Achados e perdidos

27 12 2011

Um Brinde em Copos de Plástico, de Ricardo Carlaccio

O que fazer diante de um livro bom, bem escrito, mas que sabemos, de partida, enfrentaria resistência da massa de leitores? O que fazer diante de um livro bom, mas que, por questões de não querer combinar a mesa-de-centro com a moldura do quadro pendurado nas sala-de-estar, se tem a nítida noção que o melhor que o autor realmente fez foi bancar a própria publicação? O que fazer diante de um livro bom, mas que ainda não encontrou o seu leitor? A propósito: estariam todos os leitores preparados para qualquer tipo de texto, tema, ou ficção? Se todos os leitores estivessem realmente preparados, haveria alguma graça na vida?
Essas questões soaram como sino de igreja centenária em praça matriz ao término da leitura de Um Brinde em Copos de Plástico, de Ricardo Carlaccio. Vale lembrar que o livro em questão é uma edição do próprio autor, no melhor do do-it-  yourself. As aventuras do herói do livro e seu parceiro, a travesti anã Tinky Winky são quase um desfile de situações e personagens alegóricos bem longe do convencional e do caricato.  Nada mais do que a falência do ser como humano, o ser mergulhado em obscuridades e hedonismos sem freios, uma espécie de agonia da virtude. Definitivamente, a perturbação, o niilismo e o epílogo de qualquer tipo de moral, encabeçando um encadeamento pela lógica de posturas em completa busca de esgotamento.
Não há como não lembrar do filme O Cheiro do Ralo, baseado no livro homônimo de Lourenço Mutarelli. Ricardo tem o texto sob controle, habilmente urdido e equilibrado, para criar espaço e ambiente de um universo onde seus personagens vão se solavanco. É uma escolha difícil. Se o conselho de alguns editores é escrever ficção tendo um determinado tipo de público-alvo em mente, isso não significa que tal aconselhamento seja unanimidade. Não são todos os autores (e editores) que curtem muito a mesa-de-centro combinando com a moldura do quadro na parede.
A incursão do personagem principal do livro, que ora responde pelo pseudônimo de Souza Capanema, mas quando inserido no mundo da pornografia ganha o apelido de Gervásio Vasconcellos, tem sob sua batuta o que as pessoas comumente chamariam de escória. Nesse universo, o ator pornô Aníbal, Bete, Boca Aberta, o Judeu, Tinky Winky e tantos outros personagens descortinam o caráter como elemento duvidoso, ora descartável, ora fisiológico. Aventura-se sem pensar muito em perdas, em danos, em efeitos colaterais. Uma alegoria onde qualquer semelhança entre a moral duvidosa e esquelética com a vida real seria apenas mera coincidência?
Diante de um bom livro como Um Brinde em Copos de Plásticos, caímos no questionamento de alguns posts há meses atrás: qual o limite do do-it-yourself. A popularização dos métodos de impressão, o custo cada vez mais reduzido de se publicar um livro, não criaria uma faca no pescoço de editores e casas editoriais, uma abordagem muito mais por intimidação e constrangimento do que por qualidade do texto produzido? O custo cada vez mais reduzido de publicações não acarretaria numa enxurrada de textos sem a menor leitura crítica ou filtro qualitativo?
Quem, no caso de filtro qualitativo, faria o trabalho sujo? Quem colocaria o polegar para cima ou para baixo feito um imperador no circo romano? E quais seriam esses critérios?
Porque, até mesmo para vários editores e casas editoriais, o mesa-de-centro não tem que combinar com a moldura do quadro pendurado na parede da sala, em nome de certa oxigenação criativa que toda obra de ficção sempre deveria ter.
A porca torce o rabo de vez quando colocamos, nessa rota, a parte mais interessada e interessante em todo esse sistema: o público leito. O sentimento de tristeza ao terminar a leitura de Um Brinde em Copos de Plástico pode se resumir em dois pontos: primeiro, essa enxurrada de novos autores e livros, por conta do custo reduzido de publicação (o que permite o autor bancar sua própria edição) torna o encontro feliz do leitor com uma obra como Um Brinde… uma tarefa cada vez mais difícil. É muita cortina de fumaça para se achar um bom texto como a ficção de Ricardo Carlaccio.
Segundo: conhecendo a outra ponta, o público, fica cada vez mais difícil, na média santista e nacional, achar quem realmente passe da página 20 de Um Brinde em Copos de Plástico. Poderia se pensar num público mais jovem, mas, peraí… Achar que jovem não é reaça é um perigo daqueles. Ainda que o público jovem faça sua adesão à obra de Ricardo Carlaccio, o livro acaba se tornando uma espécie de catecismo do Carlos Zéfiro: para se ler escondido do pai, da mãe e da ala mais velha da família.
Até por um simples detalhe: quanto mais a sociedade avança na tecnologia dos números e na ciência da eletrônica, pior a capacidade cognitiva do grande público em entender que ao longo das páginas de Um Brinde em Copos de Plástico nada mais temos que uma alegoria, como em boa parte das obras de ficção. Não há um entendimento do universo literário como mímese, ou uma espécie de simulacro onde o trabalho do leitor é se remeter a referentes.
Já dá para ver que tanto autores quanto leitores estão sem bússola, sem seus smart phones com magnânimos GPSs. É uma quantidade considerável de gente na roça. E um bom livro como Um Brinde em Copos de Plástico sem o seu leitor.