Ana é uma banana legal: além de não ver a hora de comer o macaco, detesta auto-publicação

19 01 2013

O editor André Schiffrin

Vi, revi e ainda estou a rever a entrevista do escritor franco-americano André Schiffrin, antigo editor da Pantheon Books por 30 anos e atualmente na The New Press, casa editorial criada por ele a fim de driblar o estado de coisas que anda por aí. Vai da aula a um certo tipo de estarrecimento. E ao final da entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TV Cultura, São Paulo, uma triste sensação de que, no brejo, só o chifre da vaca (quando muito!) está do lado de fora.

A entrevista dá pauta para posts e mais posts. Para não encher a paciência, às vezes curta, do(a) leitor(a), abordarei a primeira grande questão contida no primeiro bloco do programa: a auto-publicação.

Foi o único ponto que discordei do entrevistado. Até mesmo porque ele, Schiffrin, utilizou o recurso de abrir sua própria editora para que, mais a frente, não presenciasse seus livros barrados por outras casas editoriais. Ainda que isso não seja considerado, fundamentalmente, auto-publicação, a linha entre a abertura da própria editora, independente dos nobres motivos que fizeram Schiffrin sair do lugar, e a auto-publicação começa a ficar bem tênue.

Ninguém é maluco de dispensar, na cara dura, a experiência de um editor como André Schiffrin, nem tampouco considerar o trabalho de um editor dispensável. Tanto que os autores possuem um grupo de primeiras leituras, que de certa forma atuam como orientadores daquele que escreve.

Eis, assim, o primeiro grande questionamento: estariam todos os editores na envergadura de um André Schiffrin? Pior, estariam os editores inclinados a fazer um trabalho de mediação entre o autor e sua obra como fazem os(as) primeiras leituras? Ainda que essa mediação não seja tarefa de absolutamente ninguém dentro de uma casa editorial, qual seria, então, a atuação do editor e assistentes nesse novíssimo mundo que se descortina dentro do mercado editorial?

Porque a impressão que se tem, do lado de fora, de quem está em uma das duas pontas da linha (escritores e leitores), é que nas editoras não se lê sequer bula de remédio para conhecimento da posologia e contra-indicações. Sem o exagero do enunciado anterior, estariam os acionistas de casas editoriais internacionais, nessas mergings malucas que hoje pegam em cheio o Brasil, fazendo um mal danado à paz e ao sossego necessários para a devida produtividade dos editores?

A auto-publicação empesteia o mercado? Sem a menor sombra de dúvida. Só que com esse samba-lê-lê que temos nos dias de hoje, quem deseja encontrar seu público faz o que? Senta e chora? Vai à igreja e ora? Aguarda a intervenção divina? Sai correndo beijando o anel do senhor-contratador e fica em casa esperando que um peso-pesado dos livros estenda o tapete vermelho para que o escritor em questão entre pela porta da frente?

Sem a auto-publicação, não encontraríamos boas obras como a de Ricardo Carlaccio, Um Brinde em Copos de Plástico, Renato Negrão com o seu Vicente Viciado, ou Abismo Poente, de Whisner Fraga, nem seríamos felizmente pegos de surpresa por nomes como a de Antônio Xerxenesky e Javier Arancibia Contreras. Se os citados esperassem a efeméride das cônjuges dos editores não dormirem de calça jeans ou o alinhamento dos astros, como nós, leitores, ficaríamos?

A auto-publicação é essencial para o surgimento do novo. Sem a auto-publicação não há renovação, o escritor não encontra o público que está esperando seu toque. Ainda que o número de novos títulos seja colossal, não acho de bom tom proibir o folião de aproveitar os festejos de mômo. E se não tem bloco para brincar, que faça o seu (como fez André Schiffrin)!

Se há escritores iniciantes, aqueles que ainda tem muito o que aprender, não haveria igualmente os editores iniciantes, que quando o assunto é poética e/ou prosa de ficção se atrapalham demais? O errado nessa jogada só são o escritor, sempre ruim de serviço, e o leitor, com os dedos engordurados de sacanagem requentada de cinquenta tons de alguma cor? Somente eles são os responsáveis pelo descalabro que estamos presenciando por aí? Mais ninguém?! Os meeiros do mercado editorial vão para o céu, então?!

Seria o caso da falta de coragem dos meeiros, só indo de boa quando sai o dinheiro dos Facults, ProAcs e similares, o famoso risco-zero?! Casa editorial e livraria tem realmente de crescer 15% ao ano? Há tanta necessidade disso? No meu corpo-a-corpo com escritores e leitores, uma coisa posso garantir: ambos estão dando a cara a tapa! As duas pontas da linha não andam com muito medo de cara-feia.

A Ana é uma dessas bananas que também acham que tem muito ibope para pouca programação. Mas como não vê a hora de comer o macaco, pouco se lhe dá esse lance de renovaçãopoesiaprosa de ficção. Tudo isso, para ela, é um saco! Não é à toa que ela deteste auto-publicação. É de se saber o que ela fará quando tanta repaginação bater a sua porta.

