Leve

4 11 2014

Um dos problemas que comentaristas de histórias, livros e/ou congêneres enfrentam é a famosa falta de tempo. Toda leitura deveria ser remunerada. Um trabalho profissional: dela depende a movimentação do mercado editorial, um norte para autores, alento para criadores. São as respostas a partir das leituras que movimentam a literatura. Sem ela, a leitura, quase tudo estaria comprometido por uma espécie de espírito de corpo que, em geral, anda movimentando muito as artes em certos rincões do país com o que eu chamo de evento interno (de artista para artista).

Digo isso pelo hiato existente entre uma postagem e outra nesse combalido blog. Sim, falta-me tempo para leituras, minha atividade profissional é outra, dela dependo para pagar as contas. E bem sei que tal exposição é bastante perigosa: certamente logrará surgimento de alguns engraçadinhos desqualificando qualquer capacidade minha no desmonte analítico da linguagem ou qualquer encanto de análise literária que eventualmente possa apresentar.

Apresentadas as eventuais justificativas para a existência desses hiatos, vamos à maravilhosa história de como a obra em questão nesse post veio parar aqui.

Uma das minhas maiores dificuldades é encontrar simpatia em métodos para o trabalho. Justamente por possuir vários deles, dos quais lanço mão boa parte das vezes. Sabe aquela coisa do Mr. Right, o certinho?!  Chega um momento que viro naturalmente um outsider quando a atividade desenvolvida está, para mim, muito mais conectada à questão do prazer do que a do ofício.

Isso posto, estranhamente intencionei um processo de escolha para as minhas próximas leituras (ou, pelo menos, parte delas) que contemplasse aquele solitário momento comum a qualquer ser humano que possui o aparelho digestivo em pleno funcionamento.

   Id est, leituras de pequenas obras, obras não muito extensas, para aqueles momentos onde as urgências fisiológicas oriundas da necessidade de nutrição, ou prazer de certas degustações, se avizinham.

O critério soou sério e claro. E fui à luta na busca de obras que se encaixassem nesse perfil. Foi então que encontrei, num café do Pátio Iporanga, Caderno Vermelho, de Paul Auster. Quiçá para a alegria do Alcyr Pécora…

    Nas edições em língua inglesa, o subtítulo True Stories (Histórias Verdadeiras). O que fomenta certo tipo de discussão de que quase toda obra literária de ficção é, em certo grau, biográfica. Sei não… Tenho lá minha dúvidas. Mesmo que se prove a presença de informações pessoais certamente extraídas da vida de quem escreveu, de suas experiências, acho uma forçação de barra danada afirmar que o autor vivenciou tudo o que está ali escrito.

   Lança-se por terra, assim, a capacidade criativa do(a) artista, empurrando-o(a) a ter de passar por certas situações na vida com o propósito de escrever sobre. Seria o mesmo que o(a) autor(a) ser epilético(a) para construir uma personagem com essa enfermidade, ou cometer o suicídio se uma personagem for suicida.

   Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Sabe-se que não há uma ficção completamente isenta, mas isso ainda se encontra no campo da suspeita. Sempre haverá a improbabilidade de todas as ocorrências presentes numa narrativa terem terminantemente acontecido com o(a) autor(a). Como forma de certo charme que se lança sobre o leitor (“…será que aconteceu?! Será que não?!“), a coisa do(a) autor(a) vivenciado(a), rodado(a), um gancho formidável para as casas editoriais faturarem, até entenderia. Mas o cheiro de desserviço nesse tipo de discussão costuma ser acentuado.

   Porque mais importante do que saber se as ocorrências contidas numa obra de ficção realmente aconteceram com o(a) autor(a), ou não, está a questão da linguagem, sua construção e articulação. Cair na coisa do True Stories é jogar uma cortina de fumaça muito forte diante dos olhos do(a) leitor(a) e não deixá-lo(a) atento(a) em como essa linguagem definitivamente se constituiu, se há alguma intenção de efeito que o(a) escritor(a) quis causar em quem lê. Os gigantes maiores da Literatura, da análise literária, desaparecem nesse raso monstruoso em querer saber o quanto há de veracidade nas ocorrências, quase sempre guiando a obra literária a cochilos e derrapagens de verossimilhança que matam qualquer boa intenção, tanto em quem escreve quanto em quem lê, de se estabelecer uma peça de arte que sobreviva à prova do tempo.

   Talvez seja esse o caso de Caderno Vermelho, de Auster. Ao final da leitura, uma estranha sensação de acho que perdi duas horas da minha vida. Mas para aquilo que se propunha minha leitura (dentro do critério acima descrito, um acompanhamento para os solitários momentos de desfecho do processo digestivo), penso que acertei na escolha.

   Imaginemos esse significativo, relevante e, porque não dizer, saudável momento de algo dentro de você se evadir sendo arrolhado por textos de certa urdidura como No Coração das Trevas, de um Conrad, ou Uma Laranja Mecânica, de Burgess? A leveza de Caderno Vermelho pode até não ser imperativo no movimento peristáltico que essa parte da digestão demanda, mas certamente não atrapalhará em nada.

   Auster decidiu compartilhar suas histórias de vida, algumas interessantes, outras que ele mesmo coloca na obra como a quem interessaria (?!). No caso do prazer da leitura pela leitura, sem qualquer tipo de intenção intelectualmente nutritiva, uma simples leitura de verão, de praia, aquelas páginas que ajudam a gastar o tempo que se tem, Caderno Vermelho pode virar o livro-de-cabeceira de quem está aberto a esse tipo de possibilidade. É o livro!

   Contudo, se tutano e sustância, aquela coisa de literatura que engorda, fizerem parte de seu cardápio, bom… Veja bem… O livro é curtinho e pode se tornar um grande desapontamento. O tipo de escolha feito pelo autor, de somente citar a letra inicial do nome dos personagens das histórias ali mostradas, narrativas com alguma marcação temporal de quando aconteceu (vejam! Não é só o Facebook que tem timeline!), pessoalidade sem confessionalidade, uma linguagem em articulação simples, sem o pavoneamento filológico, uma exploração vernacular desnecessária salvo os grandes movimentos de alma estejam envolvidos, podem trazer uma sensação de buffet de saladas quando a fome que tomou o(a) leitor(a) era de boi-no-rolete na Estância Alto da Serra.

   Nada que diminua a referida obra. Volto a repetir: tudo depende de como o(a) leitor(a) aborda a obra. Pode ser uma grande companhia, marcar sua vida para sempre, mas tal referência está diretamente ligada ao tipo de abordagem de expectativa que o(a) leitor(a) possa apresentar. Dependendo de como for, pode ser para o bem ou para o mal. Tudo depende de como se vê a coisa.

   Certamente que, em Caderno Vermelho, nem tudo está perdido. Das várias histórias de vida, dele, Paul Auster, e de seus amigos e conhecidos, há belas reviravoltas, como a do amigo que depois de sucessivos fracassos nos relacionamentos reencontra, quase que por acidente, uma antiga namorada que sumiu no mundo e foram viver suas felizes histórias juntos ao melhor estilo Gonzaguinha, no lindo lago do amor.

   A questão de Caderno Vermelho é que essa obra precisaria passar longe de um bom curso de Letras (onde o giro pode ser alto e o tipo de exigência é mais para um Barranco de Cegos, de Alves Redol) ou de qualquer leitor(a) que vive, diariamente, a testemunhar a crise humana da fome, do abandono, do descaso, do trauma. Para esse tipo de leitor(a), ler Caderno Vermelho pode soar de fútil a imoral, dependendo de como a dura realidade pode ser posta de lado para que se aprecie um leve suco de caju ou um refrescante copo d’água.

