reencontro com Saussure. É uma obra que depende da tinta no papel, seu formato, seu percurso, sua disposição na folha do livro. A comunicação visual do suporte formal, ora amparando significante e significado, ora se opondo aos dois. É o apoio e o contrasenso. Claro que não há grandes novidades nisso que estou dizendo. Os concretistas faziam isso há décadas atrás. Não se trata aqui da invenção da roda ou algo semelhante. A diferença aqui se deve a marca que Estrela Ruiz Leminski deixa em sua poesia: de que o suporte formal pode ganhar novo sopro.

Jamais tinha imaginado que o suporte formal pudesse sofrer a condução de quem marca a folha de papel (hoje em dia, substituída pela tela em branco dos editores de texto, computadores). Estrela conseguiu desenvolver a inserção de si a partir do suporte formal. Pelo suporte formal de Poesia é Não, é possível encontrar os indícios de um modo de vida, de uma geração. Isso me pegou meio de calças curtas. Como técnico, o sopro estaria muito mais num campo sintagmático do que num simples suporte formal. Rodeio suíno: montei num porco.

Sendo o suporte formal uma quantidade x de tinta sobre papel, jamais tinha me preocupado com qualquer traço de presença de quem desenhou o percurso daquela tinta, o grafar do escritor. Não cabe aqui, igualmente, ser pego de surpresa com a capacidade comunicativa do suporte formal. Só não tinha imaginado que a partir dele conseguiria enxergar a marca de uma geração. Uma geração que aprecia e admira o academicismo, mas não é escrava dela. A possibilidade de intuir o academicismo sem escancará-lo, seja de forma proposital ou despretenciosa.

E tudo isso a partir do suporte formal. É a técnica sem conhecer a técnica. É a técnica quase inconsciente que pega de surpresa quem a domina. É a hora de cair do cavalo. É muito mais o toque das imagens do que a explosão de um racionalismo instrumental. Empírico em seu conteúdo por validar o conhecimento da vida pela experiência dos sentimentos. Razão pura por transmitir isso dentro de uma forma que consegue universalizar o que, em muitas vezes, passa despercebido. Ainda que essa seja a função de qualquer poeta, não imaginei em vida me deparar com a possibilidade de que o suporte formal pudesse ganhar viço novo. Ou que esse viço novo pudesse indicar aos leitores uma marca geracional.

Íntima da música, Estrela Ruiz Leminski carrega para a poesia de Poesia é Não aquilo que Sausurre chamou nos primeiros anos da década de 1910 de imagem acústica. Ainda que eu faça aqui o pecado de uma interpretação totalmente sem pé, nem cabeça, do que realmente Saussure quis dizer com imagem acústica, por conta dessa intersecção com a música (um ponto de convergência), Estrela conseguiu pegar na veia ainda que ela não tenha se apercebido disso. É a técnica sem conhecer a técnica. É a técnica a serviço da emoção, dos ritos de passagem.

Se o poeta Paulo de Toledo imprime em seu conteúdo o que os olhos vêem, seu cunho de observação das imagens, o que David Hume (Edimburgo, 07 de maio de 1711 – Edimburgo, 25 de agosto de 1776) chamou de impressão (algo inegociável primeiramente, mas que, perdendo a intensidade, torna-se idéia), Estrela Leminski não se resguardou na imagem para a sua impressão. Sua impressão não conta somente com a observância de algo, mas como esse algo, a partir de seus sentidos, abriu e fossilizou o caminho dentro de si (naquilo que Sigmundo Freud (Pribor, 6 de maior de 1856 – Londres, 23 de setembro de 1939), no seu primeiro estudo psicanalítico, sobre o aparelho psíquico, chamou de hábito).

Estrela Leminski conseguiu, a partir da possibilidade do suporte formal ganhar viço novo, expressar uma geração. Uma geração que flerta com a necessidade de uma psique mais apaziguada, mas que pode, com a psique não apaziguada, dizer a que veio. Deixar marcas, heranças de possibilidades.  De se apoiar, nessa busca da essência, na permissão de não apaziguar a psique, operando como um fomento de criação. A chegada do novo. O novo sempre vem.





O Marapé que não existe mais

17 12 2010
Cuíca no Velório, de Renê Ruas

Não, não é minha intenção maldizer o futuro que chegou. Também não vou colocar-me como intenso opositor das novidades, das tecnologias, das mudanças do mundo, dos costumes. Quem escreve um blog não pode cometer a desfaçatez de falar mal do novo. O novo sempre vem. Ainda que não saibamos se para melhor ou pior. Entretanto, é desumano o roubo de nosso direito à saudade, dos tempos idos, aqueles que temos a absoluta certeza de que éramos muito, mas muito mais felizes.

