Leve

4 11 2014

Um dos problemas que comentaristas de histórias, livros e/ou congêneres enfrentam é a famosa falta de tempo. Toda leitura deveria ser remunerada. Um trabalho profissional: dela depende a movimentação do mercado editorial, um norte para autores, alento para criadores. São as respostas a partir das leituras que movimentam a literatura. Sem ela, a leitura, quase tudo estaria comprometido por uma espécie de espírito de corpo que, em geral, anda movimentando muito as artes em certos rincões do país com o que eu chamo de evento interno (de artista para artista).

Digo isso pelo hiato existente entre uma postagem e outra nesse combalido blog. Sim, falta-me tempo para leituras, minha atividade profissional é outra, dela dependo para pagar as contas. E bem sei que tal exposição é bastante perigosa: certamente logrará surgimento de alguns engraçadinhos desqualificando qualquer capacidade minha no desmonte analítico da linguagem ou qualquer encanto de análise literária que eventualmente possa apresentar.

Apresentadas as eventuais justificativas para a existência desses hiatos, vamos à maravilhosa história de como a obra em questão nesse post veio parar aqui.

Uma das minhas maiores dificuldades é encontrar simpatia em métodos para o trabalho. Justamente por possuir vários deles, dos quais lanço mão boa parte das vezes. Sabe aquela coisa do Mr. Right, o certinho?!  Chega um momento que viro naturalmente um outsider quando a atividade desenvolvida está, para mim, muito mais conectada à questão do prazer do que a do ofício.

Isso posto, estranhamente intencionei um processo de escolha para as minhas próximas leituras (ou, pelo menos, parte delas) que contemplasse aquele solitário momento comum a qualquer ser humano que possui o aparelho digestivo em pleno funcionamento.

   Id est, leituras de pequenas obras, obras não muito extensas, para aqueles momentos onde as urgências fisiológicas oriundas da necessidade de nutrição, ou prazer de certas degustações, se avizinham.

O critério soou sério e claro. E fui à luta na busca de obras que se encaixassem nesse perfil. Foi então que encontrei, num café do Pátio Iporanga, Caderno Vermelho, de Paul Auster. Quiçá para a alegria do Alcyr Pécora…

    Nas edições em língua inglesa, o subtítulo True Stories (Histórias Verdadeiras). O que fomenta certo tipo de discussão de que quase toda obra literária de ficção é, em certo grau, biográfica. Sei não… Tenho lá minha dúvidas. Mesmo que se prove a presença de informações pessoais certamente extraídas da vida de quem escreveu, de suas experiências, acho uma forçação de barra danada afirmar que o autor vivenciou tudo o que está ali escrito.

   Lança-se por terra, assim, a capacidade criativa do(a) artista, empurrando-o(a) a ter de passar por certas situações na vida com o propósito de escrever sobre. Seria o mesmo que o(a) autor(a) ser epilético(a) para construir uma personagem com essa enfermidade, ou cometer o suicídio se uma personagem for suicida.

   Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Sabe-se que não há uma ficção completamente isenta, mas isso ainda se encontra no campo da suspeita. Sempre haverá a improbabilidade de todas as ocorrências presentes numa narrativa terem terminantemente acontecido com o(a) autor(a). Como forma de certo charme que se lança sobre o leitor (“…será que aconteceu?! Será que não?!“), a coisa do(a) autor(a) vivenciado(a), rodado(a), um gancho formidável para as casas editoriais faturarem, até entenderia. Mas o cheiro de desserviço nesse tipo de discussão costuma ser acentuado.

   Porque mais importante do que saber se as ocorrências contidas numa obra de ficção realmente aconteceram com o(a) autor(a), ou não, está a questão da linguagem, sua construção e articulação. Cair na coisa do True Stories é jogar uma cortina de fumaça muito forte diante dos olhos do(a) leitor(a) e não deixá-lo(a) atento(a) em como essa linguagem definitivamente se constituiu, se há alguma intenção de efeito que o(a) escritor(a) quis causar em quem lê. Os gigantes maiores da Literatura, da análise literária, desaparecem nesse raso monstruoso em querer saber o quanto há de veracidade nas ocorrências, quase sempre guiando a obra literária a cochilos e derrapagens de verossimilhança que matam qualquer boa intenção, tanto em quem escreve quanto em quem lê, de se estabelecer uma peça de arte que sobreviva à prova do tempo.