   Caímos na questão, assim, da oportunidade para determinadas obras. Se é desaconselhável Caderno Vermelho para aqueles que vivenciam a crise em seu estado mais bruto, e precisam, por força de profissão ou ausência de alternativa, lidar com ela, pode parecer uma obra que bem poderíamos viver sem ela.

   Por outro lado, essa mesma crise do humano, dos subterrâneos da mente, das tragédias testemunhadas a cada instante, a cada hora, talvez nos afastasse de obras como 1984, de Orwell, ou mesmo o romantismo próximo do assomadiço e neurastênico encontrado nas obras de Patrick McGrath. Ainda que dois grandes gênios de uma literatura mais próxima dos nossos dias, e donos de um tecido verbal que fazem meus cotovelos doerem, a linguagem e a forma de construção da narrativa e das personagens pode lá não ser a mais digestiva das leituras em parques e praias mundo afora.

     De uma coisa acho que escapei: com Caderno Vermelho, de Paul Auster, certamente escapei da constipação. Uma obra leve. Talvez demais. E há certas levezas que, de tão leve que são, costumam pesar toneladas.





Ana é uma banana legal: além de não ver a hora de comer o macaco, detesta auto-publicação

19 01 2013

O editor André Schiffrin

Vi, revi e ainda estou a rever a entrevista do escritor franco-americano André Schiffrin, antigo editor da Pantheon Books por 30 anos e atualmente na The New Press, casa editorial criada por ele a fim de driblar o estado de coisas que anda por aí. Vai da aula a um certo tipo de estarrecimento. E ao final da entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TV Cultura, São Paulo, uma triste sensação de que, no brejo, só o chifre da vaca (quando muito!) está do lado de fora.

A entrevista dá pauta para posts e mais posts. Para não encher a paciência, às vezes curta, do(a) leitor(a), abordarei a primeira grande questão contida no primeiro bloco do programa: a auto-publicação.

Foi o único ponto que discordei do entrevistado. Até mesmo porque ele, Schiffrin, utilizou o recurso de abrir sua própria editora para que, mais a frente, não presenciasse seus livros barrados por outras casas editoriais. Ainda que isso não seja considerado, fundamentalmente, auto-publicação, a linha entre a abertura da própria editora, independente dos nobres motivos que fizeram Schiffrin sair do lugar, e a auto-publicação começa a ficar bem tênue.

Ninguém é maluco de dispensar, na cara dura, a experiência de um editor como André Schiffrin, nem tampouco considerar o trabalho de um editor dispensável. Tanto que os autores possuem um grupo de primeiras leituras, que de certa forma atuam como orientadores daquele que escreve.

Eis, assim, o primeiro grande questionamento: estariam todos os editores na envergadura de um André Schiffrin? Pior, estariam os editores inclinados a fazer um trabalho de mediação entre o autor e sua obra como fazem os(as) primeiras leituras? Ainda que essa mediação não seja tarefa de absolutamente ninguém dentro de uma casa editorial, qual seria, então, a atuação do editor e assistentes nesse novíssimo mundo que se descortina dentro do mercado editorial?

Porque a impressão que se tem, do lado de fora, de quem está em uma das duas pontas da linha (escritores e leitores), é que nas editoras não se lê sequer bula de remédio para conhecimento da posologia e contra-indicações. Sem o exagero do enunciado anterior, estariam os acionistas de casas editoriais internacionais, nessas mergings malucas que hoje pegam em cheio o Brasil, fazendo um mal danado à paz e ao sossego necessários para a devida produtividade dos editores?

A auto-publicação empesteia o mercado? Sem a menor sombra de dúvida. Só que com esse samba-lê-lê que temos nos dias de hoje, quem deseja encontrar seu público faz o que? Senta e chora? Vai à igreja e ora? Aguarda a intervenção divina? Sai correndo beijando o anel do senhor-contratador e fica em casa esperando que um peso-pesado dos livros estenda o tapete vermelho para que o escritor em questão entre pela porta da frente?

Sem a auto-publicação, não encontraríamos boas obras como a de Ricardo Carlaccio, Um Brinde em Copos de Plástico, Renato Negrão com o seu Vicente Viciado, ou Abismo Poente, de Whisner Fraga, nem seríamos felizmente pegos de surpresa por nomes como a de Antônio Xerxenesky e Javier Arancibia Contreras. Se os citados esperassem a efeméride das cônjuges dos editores não dormirem de calça jeans ou o alinhamento dos astros, como nós, leitores, ficaríamos?

A auto-publicação é essencial para o surgimento do novo. Sem a auto-publicação não há renovação, o escritor não encontra o público que está esperando seu toque. Ainda que o número de novos títulos seja colossal, não acho de bom tom proibir o folião de aproveitar os festejos de mômo. E se não tem bloco para brincar, que faça o seu (como fez André Schiffrin)!

Se há escritores iniciantes, aqueles que ainda tem muito o que aprender, não haveria igualmente os editores iniciantes, que quando o assunto é poética e/ou prosa de ficção se atrapalham demais? O errado nessa jogada só são o escritor, sempre ruim de serviço, e o leitor, com os dedos engordurados de sacanagem requentada de cinquenta tons de alguma cor? Somente eles são os responsáveis pelo descalabro que estamos presenciando por aí? Mais ninguém?! Os meeiros do mercado editorial vão para o céu, então?!

Seria o caso da falta de coragem dos meeiros, só indo de boa quando sai o dinheiro dos Facults, ProAcs e similares, o famoso risco-zero?! Casa editorial e livraria tem realmente de crescer 15% ao ano? Há tanta necessidade disso? No meu corpo-a-corpo com escritores e leitores, uma coisa posso garantir: ambos estão dando a cara a tapa! As duas pontas da linha não andam com muito medo de cara-feia.

A Ana é uma dessas bananas que também acham que tem muito ibope para pouca programação. Mas como não vê a hora de comer o macaco, pouco se lhe dá esse lance de renovaçãopoesiaprosa de ficção. Tudo isso, para ela, é um saco! Não é à toa que ela deteste auto-publicação. É de se saber o que ela fará quando tanta repaginação bater a sua porta.

Leia também: Ana é uma banana legal! Um dia, ela comerá o macaco!

Veja a íntegra da entrevista:





A difícil arte de ser dois

31 10 2012


Devo confessar que essa é uma arte difícil: ser escritor, autor de sua própria obra, e crítico literário ao mesmo tempo. Às vezes, certos autores sentam o relho no pobre do crítico. Ontem mesmo assisti um especial na TV Câmara sobre a obra de Carlos Nejar, onde, lá pelas tantas, e fazendo as devidas ressalvas obviamente, o poeta gaúcho não poupou a crítica. É claro que explicou sua razões, totalmente pertinentes. Tem meu apoio. Mas quando me vejo do outro lado, sinto que a prática do comentário crítico-técnico sobre literatura se torna cada vez mais áspera.

Principalmente porque os autores não entendem que, nesse outro lado da mesa, há um ser humano feito do mesmo material, passível dos mesmos problemas, agruras, vicissitudes, temores, crises. E que isso, de tempos em tempos, mexe com a psiqué (alma) do crítico literário. Neste espaço, o Literaturial, sou o primeiro a criticar o crítico, quase sempre centrado na idéia e afirmação de que muitos críticos literários são mais comentaristas do que críticos propriamente e de que é fácil encontrar gente despreparada para a arte da crítica (por isso o meu apoio ao Carlos Nejar).

Porém, toda vez que passo para esse lado de cá da mesa, confesso que a barra pesa tremendamente. O trabalho é até agradável, mas uma fonte interminável na produção de desafetos.