José Luiz Tahan foi de uma feliz sacação ao chegar primeiro nas escritas de Renê Ruas, lançando Cuíca no Velório – Samba de Arrelia e Arrabaldes, pelo selo da Realejo Livros, lançamento esse, inclusive, que aconteceu no dia 03 de dezembro último, na sede do Ouro Verde FC, na Rua 9 de Julho (hoje Rua do Samba), no Marapé, Santos-SP.
 
Renê Ruas, para os que ainda não o conhecem e não estão familiarizados, é um dos cavacos da mais tradicional roda-de-samba de Santos, a Roda de Samba do Ouro Verde. Morador do Marapé desde o nascimento, depois do casamento, inaugurou seu solar no José Menino, mas jamais deixou de transitar no bairro de sua criação e paixão. Renê viu , pelo Marapé, a metamorfose que ocorreu em toda a cidade. O fim das casas, da arquitetura típica do bairro, dando lugar aos prédios e a um progresso incontrolável. O pior disso tudo: os anos apagaram os personagens que o Marapé zelou com tanto carinho, objeto de suas memórias e escritas.
 
Já dizia Leon Tolstói, canta a tua aldeia e cantarás o mundo. E Renê, como forma de conter na escrita o desaparecimento daquele Marapé de antigamente e suas respectivas personalidades, conta em suas histórias parte relevante da cultura santista. De sua gente, de hábitos e manias da cidade, de como a cidade pulsava muito, mas muito mais do que pulsa hoje em dia.
 
Um elemento importante e vivo no livro de Renê é o registro. Renê Ruas resgata o jeito de falar malandro e faceiro que só em Santos se encontra. Ainda que um registro de tempos idos, de expressões que já não se usam mais, mas que marcam um tempo da cidade. E é justamente por esse registro que Renê prende o leitor. Ora para os santistas modernos, que desconhecem completamente aquele jeito de falar, ora para quem não é da cidade, que tem a oportunidade de saber como o santista se expressa.
 
E o santista se expressa no seco, sem plumas, com sua enorme capacidade de bordões e expressões de uma linguagem espertamente figurada. E que, obviamente, demanda do receptor um raciocínio ligeiro de associações. O que para os santistas é mamão-com-mel, para quem é de outra localidade o texto pode até soar como sofisticado. O registro encontrado no livro de Renê Ruas exige de seu leitor certa ligeireza de pensamento, antes que a onda o(a) carregue.
 
Renê Ruas deu ênfase aos personagens, objetos e ocorrências do Marapé de sua infância e juventude. Resolveu não correr sérios riscos. Ainda que muito hábil na construção de seu tecido verbal, evitou pavonear seu texto, até mesmo por compromisso à coerência.  Não cabe narrar a história de tantos malandros feito um Alves Redol ou Eça de Queiróz. Por isso, não arriscou: capricou no período simples e períodos compostos só em caso de extrema necessidade. Foi simples e feliz no eixo paradigmático, batendo firme e certeiro numa morfologia que passasse bem longe de uma erudição fora do contexto, sob sério risco de entediar seu leitor(a) e pô-lo(a) para dormir.
 
O humor está presente em quase todas as histórias narradas no livro. Há trechos, sim, não tão contentes assim, mas que com o talento de Renê se tornam retratos peculiares desses personagens. Um outro aspecto positivo no livro Cuíca no Velório é que Renê Ruas reverencia essas figuras comuns, quase anônimas, sem cair na armadilha do pitoresco (no sentido pictorial de descrições pesadas e infinitas que, se mal administradas, jogam o ritmo da narrativa para escanteio).
 
Essa é a cabeça do marapense: rápido no gatilho, sem o canto bonito de uma retórica elaborada. Mas que dentro dessa filosofia, nos surpreende com a sofisticação do trato com o dia-a-dia. Lantejoulas e luréx, só no carnaval. Pelo livro de Renê Ruas, se entende a simplicidade do bairro e sua gente. Pelas narrativas de Ruas, entendemos porque a Rua 9 de Julho de transformou na Rua do Samba.
 
Cuíca no Velório em mãos e podem se aprontar para rir (às vezes muito) das boas histórias de um Marapé que não existe mais. Confesso que, no próximo sábado, na Roda de Samba do Ouro Verde, indagarei o autor sobre a veracidade dos fatos e dos personagens contidos no livro. Porque as histórias chegam às raias do insólito. Quem ler
Cuíca no Velório vai me dar razão.
 
E toca o bonde, motorneiro…