Leia também: Ana é uma banana legal! Um dia, ela comerá o macaco!

Veja a íntegra da entrevista:





Da exuberância e ousadia

14 01 2013

Vicente Viciado, de Renato Negrão

Há muito, tanto nesse blog quanto no Pela Proa, venho afirmando que a literatura produzida no estado de Minas Gerais é uma literatura da exuberância. A literatura mineira é naturalmente exuberante. É difícil tecnicamente explicar esse traço encontrado nos escritos de boa parte dos autores mineiros. E diríamos que não é só na literatura apenas. Quem já ouviu o Toninho Horta, por exemplo, ou se amarrou no Clube da Esquina, sabe muito bem do que estou falando.

Murilo Rubião, João Guimarães Rosa, Roberto Drummond, Autran Dourado, Adélia Prado, Fernando Sabino… É bom eu parar por aqui porque certamente cometerei injustiças, esquecerei nomes que não poderia esquecer.

Em geral os autores mineiros trabalham bem mais no eixo paradigmático, o que, quase sempre, permite uma excelente impressão diante do leitor mais traquejado. E são exímios introdutores ao amor pela leitura porque não abusam do eixo sintagmático. Os autores mineiros vão de boa: reproduzem inicialmente a sintaxe sofisticada do homem comum mineiro para, mais a frente, criar uma sintaxe artisticamente insólita. Não tem como não se apaixonar.

Primeiramente, peço perdão pelo preâmbulo literatura mineira é exuberante. É um pleonasmo dolorido e horroso. Se é literatura mineira, associá-la à palavra exuberante é chover no molhado. É o mesmo que dizer que o fogo é quente. Os mineiros sabem ser irreverentes (irreverente no sentido de não reverenciar o common knowledge), revolucionários na trama de seus tecidos verbais e absurdamente ousados ao peitar bom-mocismos academicistas com uma sintaxe de tirar o cidadão do eixo.

No Brasil atualmente tem uns cabras que não estão para brincadeira. De Milton Hatoum a Antônio Xerxenesky, passando por Paulo Lins, Humberto Werneck (Deus seja louvado!), Lourenço Mutarelli, Ana Paula Maia, Maria Alzira Brum Lemos, Manoel Herzog, Marcelo Ariel, Modesto Carone, Ademir Demarchi, Alice Ruiz, Líria Porto, Flávio Viegas Amoreira e por aí vai…

Na seção Minas Gerais, além dos nomes citados de Humerto Werneck (Deus seja louvado!) e Líria Porto (descobri a Líria numa conversa que tive com a Alice Ruiz), cito dois que se transformaram no meu xodóId est, se falarem mal deles, vão comprar briga comigo (parcial pacas!): o quebra-muros de Ituiutaba, Whisner Fraga, e o homem urbano Renato Negrão.

Parcial, sim… Parcial. Ah, Marcelo, cê diz isso porque cê morou em beagá. Justamente! Entendo isso como conhecimento de causa. E mesmo quem nunca nem pôs os pés em Minas Gerais assina embaixo quando digo que a literatura mineira é exuberante. Passam-se os mundos e os calendários maias e a força da escrita vinda desse estado brasileiro continua a mesma. Só os néscios, incautos e apedeutas não se apaixonariam.

Como estou ainda no processo de leitura de Abismo PoenteSol Entre Noites do Whisner Fraga, o comentário de hoje é sobre o mais recente livro do poeta belorizontino Renato Negrão, com quem tive a honra de celebrar seu aniversário (sim, ele também é um capricorniano caprichoso!) na casa do Téo Ruiz e da Estrela Leminski, onde esteve hospedado recentemente.

Vicente Viciado é o mais recente trabalho de Renato Negrão. Se nos poemas publicados nesse livro encontramos a mesma exuberância comum na literatura mineira em geral, dessa vez encontramos a veia urbana de uma cidade pouco conhecida ainda dos brasileiros. Uma grande capital com sua mazelas e seus encantos (como qualquer lugar do mundo), mas que pratica o encanto em cada esquina dessa metrópole.

E devo jogar esse cadáver no colo da grande mídia, que só conhece Rio de Janeiro e São Paulo. O desconhecimento de cidades como Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba, Recife, Salvador, Florianópolis, Fortaleza, São Luiz e mais uma penca de capitais de estado é uma cegueira que envergonha a cultura nacional. Se pegarmos cidades não capital de estado como Londrina, Campinas, São José dos Campos, Juiz de Fora, Santos, Maringá, Ribeirão Preto, Petrolina, São José do Rio Preto, entre milhares que poderíamos citar aqui, é para posicionar a corda no lustre.

O poeta Renato Negrão apresenta a Belo Horizonte urbana, a metrópole que cada um de nós deveria conhecer (e bem!). Negão é o bicho-urbano-belorizontino que consegue, como ninguém, captar, interiorizar, potencializar, subverter e apresentar a Belo Horizonte urbis, a fauna da capital mineira, suas espécies, sua cadeia-alimentar, seu bioma.