O pior disso tudo: expõe o fôro íntimo do crítico. Caso esteja passando por um momento complexo ou singular da vida, todo mundo, de certa maneira, fica sabendo. O que é ruim, chato à beça (para o crítico). Porque a crise pessoal do crítico mexe nas cores de sua leitura quando se depara com uma obra, objeto de sua crítica, que mereceria louvores. O que escrever num momento desses?

É mais ou menos isso que acontece comigo nesse momento. Gasto o triplo da energia para olhar com bons olhos obras que elegeram em sua estrutura narrativa o famigerado fluxo de consciência. Infelizmente, estou numa fase da vida sem a menor paciência para esse tipo de registro. Haja! Em mãos habilidosas como as de Joyce e Saramago, beleza… Show de bola! Só que o bonito no quintal do vizinho nem sempre tem a ver com nosso próprio estilo e nem sempre temos o talento para utilizar o que, nas mãos de outros autores, faz o difícil parecer fácil.

E eu, avesso às modinhas, infelizmente, ando pegando corda com esse tipo de forma de expressão. Modinha. Todo mundo acha bonito soltar a mente, se libertar, se permitir, sem prestar atenção que há uma tremenda técnica por detrás. Técnica, já ouviram falar? Fluxo de consciência não é orelhada, não é também sei fazer isso, meter o dedo na viola e seja o que Deus quiser. Tem domínio de técnica naquilo. Não é fruto de vontade apenas, é preciso certo talento e bom domínio do tópico frasal para que o leitor não tenha diante de si um troço ininteligível.

Permitam-me (e perdoem-me!)  o desabafo inconsistente e fora de hora, mas dá a impressão de que a literatura brasileira acordou no dia 01 de janeiro de 2000 achando a maior lindeza ser Kafka, Joyce, Saramago, sem olhar para seu próprio passado de Novelas de Aprendizado, de Autran Dourado, ou Os Ratos, de Dyonélio Machado. Se fosse a Inglaterra, com quase cinco séculos de tradição literária, até entenderia. Mas não é o caso brasileiro. Há uma tradição literária brasileira? Há. Tal tradição nos dá lastro para tentativas de padrões ainda não interiorizados devidamente pelos autores brasileiros? Tenho lá minhas dúvidas. O fato é que tanto Dyonélio quanto Dourado esfregam na cara de qualquer um que o romance psicológico não precisa de rocambolescas rupturasquebras de paradigma, para ser sofisticado.

Aí, eis que cai em mãos o próximo livro da fila: João Gilberto Noll. O grande e maravilhoso João Gilberto Noll. João Gilberto Noll, celebrado, querido. Claro que a minha crítica será parcial: um colega de profissão, também um homem de formação em Letras assim como eu. Cúmplice da mesma paixão silenciosa e secreta por esse mundo das palavras, do suco de cérebro. Estou do outro lado da mesa. Lá se vai a credibilidade do Literaturial.

Canoas e Marolas compõe uma série da editora Objetiva chamada Plenos Pecados, sobre os 7 pecados capitais. Noll parece-me que foi sorteado para o pecado preguiça, não sei aqui dizer ao certo se a obra foi encomendada. Segundo o site da revista Época, João Gilberto Noll refugiou-se durante nove meses na Costa da Lagoa, em Santa Catarina, para a confecção da obra, o que leva a crer que realmente tenha sido on demand.

No romance (que mais tem cara de conto), um homem, que ao longo da narrativa revela a alcunha de João das Águas, chega a uma ilha com a finalidade de, finalmente, conhecer sua filha, chamada Marta,  fruto de um romance com uma enfermeira num período da vida onde esteve hospitalizado. Na sua chegada à ilha, conhece um menino-índio que se torna seu companheiro de preguiça, com quem passa boa parte do tempo em ócio, entre as sobras das árvores e as permanências na praia.

Marta é médica, cuja especialidade é preparar pacientes terminais para a morte. Ao longo da história, o homem (ou João das Águas) descobre que sua filha espera um filho e desconfia que o menino-índio responde pela paternidade de seu neto. Assim, a primeira idéia que o leitor tem em relação aos personagens é que cada um representa uma fase da vida, a natureza sempre pródiga em sua força e renovação, numa história que simboliza fechamentos de ciclos e aberturas de outros.

Quando uma prosa quase poética é confeccionada por mãos hábeis e talentosas como as de João Gilberto Noll, a força corrente da narração perpassa o leitor de maneira sutil e suave. E esse é o grande mérito da beleza dessa obra de Noll. O espinhoso tema da vida quando acaba se torna poesia, é leve e tocante nas mãos de um profissional de Letras. O risco de não se gostar da história é zero. Mas, então, por que cargas d’água eu fiquei meio assim diante de uma das grandes obras da literatura contemporânea brasileira?

A escolha de Noll foi pela sua poética. Até aí, problema é meu. O chato de galochas aqui sou eu, não o autor. Noll optou pela superfície de convergência entre a prosa e a poesia no equilíbrio da mistura de frases curtas (característica de uma poesia mais contemporânea) e períodos compostos (quase sempre por subordinação e que denota a inclinação natural da prosa). Essa fronteira movediça entre prosa e poesia (chamada por alguns de prosa poética) se tornou, a bem dizer, um ente constante na literatura produzida no século XXI (e isso não quer dizer que não exista prosa poética produzida anteriormente).

Resumindo, minha fase pessoal me tornou um ser ignóbil e deplorável, que anda achando muito mais legal O Paraíso é Bem Bacana, de André Sant’Anna, do que Canoas e Marolas, do João Gilberto Noll. O que me coloca numa situação ruim, injusta com Noll (pois o livro é uma grande obra, é um grande texto). Eu queria muito ter gostado. E olha que o livro de Noll, do meio para o final, fica simplesmente excelente!

Tudo por conta da minha pentelhice atual em relação a parte de autores contemporâneos que andam confundindo fluxo de consciência com corrimento verborrágico. Dá nos nervos! A obra de João Gilberto Noll passa longe de um corrimento… Mas a simples perspectiva de estar diante de uma alegoria sobre a morte, a conclusão de ciclos, o fim de uma passagem pela Terra, motivo de tantos pensamentos que todos nós temos sobre a vida, colocou-me na defensiva. Uma poética de cunho delirante (o próprio narrados utiliza a palavra delírio algumas vezes), que deveria me trazer o deleite do belo (ou da graça), por conta dessa minha fase, ergueu minha guarda mais ainda.

Nem sempre a prosa poética traz densidade a uma narrativa, nem tampouco a torna sofisticada. É tão difícil entender isso? Brincar com ou subverter as fronteiras entre prosa e poesia não pode ser um molde-panacéia, a solução para tudo, a garantia de que sua obra será bem fófis naquele medo tremendo de que as pedras não alcancem a vidraça.

E ainda para piorar, a saber quem foi o gênio da Objetiva que associou Canoas e Marolas com preguiça. Provavelmente não consta no vocabulário desse profissional a palavra estupor, que melhor cabe para descrever a leseira encontrada tanto em João das Águas quanto no menino-índio. Os dois são muito mais regidos  pelo estupor do que pela preguiça propriamente dita. É quase propaganda enganosa: você ganha um carro num concurso de supermercado e quando vai tirar o prêmio descobre que o veículo é uma Brasília 77 azul-marinho. Ou seja, se eu já estava irritadiço, comecei a mostrar os dentes. É nisso que dá editora não contratar profissionais de Letras. Ah, Marcelo… Esquenta, não! Relaxa…

Enfim, rogo que leiam Canoas e Marolas, de João Gilberto Noll, imediatamente. Trata-se de um grande trabalho do romancista gaúcho. Definitivamente, coisa fina. Esqueçam minha irritabilidade momentânea e passageira. E deixem o trabalho de pegar de jeito  essa turminha do corrimento verborrágico comigo. Ao querido leitor do Literaturial, somente o prazer da leitura.