   Talvez seja esse o caso de Caderno Vermelho, de Auster. Ao final da leitura, uma estranha sensação de acho que perdi duas horas da minha vida. Mas para aquilo que se propunha minha leitura (dentro do critério acima descrito, um acompanhamento para os solitários momentos de desfecho do processo digestivo), penso que acertei na escolha.

   Imaginemos esse significativo, relevante e, porque não dizer, saudável momento de algo dentro de você se evadir sendo arrolhado por textos de certa urdidura como No Coração das Trevas, de um Conrad, ou Uma Laranja Mecânica, de Burgess? A leveza de Caderno Vermelho pode até não ser imperativo no movimento peristáltico que essa parte da digestão demanda, mas certamente não atrapalhará em nada.

   Auster decidiu compartilhar suas histórias de vida, algumas interessantes, outras que ele mesmo coloca na obra como a quem interessaria (?!). No caso do prazer da leitura pela leitura, sem qualquer tipo de intenção intelectualmente nutritiva, uma simples leitura de verão, de praia, aquelas páginas que ajudam a gastar o tempo que se tem, Caderno Vermelho pode virar o livro-de-cabeceira de quem está aberto a esse tipo de possibilidade. É o livro!

   Contudo, se tutano e sustância, aquela coisa de literatura que engorda, fizerem parte de seu cardápio, bom… Veja bem… O livro é curtinho e pode se tornar um grande desapontamento. O tipo de escolha feito pelo autor, de somente citar a letra inicial do nome dos personagens das histórias ali mostradas, narrativas com alguma marcação temporal de quando aconteceu (vejam! Não é só o Facebook que tem timeline!), pessoalidade sem confessionalidade, uma linguagem em articulação simples, sem o pavoneamento filológico, uma exploração vernacular desnecessária salvo os grandes movimentos de alma estejam envolvidos, podem trazer uma sensação de buffet de saladas quando a fome que tomou o(a) leitor(a) era de boi-no-rolete na Estância Alto da Serra.

   Nada que diminua a referida obra. Volto a repetir: tudo depende de como o(a) leitor(a) aborda a obra. Pode ser uma grande companhia, marcar sua vida para sempre, mas tal referência está diretamente ligada ao tipo de abordagem de expectativa que o(a) leitor(a) possa apresentar. Dependendo de como for, pode ser para o bem ou para o mal. Tudo depende de como se vê a coisa.

   Certamente que, em Caderno Vermelho, nem tudo está perdido. Das várias histórias de vida, dele, Paul Auster, e de seus amigos e conhecidos, há belas reviravoltas, como a do amigo que depois de sucessivos fracassos nos relacionamentos reencontra, quase que por acidente, uma antiga namorada que sumiu no mundo e foram viver suas felizes histórias juntos ao melhor estilo Gonzaguinha, no lindo lago do amor.

   A questão de Caderno Vermelho é que essa obra precisaria passar longe de um bom curso de Letras (onde o giro pode ser alto e o tipo de exigência é mais para um Barranco de Cegos, de Alves Redol) ou de qualquer leitor(a) que vive, diariamente, a testemunhar a crise humana da fome, do abandono, do descaso, do trauma. Para esse tipo de leitor(a), ler Caderno Vermelho pode soar de fútil a imoral, dependendo de como a dura realidade pode ser posta de lado para que se aprecie um leve suco de caju ou um refrescante copo d’água.

   Caímos na questão, assim, da oportunidade para determinadas obras. Se é desaconselhável Caderno Vermelho para aqueles que vivenciam a crise em seu estado mais bruto, e precisam, por força de profissão ou ausência de alternativa, lidar com ela, pode parecer uma obra que bem poderíamos viver sem ela.

   Por outro lado, essa mesma crise do humano, dos subterrâneos da mente, das tragédias testemunhadas a cada instante, a cada hora, talvez nos afastasse de obras como 1984, de Orwell, ou mesmo o romantismo próximo do assomadiço e neurastênico encontrado nas obras de Patrick McGrath. Ainda que dois grandes gênios de uma literatura mais próxima dos nossos dias, e donos de um tecido verbal que fazem meus cotovelos doerem, a linguagem e a forma de construção da narrativa e das personagens pode lá não ser a mais digestiva das leituras em parques e praias mundo afora.

     De uma coisa acho que escapei: com Caderno Vermelho, de Paul Auster, certamente escapei da constipação. Uma obra leve. Talvez demais. E há certas levezas que, de tão leve que são, costumam pesar toneladas.