Renato Negrão é o filho mais nobre, o filho-de-algo, o fidalgo que a veia urbana belorizontina pôs no mundo. O filho que completou a contemplação urbana paulistana da física dos interesses com tudo aquilo que justifica o movimento de alma (como diria Renata Pallotini). Aliás, nisso os mineiros são impagáveis e imbatíveis. A mesma parcimônia e sabedoria do homem comum mineiro em lidar com o retrato cru da vida pode ser, ouso dizer, amplamente encontrada na poética de Negrão.

O que diferencia sua poética dos demais nomes consagrados da literatura mineira e nacional é a sacação urbana de característica unicamente belorizontina. Não, é impossível encontrar esse olhar estando em São Paulo, no Rio ou em qualquer outro lugar do país. É uma alma cujo c0rpo, um dia, precisa estar em Belo Horizonte. Algo que o leitor não tem como escapar.

Ciborgue me deu

ciborgue me deu
um beijo na boca e me disse

não me peça
para gostar de seus poemas ou que
você goste dos meus

ou não me impeça
de não gostar dos meus ou de
gostar dos seus

porque tudo quanto é aço
silício alicate
interno e déu aqui

tudo quanto é melopéia
logopéia ali
e de lá a fanopéia nada traz

para a elípse entre nós
proezas no breu

O ciborgue de Cidade de Minas não se atém ao objeto beijado, não usa o ósculo como veículo de acepção. O beijo do ciborgue vai ao encontro descompromissado da leitura e da poesia sem as enfadonhas obrigações de julgamento (gostar ou não).  A poesia que toca o ciborgue é a feliz comunhão produzida pelo acaso da atração, esse sabor de aventura que tanto fascina o ser humano. O urbano moderno belorizontino (sem se perder no materialismo instrumental) acalenta a natureza meio carnal, meio etérea, que, às vezes, nos empurra, em outras, atravanca. E sempre o final feliz das luzes apagadas, o fim das distâncias corpóreas, o fechar os olhos e transitar numa dimensão alegremente sinestésica. Ô, coisa boa!

Um traço na poética de Renato Negrão, presente em Vicente Viciado, é o da revelação dos prazeres ocultos. Aquele prazer culpado, comprometedor, vivenciado nas sombras das alcovas BR-040, na esperança de que o crime, um dia, prescreva.

E assim

ofegante
o delegado pediu
a garota de programa
que lhe introduzisse
um pinto de borracha
vinte e três centímetros

a princípio sem ky
& depois com

alertado porém
se fofoca virasse
ele fudido fadado
ela fada fudida
a boca com formiga
no desossário
do minério

Negrão percebe os prazeres particulares subjacentes no bioma urbano belorizontino. Ele não olha a cidade somente com o prazer da contemplação, o olhar repleto do lirismo saudoso dos tempos de outrora, ou o coração carregado da pureza e ingenuidade artística do poeta que se pôs a parte no mundo pelo seu estado especial de criação. Renato Negrão joga nas onze. É autor do pecado e concede o perdão, percebe a lascívia e compartilha o clímax, não deleta o ponto g do limite entre o prazer e a tara perturbadora que ocorre sob a luz do abat-jour ou nas sombras das alcovas. no desossário/do minério é o arremate para lá de perfeito desse mundo Forest Hill que todo leitor que se pretende entender a poesia atual belorizontina deveria enfiar na carne. É possível, inclusive, sentir o cheiro do minério depois de uma noite perdida no fausto do gozo.

Essa contemporaneidade feita de urbano na poética de Negrão, contudo, não impede o leitor de encontrar a indução da beleza da arte no coração de carne. Sabedor de que nem só de carne vive o homem, o autor de Vicente Viciado nos coloca diante da cidade como possibilidade de nutrir a alma com o encanto do espaço-movimento da palavra e do gesto.

Coreografia

o espaço coreográfico da palavra
e sua aplicabilidade semântica
são pensados como estímulo
a outras configurações corporais

nossos corpos merecem e podem
dar respostas mais criativas
ao textos urbanos para além
de suas palavras de ordem
e de consumo

gestos como construção
transitoriedade como eixo
dispersão como método (…)

O poeta aqui nos apresenta a segunda pele do espaço virtual, condição sine qua non da criação (o nada, a ausência da coisa em si, objeto de estudo de uma boa disciplina de literatura comparada ou teoria da literatura num bom curso de Letras!). Renato Negrão nos impede a visão naïve de poéticas que colocam ao rés-do-chão o concreto armado do urbano. Ele nos indica que é possível, sim, criar o gesto incomum, o movimento novo, a sensibilidade como valor estético a partir do cenário diante dos nossos olhos. O que já está estabelecido não é fator de cerceamento ou impeditivo da expressão do corpo. A criação do corpo (o gesto) surge entre os rigores desse cenário e, sim, é capaz de ser surpreendente pelo inusitado desse ineditismo.

Renato Negrão percebe a cidade não como um desafio a se transpor, mas a mais preciosa companhia na arte de criar. E que, talvez, essa arte, além de demandar engenho, exija um pequeno toque apenas: a doçura de se estar sensível a perceber.