Boi, boi, boi… Boi da cara preta…

23 07 2012

Devo dizer que não sou profundo conhecedor da obra de Chico Buarque como escritor. Li Estorvo e olhe lá. Não que Chico desmereça a nossa mais especial atenção, não é isso. Esse grande mestre das artes brasileiras, esse cronista do nosso tempo, tanto na sua obra musical quanto literária, sempre terá o carinho do nosso olhar. Ainda que não seja uma unanimidade (o que é até saudável), sempre será o destino de nosso respeito por sua criatividade.

Lembro da minha época de infância, 1978, nada desse negócio e-book, downloads e outras bossas tão presentes no nosso dia-a-dia. Era a época dos bolachões de vinil, das enciclopédias Baden e Britânica cujos vendedores batiam de porta em porta oferecendo uma inestimável fonte de saber, principalmente para quem tinha filhos em idade escolar. Surgiu, nessa época, uma espécie de serviço que nada mais era do que venda de livros em domicílio. Respondia pelo nome de Círculo do Livro. Todo mês, um(a) vendedor(a) batia a sua porta para entregar a revista e marcar a data da coleta dos pedidos que eram entregues dias depois na casa do sócio do clube. Uma espécie de avon dos livros.

Foi na transição do governo Geisel para o governo Figueiredo que pintou em casa uma obra discutível para o momento de exceção que o país vivia. Escrito em 1974, Fazenda Modelo, de Chico Buarque, trazia a metáfora comum nas fábulas ao narrar as idas e vindas de seus bois-personagens dentro de uma grande fazenda.

Aqui se faz necessária, para os mais jovens, a seguinte digressão ou aparte:  com a repressão do regime militar, principalmente após o AI-5 de 1968, muitos artistas foram considerados subversivos e perigosos ao establishment de então, fazendo com que muitos saíssem do país em forçoso exílio. Era questão de salvar o próprio couro: ou se mandava ou corria o risco de parar no pau-de-arara. Chico Buarque foi parar na Itália. Em seu retorno ao Brasil, driblava os agentes da censura da Polícia Federal escrevendo letras de músicas ou livros carregados de metáforas. Vai que o censor não entendesse direito o que ele queria dizer e liberasse  a canção/livro?

Foi o caso de Fazenda Modelo. Guiados pelo boi Juvenal, líder daquele amplo curral, os bois descritos por Chico Buarque divertem o leitor em uma das mais contundentes críticas aos governos militares anteriores à data da obra, em especial ao governo extremamente opressivo de Emílio Garrastazu Médici, que governara o país entre 1969 e 1974. Foi o período mais sangrento contra os direitos civis que se tem notícia, perdendo, talvez, segundo alguns historiadores, para a ditadura Vargas.

Logo no início da obra, um mapa da fazenda e seus arredores. Mais adiante, o mesmo mapa, já com legendas mostrando a infra-estrutura da fazenda, que conta com aeroporto, motel e uma porrada de estádios de futebol. Na edição do Círculo do Livro, na página 71, a reprodução do pasquim local, enaltecendo o apoio popular ao boi Juvenal, com anúncios do tipo “(…) Sua fazenda precisa de uma KKKK, moto-serra elétrica, (…)” ou a inconfundível “(…)  Kulmaco, Tudo em materiais para construção, (…)”, numa possível alusão às empresas que estiveram por trás da construção da rodovia Transamazônica, um toque faraônico dos projetos nacionais perpetrados pelos governos militares, empurrados, acalentados e noticiados histericamente por Amaral Neto, O Repórter.

Sendo filho de Sérgio Buarque de Hollanda e com uma tremenda competência linguística, Chico reproduz na fábula Fazenda Modelo, Novela Pecuária o cenário social e político da época, com os seus barões famintos e mais uma série de figuras folclóricas que nada mais eram do que escroques oportunistas que se locupletavam de alguma maneira das situações que se descortinavam naquele momento. Uma série de situações que vão do cômico ao opressivo, mas sem um tom carregado de pesada crítica ao estado de coisas que imperavam naquele momento. Pelo contrário. Chico Buarque desfila um humor de cunho britanicamente irônico, tendo nessa subjacente ironia o substrato para pitadas equilibradas de deboche. Dificilmente um agente da censura chegaria a tamanha clarividência, o que, para nossa sorte, permitiu que o livro fosse reimpresso no final dos anos 1970.

Apesar do bom humor e de algumas passagens hilárias do livro, Chico mostra os dentes à caterva que naquele instante bem que tirava algum tipo de proveito da tragédia social e política que se abateu sobre o país naquelas décadas. Chico foi brilhante mais uma vez (permitam-me o pleonasmo): costurou a carapuça. Certamente teve muita gente na época que a vestiu confortavelmente, pessoas que deram graças a Deus quanto o autor iniciou nova fase literária a partir de Estorvo. Já outros sequer a usaram por conta exclusivamente da parca capacidade escolástica e intelectual.

O que podemos afirmar inicialmente é que Fazenda Modelo, Novela Pecuária mostra um Chico Buarque razoavelmente puto com certas figuras que pouco fizeram para que o merdelê não se instalasse do jeito que se instalou. Atrás do verniz bem humorado da obra, há um Chico que mete, outra vez, o dedo na ferida (olha o pleonasmo aí de novo!). Uma crítica contundente, mas não severa, de que, de certa maneira, também fomos responsáveis pela permanência de governos sanguinariamente opressores por conta de estarmos sempre às voltas com nosso próprio umbigo, afogados em nosso ridículo café pequeno.

Pode até ser que esteja redondamente enganado, uma vez que não li BudapesteLeite Derramado, obras mais recentes do Chico, mas acredito que Fazenda Modelo, Novela Pecuária foi o melhor livro que ele escreveu. Talvez pelo fato do autor ser mais jovem quando da materialização da obra, sem os vícios de intertextualidades ou subtextos presentes em seus últimos livros, já em idade avançada. Enfim, está lançado o desafio e a discussão. Uma coisa é certa: depois de ler Fazenda Modelo, há um sério risco do riso solto diante do bife de seu próximo almoço.





Ai, aaaaiii, aaaaaaiiiiii… Os referentes…

28 04 2012

Sinceramente, às vezes fico meio atônito diante de certas celeumas, tendências, ou seja lá o nome que se possa dar a certas discussões que aparecem na vida da gente.

No campo da literatura atualmente, há uma discussão meio deslocada, em geral sedimentada em teóricos que no século XXI já soam bem meia-boca, mas que, por causa da parca instrução costumeira de nossa inteligência brasileira, continuam fazendo sucesso. É muita gente distraída.

Em breve, teremos que baixar os glúteos na seringa e ver que os grandes nomes do século XX, na verdade, não eram tão bons quanto a gente imaginava. E ainda tem gente que emplaca doutoramento citando os falecidos. Ruim os doutorandos, ruim a universidade. É, a nova intelectualidade brasileira respira por aparelhos. Muito próximo da morte encefálica. Aliás, encefálica? Não foi à toa que o Supremo votou sobre interrupção da gravidez em casos de feto anencéfalo. Se valesse para os que estão respirando agora, haveria uma penca de gente na fila.

Maldades à parte, e tentando imprimir o mínimo de seriedade em um assunto que já não deveria ser levado tão à sério assim, alguém poderia me explicar o retorno dessa mania que, mesmo depois de tantas voltas que o mundo deu, deveria estar para lá de sepultado (ou, pelo menos, resolvido)? Por que ainda gastamos tempo com o velho assunto realidade e ficção?

Afinal de contas, esse assunto não deveria estar para lá de esgotado? Para que gastar tanto tempo precioso num assunto chato e que já deu o que tinha de dar?

Roland Barthes não decretou a morte do autor? Maurice Blanchot e Michel Foucault não especularam sobre a experiência do fora? Qual é o problema agora? Por que essa empulhação de novo em querer encontrar na vida pessoal do autor, em suas experiências passadas, a explicação de uma obra?

Por que essa eterna mania de servir o leitor com o livro, acompanhado de uma bula, guia, sabe-se lá o que, para explicar o que está escrito, para que o texto faça algum sentido ou tenha algum significado? Achei que tanto os leitores quanto os críticos já tivessem passado da fase oral. Achei que todo mundo já estivesse curtindo o tecido verbal e como o autor trabalhou a trama desse tecido. Qual é o problema agora?

O primeiro problema que vejo é que esse tipo de abordagem, esse tipo de discussão, dá uma chance enorme e danada para um plêiade de orelhudos arrotarem uma erudição que tenho lá minhas dúvidas. Como diz o Ademir Demarchi: de novo, o delírio da crítica. Pior do que o delírio, esse tipo de assunto é papel para cupins. Acaba atraindo gente rasa como um pires ocupando espaços de quem deveria ser do ramo.

Não, não há a menor necessidade de um autor ter vivenciado um universo específico para falar sobre tal assunto. Duvido que 80% dos autores que escreveram um romance de guerra tenham sequer empunhado uma arma de fogo. E nem por isso. Suas obras são de grande quilate, bem escritas, verossímeis e dignas de premiação em certos casos. Também não há o menor cabimento de um escritor se tornar um serial-killer por uns 4, 5, 6 meses a fim de caracterizar com rigor de veracidade um determinado personagem.

É óbvio que o olho que processa aquilo que se testemunha é único. Entendo que não se pode retirar do autor seu traço de personalização daquilo que vê. E não é esse o caso. Não se trata de colocar o autor para escanteio, nem de renegar a um segundo plano o autor ser humano. E é aí que reside a graça do negócio. A minha história de guerra será diferente de qualquer outro escritor. Será diferente da escrita pelo Ademir Demarchi, pelo Marcelo Ariel, pelo Manoel Herzog…

O meu olho é brasileiro. Por mais que vivencie uma realidade estranha ao meu habitat, ao meio meio de vida, captarei o diferente por esse olho que é meu: brasileiro, santista, meia-idade, masculino, oceânico, bilingue. Diferente de qualquer outro autor e esse é o tempero especial que cada um possui.

Posto isso e também a questão de que não há a menor necessidade de se vivenciar certas coisas (algumas delas bem escabrosas e abjetas), resta ao escritor algo de suma importância e que todo mundo já conhece (daí a perda da importância dessa discussão realidade e ficção): remeter-se ao referente.

É a habilidade de um autor remeter-se a um determinado referente que faz de uma obra especial. Ainda que o escritor tenha um ponto de partida dentro da realidade onde está inserido, jamais conseguirá um amplo domínio, um domínio total do assunto em questão. Logo, ele se remeterá a partes desse todo para garantir a verossimilhança de determinados trechos da obra e a agradabilidade diante de seu leitor. E estamos conversados.

Vasculhar na vida do autor algo que dê sentido à obra ou justifique certas passagens de um romance, de um conto, é uma tremenda empulhação. É afastar o leitor do livro, justificando a debilidade de uma obra ou de um escritor pela presunção de que a ficção é um ente menor do que a realidade quando os dois estão em pé de igualdade. É fustigar a chaga determinando que quanto maior for a correspondência daquela ficção com a realidade, melhor será a ficção.

Em suma: um tremendo desserviço. É insistir na decretação da inferioridade ficcional, de que ficção ou é obra menor ou simplesmente não existe. Mas é claro que ela não existe. Caso contrário, não seria chamada como tal. Entretanto, isso não significa que a prosa ficcional fique terminantemente reduzida a quanto ela pode ter de realidade.

A força da prosa ficcional está, inclusive, na habilidade de um autor se remeter a um referente que também é criação do próprio escritor, fruto da força e possibilidade criativa de quem tece o texto. Até mesmo o referente não precisa ser necessariamente um produto do meio, um ente real, concreto, corpóreo, com quem convivemos, almoçamos juntos ou tomamos café num fim-de-tarde. Não há teoria literária, sequer lei, que obrigue um escritor a somente se remeter a um referente que seja de carne e osso, que podemos encontrar a qualquer momento andando na rua.

A graça da prosa de ficção está aí: na oportunidade de se remeter a um referente pertencente a um mundo real ou não. Há amplas e quase infinitas possibilidades do autor se remeter a referentes que nada mais são do que criações suas também. Se há a graça na confusão entre realidade e ficção, a ausência dessa confusão é tão possível, saborosa e agradável quanto.  Portanto, façam-me o favor de deixar autores e leitores em paz que todo o resto se acerta, se ajusta.

Porque futucar vida de escritor na esperança de produzir uma bula para a leitura de uma obra torna a literatura um dolorido pé-no-saco. Não é à toa que leitor no Brasil anda fugindo de livro, de escritores e de todo universo literário. Lá vem aqueles caras arrogantes e chatos para cacete. É por essas e outras que entendo o desejo do Ariel em gravar um disco de sambas.





Só existe um

16 03 2012


Há certos livros que são um perigo para quem lê. Para quem os comenta, perigo em dobro. Para quem lê, o perigo de se vestir a carapuça. Para quem se propõe a analisar a obra, o sério de risco de comparar o autor com esse ou aquele escritor. Há certos escritores que mostram, aqui e ali, certa intertextualidade com obras já lidas, certos traços que remetem a leituras anteriores. Perigo danado: vá que não conheço um determinado autor afundo e dou partida na minha metralhadora de besteiras?!

Isso sem contar que fazer comparações é cair naquele lance o mais da mesma coisa danado. Ora falta de recurso, ora desconhecimento do mundo vasto da literatura. Eterno e infinito.

O perigo de minha leitura de Notas de Arrebentação do escritor paulistano Marcelo Mirisola é a contaminação de minhas visitas a sua coluna no Congresso em Foco. Precisaria de um certo tempo para fazer a descompressão. Uma desassociação necessária para não confundir alhos com bugalhos. Entender momentos distintos de Mirisola, não atropelar a obra, sempre única e singular.

Notas de Arrebentação é uma reunião de textos que tem em comum a abordagem em cores nem tanto brilhantes e sem qualquer abrandamentos de esfuminho de seres e cenários tão comuns e tão peculiares. É o movimento do pincel sobre a tela com a energia de reproduzir, de certa maneira, o borrão que todos nós somos e escondemos por detrás de um certo verniz civilizatório. Caberia na página de abertura do livro: pare de viadagem!

Apesar da predileção do autor por Carta para Gombro e Rio Pantográfico (os dois textos de abertura de Notas), e apesar de alguns creditarem a O Azul do Filho Morto a melhor obra de Mirisola, Notas de Arrebentação é passagem obrigatória. Porque não cai no perigo da nefasta tendência de uma literatura paisagística nacional, acusada por Lêdo Ivo, e que tem em José de Alencar seu grande executor. Porque coloca qualquer um no lugar onde se deveria estar. Senta lá

Não ver o subjacente nesse livro de Marcelo Mirisola é questão fechada: alternativa a. burrice, alternativa b. má-vontade, alternativa c. deixe de sacanagem, por favor. Não ver, em Notas de Arrebentação, que a sociedade contemporânea, assim como os bebês, não passaram da fase oral, com a quantidade de falos boca adentro ao longo das situações descritas em Notas, ou é alternativa a ou alternativa b. Encher o saco por conta de uma linguagem direta e constante lascívia nos personagens é ficar no superficial, é não enxergar um enfastio produzido por uma sociedade de controle. Pior ainda, uma sociedade que, deliberadamente, escolheu ser babaca (leiam Tigelão de Açaí, presente em Notas).