Vicente Viciado resgata, na segunda metade da obra, um hábito comum nas obras literárias brasileiras dos anos 1970 conhecido como carona. Nada mais é do que a participação de outro artista com textos que dialogam por afinidade estética com o universo do livro e do autor.

E na obra em questão, Marcelo Negrão trouxe quatro letras de músicas do CD Verdadeiro, do rapper belorizontino Das Quebradas. “(…) Suas letras tem a mobilidade de registro, funcionando bem tanto no formato canção, quanto pode funcionar no universo do papel, (…) com um texto impulsionado pelo humor e uma escrita ágil que se nutre de palavras de idiomas diversos, siglas, apelidos, fala popular urbana, provocando a linguagem, desestabilizando discursos para além das polarizações maniqueístas de “bem e mal” tão presentes no rap. (…)”

Renato Negrão, em seu Vicente Viciadoapresenta a Belo Horizonte que passei a conhecer, admirar e gostar desde 1994. A de verdade, sem a tradicional família mineira (às vezes, motivo de anedotas entre os próprios belorizontinos), desancando o machão mineiro e trazendo para perto uma sutil sensualidade em quase tudo que habita na capital mineira. Renato Negrão é o principal expoente do urbano na poesia belorizontina, reverenciando a exuberância e ousando na liberdade de intuir novos pensamentos sobre o porquê da arte dentro da civilidade áspera do concreto armado, do asfalto e dos viadutos. E, por favor, ouçam: não conhecer um pouco de Belo Horizonte pode ser algo muito perigoso. Não conhecer por completo pode ser fatal!





Eu podia estar roubando, eu podia estar matando.

11 08 2011

"51 Mendicantos", de Paulo de Toledo

          Um dos grandes atrativos da áspera vida nas cidades é a fauna, o conjunto de júbilos, gozos e misérias humanas. A vida no campo é muito melhor, mais tranquila, o ar mais puro, temos mais verde. O que sobra nas cidades são as histórias que não deram certo. Vale, então, aquela velha máxima de que a história é sempre contada por aqueles que venceram. Nem sempre. O poeta santista Paulo de Toledo, um poeta observador, aquele observador com o olho curioso, recria a figura urbana do mendigo em sua obra 51 Mendicantos. Não. Não há aqui um corte profundo que nos identifique com os mendigos, nem tampouco um ordenamento meio na base da autópsia do que deu errado na vida dessas pessoas. Também não há uma tentativa de entender o que é um mendigo, como pensa, porque chegou naquele estado. Se a busca for por mandamentos da mendicância, é bom tirar o cavalinho da chuva igualmente. Aqui se trata de como a imagem de um ser em sofrimento pode recriar um espaço imaginário a partir do olho de quem vê.
          E Paulo de Toledo não economizou observação e imaginação para reconstruir um universo que, quase sempre, nos passa completamente desapercebido. De fato, num primeiro momento o trem acaba soando estranho pacas. Mas é surpreendente ver um poeta deitar os olhos nessa figura humana sempre associada a um sabor de derrota, de fracasso. Essa imagem de um homem vencido pela estranheza dos códigos urbanos, dos códigos sociais, ligado a inaptidão de se adequar a costumes que até mesmo nós (não mendigos) questionamos sua validade, seu sentido.
           A primeira leitura da obra de Paulo de Toledo deixou em minha boca um leve e imperceptível sabor de traquinagem. Sabe aquele garoto traquinas que escarnece do mendigo, que lhe atira coisas, só por passatempo, molecagem? Sabia que minha primeira leitura era um equívoco grande demais para continuar nela. Releitura, releitura, releitura… E depois achei a imaginação a serviço do registro de um personagem das cidades tão de carne-e-osso quanto todos nós. People we despise.
          Se Paulo de Toledo corrige esse equívoco, tinha de corrigir meu equívoco de uma primeira impressão tão rasteira, parca, fraca, débil. E descobri a figura do mendigo como um ser sentimental, racional, emocional, embutido na invisibilidade por nós produzida, essa invisibilidade deplorável de não enxergar os seres que nos cercam exceto pelo que mostram, ostentam, induzem, pelo que vestem, dirigem, pelo lugar onde moram, pela poupuda conta bancária.
          51 Mendicantos definitivamente é um livro onde o preconceito foi jogado fora, passa longe. Lá temos o mendigo, o herói desses poemas, como a mais fina, pura e cognoscível persona poética. Paulo de Toledo teve a felicidade de confir-lhe a autoridade artística, um posto que não fica nas mãos do autor, mas que transitoriamente termina na personalidade frágil, exposta e dependente de tudo que um mendigo possa ter.
          Sim, o mendigo de Paulo de Toledo possui ideal estético capaz de sensibilizá-lo ao que Immanuel Kant chamou de a forma da conformidade a fins de objeto. O mendigo a vê, e a ela é atraído, sem rodeios, sem protocolos de uma vida urbana débil, cheia de pífias idéias de ordem, que nada mais faz do que tolher brutalmente a sensibilidade de qualquer persona poética (ou artística).
nem tudo são flores
 
com o cacete o guarda dá no pé do ouvido
do mendigo que brincava comovido
de bem-me-quer com uma flor do município
 
(TOLEDO, Paulo de. 51 Mendicamentos, ilustrações de Sandro Saraiva. Porto Alegre, Editora Éblis, 2007.)