Mirisola não se escora na manjadíssima manipulação (às vezes barata) da mancha de texto, tentando traduzir algum tipo de avant-guarde para iniciados. Não se escora na questão do registro, sacadíssimo isso, de encher o texto com dois pontos. Nem os reis do registro (Saramago, Joyce) abusavam desse tipo de recurso para estender as lindas penas de pavão a quem os lia. Pode até ser bacana isso, uma hora aqui, outra ali, mas com o patrimônio literário do século XX, é o mesmo que querer ensinar a geração Y como mexer num smartphone. O trouxa certamente será você. Live and let die.

Ficar preso no sequencial felatio in ore, ou cigarros às nadegas, ou no hilário personagem que para mostrar austeridade confessa sublimar a cópula, entregando-se ao império de Onan em infinitas homenagens a uma cadela, é ficar no superficial. É querer chegar ao final da leitura de Notas de Arrebentação morrendo de vontade de dizer que a obra é razoável. É desconhecer o quanto pode ser indutivo, perturbador e até mesmo depressivo uma Telefunken 79. Um referente ao império das sombras.

Alguns autores não entregam de bandeja pelo hermetismo do texto. Mirisola não entrega de bandeja pelo que Freud chamou de aparelho neural. Ele demanda de seu leitor, pelo menos, esse tipo de sintonia. Demanda tempo, vivência, certo tipo de conhecimento ou até mesmo de algum tipo de ilustração. É através de Mirisola que se entendem porque existem sagas crepúsculos: não é todo mundo que está tão preparado assim para o esconderijo não hermético. Talvez leitores mais novos, cabaços de vida, encontrem algum tipo de dificuldade, ainda que Marcelo Mirisola tenha escolhido o discurso direto e equilíbrio entre os períodos simples e compostos. A esses, um vampiro, um lobisomem e uma menina de sangue frio.

A teoria de Mirisola não fica escondida num tecido verbal vertiginoso de tão rococó. Está numa paisagem humana quase balzaquiana, só que mais rasgada. Eis a graça do negócio. Sem a percepção de que o texto é meio e não fim da crítica à sociedade fase oral, e que a sandice é coisa da lascívia e de uma falta de caráter tão comum entre nós em nosso tempo, o leitor ficará apenas no lugar comum.

Na teoria de Mirisola, pelo passeio em Notas de Arrebentação, teríamos o herói trágico? O bode finalmente dissecado? Seus personagens enfrentam aquilo que os abreviam? Aquilo que os colocariam na condição de uma perenidade pelo enfrentamento daquilo que lhes encurtam a vida?

Bom, cheguei aqui sem cair na cilada de fazer correspondências excessivas de intertextualidade. Compreendo aqueles que, por causa do superficial, não admiram as narrativas de Marcelo Mirisola. A disposição do autor como figura pública interferiria a agradabilidade de quem eventualmente fosse lê-lo. Pura perda de tempo essa do estético pelo ético. Mas isso não importa. O que importa mesmo é que, nos dias de hoje, um autor como Marcelo Mirisola talvez não se encontre. Ficou ímpar. Autor como Marcelo Mirisola, só outro Marcelo Mirisola. Marcelo Mirisola, só existe um.





Semeai livros a mão cheia e mande o povo pensar

12 01 2012

Conheçam William, um vendedor de livros

Gostaria de começar de forma positiva esse ano de 2012. Afinal esse é o primeiro post do ano. Daria aqui um destaque a esse ou aquele autor, esse ou aquele lançamento, mas decidi compartilhar a ação que um livro pode causar na conexão de uma cidade.

Na primeira Vitrolada do ano com DJs acidentais (Chico Marques e Mauro Pavesi), no Torto, quem por lá baixou viu se repetir uma cena que, mesmo não sendo frequente, ilustra bem o livro como ativo econômico. Não, não estou aqui fazendo defesa de livreiros, escritores e casas editorais. Esse primeiro post do ano vai um pouquinho mais além: a possibilidade de transformação que o objeto livro pode realizar (algo meio impensável para os e-books, pelo menos até o momento).

Na última terça, na esquina das avenidas Siqueira Campos e Bartolomeu de Gusmão, estava lá novamente o William. Não sei qual é o seu segundo nome (ficar enchendo o sujeito de perguntas e ele logo me daria como policial ou algo do gênero. Quem é da noite conhece essas criaturas e sabe bem que não são lá muito afeitas a certo tipo de inquisição). É um morador de rua que tem consigo um carrinho de supermercado onde carrega seus pertences e sua mercadoria: livros.

Estende uma lona plástica na calçada e organiza sua livraria ambulante. Alguns títulos manjados, outros totalmente interessantes. Enfim, apesar da quantidade diminuta, o nem-tão-trivial-assim era variado.

Perguntei o preço dos exemplares, a fim de saber se havia alguma diferença de valor entre eles. Afinal, havia livros de medicina expostos lá, pediatria, anatomia, logo pensei que ele praticaria preços distintos.

É tudo R$ 5,00. Isso mesmo! Toda aquela pequena fortuna tendo seus pedaços vendidos à R$ 5,00.  Títulos irresistíveis, preço irresistível.

Puxei assunto com o William. O negócio é fazer uma baladinha diferente. Sei que o pessoal desse lado curte cultura, aí

William e seu carrinho de fortunas literárias de toda espécie

vendo meu livrinhos.  Pelo estado de conservação dos exemplares, provavelmente ele os consegue no lixo. Pois é, ainda tem gente que, ao invés de doar as edições a bibliotecas, joga fora.  Enfim, bem a cara de uma parcela de nossa população que, apesar de rechonchuda conta bancária, é de uma indigência cultural sem par.

O trecho da Siqueira Campos entre Epitácio Pessoa e Bartolomeu de Gusmão é meio o quarteirão da alegria. De um lado o C4 e o Australiano. Do outro, o Torto. William foi feliz ao dizer que o pessoal desse lado curte cultura. No caso de uma Vitrolada, numa terça, a presença de jornalistas, artistas e pessoas simpáticas às causas culturais é um pouco maior do que baladeiros de fim-de-semana que certamente não estão sensíveis ao trabalho de William.

Se pouco conheço cabeça de baladeiro, o William não passa de um maloqueiro que vende livros encontrados no lixo para beber cachaça. Da minha parte, o que ele faz com o dinheiro que ganha vendendo seus livros não é da minha conta. William é uma pessoa que trabalha com livros. Ainda que longe de nossa fantasia de esteriótipos, William, na última terça, era a única loja de livros aberta naquele horário, com bons livros, alguns em excelente estado de conservação e por um preço condizente com sua atividade de ambulante (não precisa pagar aluguel, água, luz, IPTU, ISS e outros tributos).

Enfim, tem gente que ainda faz cara feia ou torce o nariz. Administradores públicos com contas em offshore para lavagem de dinheiro é que é bom, bacana, pelo jeito. William é humilde. Talvez nem saiba o valor do trabalho dele. Mesmo assim, achei aquilo algo positivo, não no sentido comercial e de sobrevivência de William, mas por sua percepção de Cultura como uma pulsação, como um elemento que pode muito bem ser orgânico numa cidade que se diz cultural, mas que aponta para um desertificação inimaginável.

William, naquele instante, representou tudo aquilo que a Cultura deveria ser: orgânica. Um movimento e um pulsar sem grandes reflexões, transgressões ou comprometimentos estéticos e pessoais. Vendo livros, diria William. O resto é com você, leitor(a).

A propósito, graças ao William, tenho em casa, agora, Crônicas Escolhidas de Lima Barreto, e O Conto da Ilha Desconhecida de José Saramago.





Obrigações matrimoniais

14 10 2011

          Acho engraçado isso: após assinar os papéis do casamento, no civil, se um dos cônjuges não cumprir com alguns dos itens lá relacionados, coisas acontecem. Desde o fim do contrato até coisa pior (uma sub-versão dele). Ninguém fica satisfeito, ninguém fica feliz. Entretanto, quando o assunto é mercado editorial, voltamos a ver fantasmas ao meio-dia e ouvir vozes depois das 22 horas.

          Deus é testemunha que sou um defensor do do-it-yourself. Se tem alguém que pensa e acha que o escritor não pode ficar refém de uma espera interminável para uma publicação, esse alguém sou eu. Do fundo do coração, sou tremendamente favorável que o autor procure a melhor maneira de viabilizar a publicação e/ou trazer sua obra para o público (seja qual for o tamanho). Apenas penso que isso deveria ter em sua raiz o bom e velho for free and for fun. Que isso deveria ser, acima de tudo, divertido para o autor e o público.

          Porém, quando a publicação é uma forma de dar vazão a egocentrismos distorcidos e pressionar um mercado com seus próprios códigos e procedimentos, seria bom o(a) escritor(a) em questão repensar um pouco sobre o que é (ou deveria ser) literatura.

          Vivemos tempos difíceis. Sei disso. Tempos que transformaram o então famoso e charmoso marketing pessoal em um cabotinismo sem par. Egos inflados e mentes doentes quase sempre são nitroglicerina pura. Vivemos tempos difíceis, eu sei. Tempos onde os meios dão uma enorme atenção a tudo que é tóxico. E, ainda por cima, tentam quase que a todo custo enfiar goela abaixo de que isto é um valor dos tempos modernos, de que isso é bom pacas.

          Publicar nada mais é do que levar ao público. Só isso. Não é a tábua de salvação de uma carreira, não é um cafuné, não é prova-de-honra, não é a defesa de uma tese que tenta provar que essa ou aquela pessoa é indispensável artisticamente.

          Quando publicar se torna uma mecânica de defesa a qualquer tentativa de edição, a deterioração atinge seu grau mais avançado. Simples: com as recentes possibilidades de prensagem em quantidades reduzidas, praticamente qualquer um pode publicar o que quiser. Se na primeira leva as duzentas cópias são vendidas, logo o público, um ente soberano, referendou a qualidade daquele(a) escritor(a). E partir desse ponto em diante, ai do editor que venha com qualquer tipo de sugestão nas obras seguintes.

          É o famoso todo mundo quer ir para o céu, mas ninguém quer morrer. Quem senta do outro lado da mesa acaba não curtindo muito esse tipo de postura. Casas editoriais costumam deter CNPJs, impostos a pagar e toda sorte de encargos vencendo mês após mês. É impossível um editor não pensar no texto como um produto a ser adquirido. Ainda que o pensamento esteja vibrando na mesma frequência de onda da qualidade artística de um texto, com tantas contas a pagar, fica complexo não considerar a viabilidade comercial de uma obra.

          Se o lance é ser independente, sejamos independentes all the way. Utilizar um eventual sucesso inicial como instrumento de pressão contra qualquer tipo de flexibilização é fazer de qualquer projeto primeiro e único. Certamente o editor não vai querer repeteco. Pensará duas vezes antes de partir para uma segunda empreitada na base da pressão.

          Simples: se determinado autor já vendeu suas duzentas, quatrocentas cópias, que permaneça no do-it-yourself e seja o que Deus quiser. Agora, uma vendagem nessas condições justificar um baita tapete vermelho, entrar na casa editorial pela porta da frente, onde vale sequer passar pelo processo de edição, sei não… Fica esquisito pacas. Isso sem contar a gigantesca legião de autores que não possuem uma leitura mais crítica do que fazem, aquele leitor mais atento que evita cochilos e viagens onde só o escritor goza. Mais ninguém.

          A possibilidade de publicação não deveria jamais ser uma massagem no ego. Deveria ser um ato de comunicação, um contar uma história. Ainda que solta em estética particular e elaborada, deveria ser uma celebração do e com o público, não um ato vazão de si próprio. Penso que não foi para isso (um ato de vazão de si próprio) que o livro foi feito. E livro nenhum oriundo de uma casa editorial foge à necessidade de se transformar num produto, ou desrespeita os códigos, ritos e convenções do que é chamado mercado.





Escola de Escritores (ou as Letras Atrapalhadas)

23 08 2011

          Quis a sorte (ou o azar) de gostar de idiomas estrangeiros e bater com os costados na área de tradução. Vocação? Sim. Só que o prazer de trabalhar nessa área é maior do que a vocação. Jovem, 18 anos, não quis meter as caras na capital estadual, até mesmo porque não tinha onde cair morto (não que hoje em dia esteja absurdamente diferente, mas minha atividade como professor de inglês na época custeava a faculdade sem sobrar muito sequer para o guaraná). Não, não nasci em berço esplêndido.

          E, assim, começou a viagem pela técnica dentro da arte. Linguística, linguística aplicada a ensino de idiomas, linguística aplicada à tradução, teoria da literatura, literatura comparada, literatura portuguesa, literatura brasileira, literatura inglesa, literatura norte-americana, técnica e teoria de tradução, monitoria, livros, livros e mais livros. O curso estava bem no início e nossa sala de aula ficava na biblioteca central, numa salinha, uma espécie de aquário.

          Quando faltava uma ou outra professora, enfiávamos a cara nos livros. De Woody Allen à Noam Chomsky, de Dionélio Machado à Shakespeare. Dois anos dentro de uma biblioteca. Livros, livros, livros… Antônio Candido, Herald Bloom, Saul Bellow, Balzac, Eça… Até a versão em quadrinhos de A Queda da Casa de Usher, de Edgar Allan Poe, a gente lia. Ainda que preferisse as heroínas de Millo Manara.

          Quatro anos dentro de um curso de Letras traz uma garantia: não há consenso. Se a humanidade até hoje enfrenta seríssimos problemas para o estabelecimento de um juízo estético fácil, ágil, amplamente aplicável, seguro, definitivo e perene, o que dizer quando me fazem a pergunta: o que é literatura? O que é literário? O que é e o que faz um escritor ser um escritor? Qual o elemento fundamental que torna aquele ser humano escritor e os demais não?

          O que faz um relato (comum em textos de grandes reportagens, no texto jornalístico) não ser considerado literatura? Por que somente o texto denso pode ser considerado literatura e um outro mais simples, bem mais raso, não? Qual é o juízo estético que norteia o que é literário ou não? Qual(is) o(s) elemento(s) que concretamente provam que um determinado livro é literário? Crônica não é literatura? Ensaio não é literatura? Macbeth, de Shakespeare, sim; Fazenda Modelo, de Chico Buarque, é excrescência?

          Um dos grandes teóricos da tradução que o mundo já produziu foi Eugene Nida. Não, caro(a) leitor(a), ele não fez quatro anos de bacharelado em Letras ou Tradução. Ele simplesmente comandou equipes e mais equipes que traduziram os evangelhos. Seria ele um tradutor? Ou não, porque traduzir os evangelhos não vale? Só valeria se tivesse traduzido Joyce. Sim? Não?

          Fico imaginando o Ministério do Trabalho só permitir escritores com diploma de Letras. Imagino Balzac nas carteiras de uma faculdade para se tornar um escritor (ou pelo menos ter permissão para). Já adianto uma coisa para você, meu/minha caro(a) leitor(a): a literatura seria um troço chato pacas. Literatura com carimbo do MEC. Sei lá, perde o ímpeto, sabe?