O poeta e escritor Paulo de Toledo

          Três versos em cada Mendicanto e a figura do mendigo completa seu desfile pelas questões humanas de uma subserviência pecuniária e tecnológica que expõe o ser humano a sua própria rugosidade feito um ralador de carne. O mendigo luta. Universaliza-se pelo ponto de intersecção com o leitor: a alma, o sopro, a elevação da arte, do artístico. Desde que o leitor não esteja impregnado pela aparência e não fique a abraçar o que lhe exposto. Um leitor que vai muito mais além do que os olhos apreendem. 
           Diferente de Poesia é Não, de Estrela Leminski (onde o poema é perpassado mais pela emoção do que pela imagem), 51 Mendicantos uniria David Hume e Maurice Blanchot no que tange a imagem & imaginário se ambos não fossem um tanto descontinuados em relação à imagem. Se para Hume tanto a impressão quanto a idéia se diferenciariam em relação a sua intensidade (a impressão é mais forte, portanto, inegociável), é na imagem em que elas se baseiam num primeiro contato com o objeto de nossa contemplação. Mas sem nada por trás desse objeto. É na inegociabilidade da impressão que arrefecemos sua intensidade e a tornamos idéia. Mas sem a loucura de acreditar que haja algo por trás do signo que invada nossa visão.
          Prudente Blanchot ter mantido a distância necessária entre o signo e a coisa real. Ainda que afirme na simultaneidade entre objeto e imagem, não correu o risco de alegar pesos iguais para ambos. Apenas afirmou que um não vem desassociado do outro. Meu único descontentamento com Blanchot vem com a não abordagem empírica da imagem (impressão & idéia) e com a não contemplação do caráter arbitrário e convencional do signo linguístico indicado por Ferdinand de Saussure, o que acaba tirando da jogada o(a) amado(a) leitor(a) num processo palimpsesto, de conclusão de um ciclo cognitivo. Mas isso é uma história para um outro por do sol…
          Se para Blanchot a imagem é uma outra possibilidade do ser, é na idéia (Hume, o arrefecimento da impressão) que o poeta Paulo de Toledo recria um espaço literário onde as palavras e expressões em língua inglesa presentes em 51 Mendicantos conota a sofisticação de uma tralha técnica, científica e tecnológica capaz de excluir esse ou aquele por situação finaceira e inadequação adaptiva em mundo sem explicação e sem sentido.
          A idéia de quem é o mendigo presente em seus poemas faz com que Paulo de Toledo corrobore a autoridade de persona poética, sem cair no perigoso apelo de transformá-lo num herói virtuoso. A idéia dessa imagem recria o espaço literário e a palavra literária (Blanchot) para intensificar a força dessa idéia, tornando-a impressão dentro desse espaço e, consequentemente, inegociável outra vez.
          Paulo de Toledo, assim, reforça sua opção mais empirista em 51 Mendicantos, mas com a singela cumplicidade de seu(ua) leitor(a). Transforma-o(a) não num(a) interlocutor(a), mas numa testemunha dos passos errantes do mendigo, em sua jornada, em sua epopéia de respirar simplesmente. Dá um passo além de Blanchot por não ignorar o(a) leitor(a) como integrante de relevância dentro de um ciclo comunicativo, de reconhecimento, de entendimento. A notícia de que o ser ao seu lado existe. Com todas as suas complexidades imateriais.




O viço do suporte formal (ou “Poesia não é catarse”)

2 08 2011
Poesia é Não

"Poesia é Não", da escritora e compositora Estrela Ruiz Leminski

Esses dois elementos estão intimamente unidos e um reclama o outro. Quer busquemos o sentido da palavra latina arbor, ou a palavra com que o latim designa o conceito “ávore”, está claro que somente as vinculações consagradas pela língua nos parecem conformes à realidade, e abandonamos toda e qualquer outra que se possa imaginar.

Esta definição suscita uma importante questão de terminologia. Chamamos signo a combinação do conceito com a imagem acústica: mas, no uso corrente, esse termo designa geralmente a imagem acústica apenas, por exemplo, uma palavra (arbor, etc.). Esquece-se que se chamamos arbor signo, é somente porque exprime o conceito “árvore”, de tal maneira que a idéia da parte sensorial implica a do total.

A ambiguidade desapareceria se designássemos as três noções aqui presentes se por nomes que se relacionem entre si, ao mesmo tempo que se opõem. Propomo-nos a conservar o termo signo para designar o total, e a substituir conceito e imagem acústica por significado e significante; estes dois termos tem a vantagem de assinalar a oposição que os separa, quer entre si, quer do total que fazem parte. Quanto a signo, se nos contentamos com ele, é porque não sabemos por que substituí-lo, visto não nos sugerir a língua usual nenhum outro”

(SAUSSURE, Ferdinand de, Curso de Linguística Geral. São Paulo, Ed. Cultrix, 2006, p. 16-17)

Pela primeira vez, enveredo pela poesia. Meu contato com a poesia foi escolar e acadêmico. Por força de um curso de Letras, a poesia estava presente. Por paladar, poesia para mim era Castro Alves e estamos conversados. Até que encontrei outros poetas ao longo da vida: Ferreira Gular, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Leminski, Vicente de Carvalho, os irmãos Campos, Mário Quintana, Manoel Bandeira, e tantos outros cuja minha falha de memória certamente cometerá uma tremenda injustiça.

Apesar da minha falta de jeito, tenho mantido contato com novos autores, em especial os daqui da cidade. Cada um com sua característica, com sua peculiaridade, com seu talento, com sua marca, com seu sabor especial. Graças a Deus, Santos em termos de poesia não é um rol de nomes cujo trabalho apresenta qualquer sinal de uniformidade. A poesia em por aqui, nesses tempos atuais, certamente não é monocromática. A variabilidade de matizes talvez seja a principal marca do cenário poético santista.

Abrindo essa incursão num terreno que domino muito mal e mal, fui apresentado a Poesia é Não, da escritora e compositora Estrela Ruiz Leminski, num sábado de autógrafos na Realejo Livros. Téo Ruiz, marido de Estrela, é santista também. No sobe-e-desce da vida, com a necessidade de proximidade com a capital São Paulo, mas sem perder a qualidade de vida para filhos ainda pequenos, veio o casal a habitar o litoral paulista. A cinco horas de carro da capital curitibana, diríamos que Téo e Estrela fundaram o eixo Curitiba-São Paulo, passando por Santos.

Como toda cidade de porto é meio que uma cidade de passagem, Téo e Estrela vieram passar algum tempo nesta modesta cidade dos mares do sul. Uma parte da vida que passa e não podemos contê-la. Como diz o querido Renê Ruas, segue o bonde…

Ferdinand de Saussure, um franco-suíço de sagaz investigação da língua, da linguagem e do signo linguístico, deixou uma obra póstuma (organizada por seus alunos e seguidores da Universidade de Genébra) chamada Cours de Linguistique Générale (o Curso de Linguística Geral), meio cartilha ou livro de cabeceira de quase todo estudante de Letras. Iniciei esse post com uma parte do livro onde ele introduz o signo linguístico, do que ele é feito, de sua relevância para o pontapé inicial da linguística como estudo científico.

Se o signo linguístico é feito de significante e significado (introduzido por Saussere como imagem acústica e conceito, respectivamente), o significante passou pelo resto do século XX como sendo um objeto de apreciação e, assim sendo, de acordo com Immanuel Kant  ( Königsber, 22 de abril de 1724 – Königsber, 12 de fevereiro de 1804), matéria do conceito. Nascia, assim, o entendimento do significante que também incluía o suporte formal.

Na linguística, o suporte formal nada mais é do que um formato físico do significante, o ato de grafar. A caneta deslizando sobre uma folha em branco, executando um determinado percurso, deixa como resultado apenas uma quantidade de tinta sobre o papel. Nada mais. Por conta do desenho do percurso sobre a folha, o leitor insere, num primeiro momento, o que Saussure chamou de imagem acústica, o significante. O que chamaríamos de entendimento do que aquele desenho representa. Posteriormente é que o leitor trabalha com o conceito, o significado, que, no caso da poesia, também perpassa por questões de morfossintaxe e estilística.

Poesia é Não levou-me a esse reencontro com Saussure. É uma obra que depende da tinta no papel, seu formato, seu percurso, sua disposição na folha do livro. A comunicação visual do suporte formal, ora amparando significante e significado, ora se opondo aos dois. É o apoio e o contrasenso. Claro que não há grandes novidades nisso que estou dizendo. Os concretistas faziam isso há décadas atrás. Não se trata aqui da invenção da roda ou algo semelhante. A diferença aqui se deve a marca que Estrela Ruiz Leminski deixa em sua poesia: de que o suporte formal pode ganhar novo sopro.

Jamais tinha imaginado que o suporte formal pudesse sofrer a condução de quem marca a folha de papel (hoje em dia, substituída pela tela em branco dos editores de texto, computadores). Estrela conseguiu desenvolver a inserção de si a partir do suporte formal. Pelo suporte formal de Poesia é Não, é possível encontrar os indícios de um modo de vida, de uma geração. Isso me pegou meio de calças curtas. Como técnico, o sopro estaria muito mais num campo sintagmático do que num simples suporte formal. Rodeio suíno: montei num porco.

Sendo o suporte formal uma quantidade x de tinta sobre papel, jamais tinha me preocupado com qualquer traço de presença de quem desenhou o percurso daquela tinta, o grafar do escritor. Não cabe aqui, igualmente, ser pego de surpresa com a capacidade comunicativa do suporte formal. Só não tinha imaginado que a partir dele conseguiria enxergar a marca de uma geração. Uma geração que aprecia e admira o academicismo, mas não é escrava dela. A possibilidade de intuir o academicismo sem escancará-lo, seja de forma proposital ou despretenciosa.