          A graça do negócio está na diferença. Entre o frio e o quente, entre o raso e o profundo, entre o simples e o sofisticado, entre a ficção e a não-ficção. Há todos os tipos de leitores, há todos os tipos de escritores, há todos os tipos de livros, há todos os tipos de literatura e escolas literárias. Há pessoas mais talentosas do que outras? Há. O problema é estabelecer um índice de talento e competência quando o assunto é arte. Mas há um cenário pior: mesmo sem um consenso em torno de um juízo estético, você, meu/minha caro(a) leitor(a), perder seu livre-arbítrio de se mover por causa de um livro que você quis ler ao se deixar guiar pelas primeiras posições do tal índice de talento e competência.

          Portanto, meu/minha caro(a) leitor(a), relax. Take your time. Pegue o livro de sua preferência, aproxime-se do autor que você mais gosta e aproveite o resto dos dias que ainda lhe resta.





Eu podia estar roubando, eu podia estar matando.

11 08 2011

"51 Mendicantos", de Paulo de Toledo

          Um dos grandes atrativos da áspera vida nas cidades é a fauna, o conjunto de júbilos, gozos e misérias humanas. A vida no campo é muito melhor, mais tranquila, o ar mais puro, temos mais verde. O que sobra nas cidades são as histórias que não deram certo. Vale, então, aquela velha máxima de que a história é sempre contada por aqueles que venceram. Nem sempre. O poeta santista Paulo de Toledo, um poeta observador, aquele observador com o olho curioso, recria a figura urbana do mendigo em sua obra 51 Mendicantos. Não. Não há aqui um corte profundo que nos identifique com os mendigos, nem tampouco um ordenamento meio na base da autópsia do que deu errado na vida dessas pessoas. Também não há uma tentativa de entender o que é um mendigo, como pensa, porque chegou naquele estado. Se a busca for por mandamentos da mendicância, é bom tirar o cavalinho da chuva igualmente. Aqui se trata de como a imagem de um ser em sofrimento pode recriar um espaço imaginário a partir do olho de quem vê.
          E Paulo de Toledo não economizou observação e imaginação para reconstruir um universo que, quase sempre, nos passa completamente desapercebido. De fato, num primeiro momento o trem acaba soando estranho pacas. Mas é surpreendente ver um poeta deitar os olhos nessa figura humana sempre associada a um sabor de derrota, de fracasso. Essa imagem de um homem vencido pela estranheza dos códigos urbanos, dos códigos sociais, ligado a inaptidão de se adequar a costumes que até mesmo nós (não mendigos) questionamos sua validade, seu sentido.
           A primeira leitura da obra de Paulo de Toledo deixou em minha boca um leve e imperceptível sabor de traquinagem. Sabe aquele garoto traquinas que escarnece do mendigo, que lhe atira coisas, só por passatempo, molecagem? Sabia que minha primeira leitura era um equívoco grande demais para continuar nela. Releitura, releitura, releitura… E depois achei a imaginação a serviço do registro de um personagem das cidades tão de carne-e-osso quanto todos nós. People we despise.
          Se Paulo de Toledo corrige esse equívoco, tinha de corrigir meu equívoco de uma primeira impressão tão rasteira, parca, fraca, débil. E descobri a figura do mendigo como um ser sentimental, racional, emocional, embutido na invisibilidade por nós produzida, essa invisibilidade deplorável de não enxergar os seres que nos cercam exceto pelo que mostram, ostentam, induzem, pelo que vestem, dirigem, pelo lugar onde moram, pela poupuda conta bancária.
          51 Mendicantos definitivamente é um livro onde o preconceito foi jogado fora, passa longe. Lá temos o mendigo, o herói desses poemas, como a mais fina, pura e cognoscível persona poética. Paulo de Toledo teve a felicidade de confir-lhe a autoridade artística, um posto que não fica nas mãos do autor, mas que transitoriamente termina na personalidade frágil, exposta e dependente de tudo que um mendigo possa ter.
          Sim, o mendigo de Paulo de Toledo possui ideal estético capaz de sensibilizá-lo ao que Immanuel Kant chamou de a forma da conformidade a fins de objeto. O mendigo a vê, e a ela é atraído, sem rodeios, sem protocolos de uma vida urbana débil, cheia de pífias idéias de ordem, que nada mais faz do que tolher brutalmente a sensibilidade de qualquer persona poética (ou artística).
nem tudo são flores
 
com o cacete o guarda dá no pé do ouvido
do mendigo que brincava comovido
de bem-me-quer com uma flor do município
 
(TOLEDO, Paulo de. 51 Mendicamentos, ilustrações de Sandro Saraiva. Porto Alegre, Editora Éblis, 2007.)

O poeta e escritor Paulo de Toledo

          Três versos em cada Mendicanto e a figura do mendigo completa seu desfile pelas questões humanas de uma subserviência pecuniária e tecnológica que expõe o ser humano a sua própria rugosidade feito um ralador de carne. O mendigo luta. Universaliza-se pelo ponto de intersecção com o leitor: a alma, o sopro, a elevação da arte, do artístico. Desde que o leitor não esteja impregnado pela aparência e não fique a abraçar o que lhe exposto. Um leitor que vai muito mais além do que os olhos apreendem. 
           Diferente de Poesia é Não, de Estrela Leminski (onde o poema é perpassado mais pela emoção do que pela imagem), 51 Mendicantos uniria David Hume e Maurice Blanchot no que tange a imagem & imaginário se ambos não fossem um tanto descontinuados em relação à imagem. Se para Hume tanto a impressão quanto a idéia se diferenciariam em relação a sua intensidade (a impressão é mais forte, portanto, inegociável), é na imagem em que elas se baseiam num primeiro contato com o objeto de nossa contemplação. Mas sem nada por trás desse objeto. É na inegociabilidade da impressão que arrefecemos sua intensidade e a tornamos idéia. Mas sem a loucura de acreditar que haja algo por trás do signo que invada nossa visão.
          Prudente Blanchot ter mantido a distância necessária entre o signo e a coisa real. Ainda que afirme na simultaneidade entre objeto e imagem, não correu o risco de alegar pesos iguais para ambos. Apenas afirmou que um não vem desassociado do outro. Meu único descontentamento com Blanchot vem com a não abordagem empírica da imagem (impressão & idéia) e com a não contemplação do caráter arbitrário e convencional do signo linguístico indicado por Ferdinand de Saussure, o que acaba tirando da jogada o(a) amado(a) leitor(a) num processo palimpsesto, de conclusão de um ciclo cognitivo. Mas isso é uma história para um outro por do sol…
          Se para Blanchot a imagem é uma outra possibilidade do ser, é na idéia (Hume, o arrefecimento da impressão) que o poeta Paulo de Toledo recria um espaço literário onde as palavras e expressões em língua inglesa presentes em 51 Mendicantos conota a sofisticação de uma tralha técnica, científica e tecnológica capaz de excluir esse ou aquele por situação finaceira e inadequação adaptiva em mundo sem explicação e sem sentido.
          A idéia de quem é o mendigo presente em seus poemas faz com que Paulo de Toledo corrobore a autoridade de persona poética, sem cair no perigoso apelo de transformá-lo num herói virtuoso. A idéia dessa imagem recria o espaço literário e a palavra literária (Blanchot) para intensificar a força dessa idéia, tornando-a impressão dentro desse espaço e, consequentemente, inegociável outra vez.
          Paulo de Toledo, assim, reforça sua opção mais empirista em 51 Mendicantos, mas com a singela cumplicidade de seu(ua) leitor(a). Transforma-o(a) não num(a) interlocutor(a), mas numa testemunha dos passos errantes do mendigo, em sua jornada, em sua epopéia de respirar simplesmente. Dá um passo além de Blanchot por não ignorar o(a) leitor(a) como integrante de relevância dentro de um ciclo comunicativo, de reconhecimento, de entendimento. A notícia de que o ser ao seu lado existe. Com todas as suas complexidades imateriais.