E tudo isso a partir do suporte formal. É a técnica sem conhecer a técnica. É a técnica quase inconsciente que pega de surpresa quem a domina. É a hora de cair do cavalo. É muito mais o toque das imagens do que a explosão de um racionalismo instrumental. Empírico em seu conteúdo por validar o conhecimento da vida pela experiência dos sentimentos. Razão pura por transmitir isso dentro de uma forma que consegue universalizar o que, em muitas vezes, passa despercebido. Ainda que essa seja a função de qualquer poeta, não imaginei em vida me deparar com a possibilidade de que o suporte formal pudesse ganhar viço novo. Ou que esse viço novo pudesse indicar aos leitores uma marca geracional.

Íntima da música, Estrela Ruiz Leminski carrega para a poesia de Poesia é Não aquilo que Sausurre chamou nos primeiros anos da década de 1910 de imagem acústica. Ainda que eu faça aqui o pecado de uma interpretação totalmente sem pé, nem cabeça, do que realmente Saussure quis dizer com imagem acústica, por conta dessa intersecção com a música (um ponto de convergência), Estrela conseguiu pegar na veia ainda que ela não tenha se apercebido disso. É a técnica sem conhecer a técnica. É a técnica a serviço da emoção, dos ritos de passagem.

Se o poeta Paulo de Toledo imprime em seu conteúdo o que os olhos vêem, seu cunho de observação das imagens, o que David Hume (Edimburgo, 07 de maio de 1711 – Edimburgo, 25 de agosto de 1776) chamou de impressão (algo inegociável primeiramente, mas que, perdendo a intensidade, torna-se idéia), Estrela Leminski não se resguardou na imagem para a sua impressão. Sua impressão não conta somente com a observância de algo, mas como esse algo, a partir de seus sentidos, abriu e fossilizou o caminho dentro de si (naquilo que Sigmundo Freud (Pribor, 6 de maior de 1856 – Londres, 23 de setembro de 1939), no seu primeiro estudo psicanalítico, sobre o aparelho psíquico, chamou de hábito).

Estrela Leminski conseguiu, a partir da possibilidade do suporte formal ganhar viço novo, expressar uma geração. Uma geração que flerta com a necessidade de uma psique mais apaziguada, mas que pode, com a psique não apaziguada, dizer a que veio. Deixar marcas, heranças de possibilidades.  De se apoiar, nessa busca da essência, na permissão de não apaziguar a psique, operando como um fomento de criação. A chegada do novo. O novo sempre vem.





Um café com Ariel

12 07 2011
O poeta e escritor santista, radicado em Cubatão, Marcelo Ariel

O poeta e escritor santista, radicado em Cubatão, Marcelo Ariel

Vivemos sempre alternando. Day in, day out. Bola tem, bola não tem. As memórias valem tanto para momentos bons quanto para os ruins. O que escrevo aqui é raso, eu sei. Clichê, parca elaboração. Sábado passado foi um desses momentos felizes. Virei poesia. Olhos de poeta são assim mesmo. Sei lá, a visão além do alcance. Jamais me vi na posição, situação ou essencialmente poesia, sim! Foi uma prazer conhecer o Téo. Foi um prazer conhecer a Estrela. Não sei, posso estar me precipitando. Mas acho que finalmente encontrei uma escritora que não vê fantasmas ao meio-dia. Poesia não é catarse, viu cambada!

Não sei se é porque saí do buraco, mesmo que aos poucos, mesmo que aos trancos e barrancos. Uma recuperação lenta, gradativa. É bom encontrar pares. Os pares que me ajudam no meu reencontro. A percepção dolorosa de ter desperdiçado o que de bom havia em mim por conta de algo que só fui ter algum tipo de noção depois. É ótimo ter noção das coisas aos 20 anos. Porque aos 40, vale a máxima do antes tarde do que nunca. O problema é que nessa altura do campeonato, a minha agenda não é mais minha. Ficou presa no corpo que tenho. Só ele pode determinar o que eu realmente posso gostar de fazer.

Fazia tempo que não conversava com artistas como se estivesse na sala de casa, ou numa varanda de uma casa de campo, nas montanhas. Estávamos. A uma quadra da praia. A maresia bateu no nariz. Enfim, fazia tempo que eu não tinha interlocutores tão alegres quanto eu nesse último sábado. Guardei o sábado. Definitivamente. Esse e tantos outros. E acho que esse último sábado também me guardou. Eu, o Téo, a Estrela e o Ariel.

Ao final do lançamento de Poesia é Não, da Estrela Ruiz Leminski, veio o xará e me convidou para um café. Antes, recarregar os créditos do celular dele nas Lojas Americanas. Para aqueles que eventualmente colocam escritores e artistas em geral num pedestal quase sempre inverossímel. Voltamos pela Marechal Deodoro e lá na esquina com a Praça Fernandes Pacheco, achamos uma padaria quase perto de fechar. Invadimos. Importunamos os funcionários com duas inconveniências: nossos pedidos (um café puro e um pedaço de bolo de chocolate para mim, um café com leite para Ariel) e nossa incursão pela metafísica.

A ambição do poeta é a utopia? Ou seria o impossível? Pois houve felicidade numa discussão sobre metafísica, porque é ambição de Ariel a fusão da metafísica com a poesia. Como poesia é de meu paladar, mas não de minha especialidade, até achei que isso já havia acontecido. Fiquei ressabiado. A poesia já não se fundiu com a metafísica? Jurava que tal efeméride era coisa do passado.

O filósofo francês Gilles Deleuze (Paris, 18 de janeiro de 1925 – Paris, 4 de novembro de 1995), dizia que sua discordância com Kant vinha exatamente de sua admiração, aquela admiração do deslumbre. Segundo Deleuze, Kant foi o primeiro filósofo que entendeu o tempo não como uma cadeia circular infinita, de ciclos que começam e terminam, começam e terminam, começam e terminam. Antes de Kant, o tempo existia em função do movimento. Depois de Kant, o movimento só existe porque está atrelado ao tempo. Foi introdutor do tempo com uma linha, não um circuito circular sem fim.

Se o Brasil possui mais apreço pelos franceses, alertei Ariel para os germânicos e anglo-saxões. É um trem bem antigo: os latinos possuem o savoir-faire, os anglo-germânicos-escandinavos vão de know-how. Diferentes e parecidos. Lá pelas tantas, fiquei na incumbência de alertar Ariel de que o melhor de Kant estava no final da vida dele, dos livros de seu epílogo. Quando fez as pazes ao rever si próprio, seus pensamentos, suas idéias. Sugeri o segundo livro da Metafísica dos Costumes, o livro dos Princípios Metafísicos da Doutrina da Virtude. E também coube avisá-lo que a Crítica da Razão Pura nada mais era do que uma tentativa de resposta ao empiristas. That’s all. Qualquer coisa que saia muito disso é tirar o melhor de Kant de seu contexto mais expressivo.

Fica aqui a minha crença de que a crítica é mais técnica do que possa parecer. No fundo, estou cansando de achismos. Às vezes o que irrita é o amadorismo da crítica. Críticos despreparados, que por falta de bagagem, de repertório, entram numas de achar que crítica nada mais é do que um rosário destrutivo de elogios e queixas. Falta à crítica preparo. Preparo nas humanidades, preparo muito mais metafísico, muito mais kantiano, do que psicanalítico. Esse foi o cadafalso de Joyce: a crença na psicanálise, no suco de cérebro. Se ele fosse mais metafísico, talvez tivesse muito mais resposta para sua angústia. E tantas outras pessoas se baseando na impossibilidade de significados que expressem o que se pensa, o que se sente. Esse labirinto um tanto quanto esquisito, o labarinto lacaniano, quase um barroco na análise de alma, um completo despreparo do que as Letras são feitas. Tão técnicas quanto à medicina, à engenharia, as ciências jurídicas. A impressão de que Lancan nunca leu Ferdinand de Sausurre. Muito gri-gri para dizer Gregório. Não foi à toa a frase de Jung para Joyce quando irlandês apresentou os manuscritos da filha: onde você se afoga, ela afunda. Por isso admirei meu café com Ariel. Porque ele, como Estrela, perceberam que a vida vale mais do que se pode entender academicamente dos sentimentos que perspassam por ela. Finalmente onde os autores deveriam estar. Metafisicamente.

E fiquei feliz com o café com Ariel. Encontrei pessoas na minha querida terra-natal, filho daqui, que fala uma língua fantástica. Já conversei com outros também, mas nada tão epifânico como a metafísica numa padaria no Gonzaga. Ariel é um poeta ambicioso: a fusão da metafísica com a poesia. Será que ele consegue? Gostaria de estar vivo quando esse dia chegasse. Não que a ambição começou numa padaria no Gonzaga, ela é de certa antiguidade. Mas para mim foi revelada. É um trabalho de vulto para um escritor que fora das escritas escreve colóquios sonoros de apreensão visual sobre metáforas tão acachapantes quanto o tapa de uma onda de cinco metros na nuca de um banhista desavisado. Não me parece ser tão cinestésico assim, mas treina sua morfossintaxe-sabre nas agruras de um baile funk ou quando ensina um menino de rua a fabricar coquetel molotov.

Para Ariel, palavra como bomba é instrumento tão importante que moradores de rua e pedintes deveriam ter um blog. O desafio da estética: porque Poesia não é catarse.

Voltei para a Vila Belmiro (que segundo Ademir Demarchi tem crematório de corpos) feliz da vida. Porque acho que encontrei escritores feitos do dia-a-dia, não acastelados na erudição-hermética-do-saber-assustadoramente-inatingível. Para doutos e para hordas. A verossímel fidalguia. Definitivamente, aquele sábado me guardou. Guardou a mim, ao Téo, à Estrela e ao Ariel.